Recordar é viver
"Poesia é a língua de um estado de crise." (Stephan Mallarme)
Perdi diversos textos ao longo de minhas andanças, quando lembro disto nasce a raiva automaticamente, depois de passar pela frustração me estruturo numa “quase calmaria” (quem sabe aqui eu refaça um daqueles textos perdidos de uma maneira melhor).
Lembro-me que meu pai aos domingos se trancava no meu quarto onde estava a vitrola escutando óperas e clássicos, passava horas ouvindo em alto e bom som: Verdi e entre outros de seus preferidos Paganini, Sabattini, Puccini, Bellini, Mercadante e Rossini. Aos seis anos de idade eu corria pela casa em pleno estado de euforia feito barata tonta, percorrendo as evoluções das batutas dos maestros até cansar; depois assaltava o armário de minha mãe, retirando dali uma ou outra camisola (que para mim se transformava em vestidos de festa), adornava a fronte com um colarzinho de strass e desfilava com os calçados de salto alto de mamãe que mal cabiam em meus pés, nestas horas nem é preciso dizer como as meninas se sentem nas viagens pelos caminhos dos livros dos contos dos irmãos Grimm e de Hans Christian Andersen.
Mais tarde vim a conhecer os verdadeiros castelos e a vida de gata borralheira saiu dos livros tomando formas indescritíveis... comi os pedaços de pães da ópera de Fausto de Charles Gounod. Nada pode ser mais denso do que entrar em uma Floresta Negra e nada é mais profundo do que se encontrar no interior de algumas ondas de rock e não saber como se sai do muro de Pink Floyd.
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Em 2001 na queda das famosas torres gêmeas, eu estava fora da terra natal e me vi trancada em casa... todos os dias os documentários na época transitavam na Alemanha em torno da possibilidade de uma nova guerra mundial.
Alguém poderia se perguntar se este fato é tão traumático o que se poderia dizer dos enviados (noticiaristas) que se encontram na Faixa de Gaza? Resposta: Cada qual está no local e na hora certa para a evolução de seu próprio aprendizado.
O fato é que se algo ativa em mim um verdadeiro espírito de uma bomba interna, os receios podem perder o controle da apropriada frieza, o medo é irmão siamês da ausência de coragem.
Na época eu havia construído um Apocalipse, da mesma forma que há pessoas que realimentam o holocausto... eu havia perdido a Fé e a Esperança em dias melhores, eu havia regredido a tal ponto através da linguagem de maneira que retornara em mim a criança imatura e quase indefesa, visto que minhas frases bem ditas em alemão giravam em torno de um vocabulário básico (apesar dos cursos intensivos).
O dia em que meu ex companheiro levou a chave e as cópias do apartamento literalmente surtei, gritando numa pequena janela, a do sanitário: - Aqui não tem nenhuma princesa presa na torre e lá embaixo não tem nenhum dragão!... tomem cuidado com os produtos que estão consumindo podem ser que acabem de uma hora para outra (disse em um “male male” alemão com todo ar dos pulmões, meu ex já se encontrava longe em seu trabalho numa agência de Turismo) a vizinhança permaneceu calada.
No final da tarde ao me ver em liberdade quando fui levar o lixo para fora de casa até o container do prédio, um bom vizinho de origem germânica me confessou que este procedimento típico de comunicação na base da gritaria era comum aos neuróticos que haviam passado pela guerra. Prefiro sorrir com a sabedoria materna quando ela refere que tenho um gênio disgraziato.
Sei muito bem o que é passar por um choque cultural e compreendo que psicólogos que não sabem se expressar bem, não são (mais) psicólogos, ou seja pode ser considerado como um profissional morto (meu alemão apesar dos cursos nunca foi muito bom), perdi um emprego de acompanhante terapêutico em Stuttgart ao mesmo tempo que estava dissolvendo parte de minha identidade.
Sorte a minha veia paterna sempre falar alto, o meu próprio silêncio pode se confundir no passado, no futuro e no presente tendo a ver com a fala que sinto com a minha relação com a Natureza (numa leitura silenciosa, muitas vezes me encontro em movimentos de evolução de guerra e paz entre o Brasil – Portugal - Alemanha – França – Espanha e Itália a: Catarse.
Veja bem, por aqui nada tem de “chilique chique” pois cicatrizes não são estéticas, os riscos seguem marcados no corpo, se alguém faz uma tatuagem a realiza porque a deseja, entretanto quando palavras se misturam e você não consegue construir e definir bem as frases a inadequação é percebida como a de um dislexo que sente a falta de algo aqui ou acolá, apenas quando logo após é avisado ...e para quem sempre teve um quê meio obsessivo para com a gramática isto é sentido junto a uma profunda dor (a falta de pedaços em algum lugar dói, pedaços concretos que sempre estiveram lá hoje não estão mais lá... alguém, meu Deus, os tirou do lugar onde foram parar!?! por que estão na “casa do chapéu” frag-men-ta-dos?).
Sei que meu português ao longo dos anos não anda lá dos melhores, porém quem sabe mais algum outro naufrago os lê. No fundo de tudo isto pode haver uma pontinha de: regressão, nostalgia, sentimentos de solidariedade incompreendidos, fantasias e até admiração e amor por inúmeras ramificações da língua na História e se alguém cutucar mais em Ítaca, verá que o buraco é mais embaixo.
Meu pai quando chegou ao Brasil queria ser cantor, passou por diversos cursos de canto... nunca cantou nem nas pizzarias daqui, no entanto hoje eu canto de um outro modo por ele e... por mim.
No aqui-agora me vejo com a nítida sensação de uma virada de ano, me lembro de Salerno onde alguns de seus habitantes jogam pelas janelas suas panelas velhas a meia noite.
Rosangela_Aliberti
São Paulo, 01.II.09
(Foto retirada do wikipedia nacional: Nova York vista do espaço logo após os ataques. Manhattan está no centro, com a fumaça das explosões (11.07.01)
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Vincenzo Bellini - Symphony from "Norma"
http://br.youtube.com/watch?v=xcFNQ6weQ1A