CARTA PARA UM ANJO
Mãe,
To aqui desenrolando novelos, continuo com os mesmos cabelos e nenhuma prece prá rezar. Não mãe, ainda preciso de uma luzinha pra dormir e continuo sem comprar pijamas...mas mãe, já sei pintar paredes e fazer um razoável feijão. Aprendi alguns pequenos "nãos", se bem que eles ainda nascem tortos.
Sabe a máquina de costura da vovó que você tanto usou? Tá aqui comigo, não deixei ninguém levar embora e muito menos restaurar os velhos arranhões.
Já falei que tenho saudades?
Outro dia, trombei com uma vizinha que me lembrou a senhora, o mesmo jeito, com os cabelos brancos lisinhos e um sorriso meigo. Confesso que às vezes penso em pedir uma xícara de açúcar só pra ver aquele semblante de novo. Torço prá encontrá-la no corredor, apenas pra devolver um bom dia.
Saudade é coisa que dói em preto e branco.
É mãe, continuo trancando o carro com a chave dentro, e xingando belas palavras no trânsito.
Se parei de roer unhas? Claro que não né mãe. Sabe que olhando minhas mãos de hoje, se parecem muito com as suas? Acho que os pés também. Nunca foram pés bonitos, fala a verdade mãe!
Já falei que tenho saudades?
Por estes dias, almocei com o papai, e ele ainda parece, e é, um menino apaixonado pela política. Sim, ele estava com a nova (velha) esposa; difícil ver o que ele achou nela. Um dia desses a senhora me explica? Aliás, pode me explicar também como é que faz aquele capeletti ao brodo, que tanto quis aprender? Aquele bife a milanesa sequinho e delicioso? Ou ainda, aquela sua delicada paciência com a vida?
Saudade é não poder ouvir tua voz mãe.
Tem mais, continuo com aquela constrangedora timidez, e fico sem graça com coisas que já deveriam me fazer sorrir. Aliás, continuo sorrindo pouco...que será isso mãe? Juro pra você que eu tento, mas ainda levo a vida muita a sério. Relaxar? Quase nada. Quando tento vem aquela culpa da inutilidade. Bobagem, eu sei...
Será que eu to doente mãe? Ou será que essa dor que sinto é só uma bruta falta da sua presença?
Já falei que tenho saudades?
Ainda a pouco, nem foi premeditado...mas mexi numas fotos nossas; assim como quem quer se alimentar na fome. Confesso que parei em duas delas; numa estávamos todos nós e você sorria (coisa rara também)...e na outra, eu estava na sua barriga.
Você ficou feliz quando soube que eu era uma menina, mãe? Eu não sei não...mas nunca me vi mãe de meninas; com certeza iria estragá-las, fazendo-as um Hércules de saias. Deve ter sido muito difícil pra senhora conviver com uma filha que odiava pentes e vivia com os joelhos esfolados, não foi mãe?
Ô saudades que dói...
Daqui a pouco vai anoitecer, e já faz pouco mais de cinco anos que a noite daqui conta os dias da tua ausência...e eu sei de cor todos os minutos que perdi não pedindo teu colo. Ah! Se pudesse ser restaurado um grande quadro da minha memória, seria aquele em que segurava minhas mãos na madrugada, ainda calada, momentos antes de começar uma canção que embalava para longe meu medo de dormir.
Agora é dia mãe, e nunca mais vai haver um telefonema, uma carta, uma conversa, um bilhete ou uma noite juntas...nada se compara a esta dor.
No meu egoísmo te queria aqui comigo; mas como nunca fui uma egoísta de carteirinha, logo me desfaço desse pensamento e fico aqui, brincando de te encontrar nas semelhanças...nas sutis semelhanças das linhas de nossas mãos.
Já falei que te amo mãe?