Tédio: não mata, volta os olhos para o novo
Amadinho meu...
É impressionante como em meio aos meus milhares de arquivos de músicas, desde as mais antiquadas até as mais modernas, em todo estilo imaginável, desde as mais memoráveis até as menos apreciadas eu não tenha uma única música sequer do The Doors...
Então, fui assistir a um clipe num lugar onde havia disponível a música The End, mas não adquiri a música como costumo fazer, pois o faço quando aprecio e não consigo apreciar nem as letras e nem a interpretação de Jim Morrison... Ouvi até a metade, pois fiquei entediada... E aborrecida: aborrece-me a dependência viciante e alucinógena que Morrison precisava para abrir os olhos... Aborrece-me sua pretensão em crer estar ao mesmo nível de Joplin e Hendrix profetizando sua morte precoce, sendo que no fundo, todos sabem quando irão morrer, todos têm certeza de que isso acontecerá, e é muito simples anunciar uma morte precoce quando se vive como ele viveu...
Nada contra quem cultiva seus vícios, sejam eles quais forem... Eu também mantenho os meus, sejam os silenciosos ocultos dentro do ser, sejam estes descarados dentro de uma xícara de café ou entre meus dedos, esfumaçando... Mas, nenhum deles me causam alucinações psicodélicas para que eu possa abrir meus olhos e ver o que esta diante de mim, e me orgulho disso: sou louca sem nenhuma necessidade de ingerir estímulos.
Mas há seus seguidores, fãs deslumbrados com essa arte rebelde e estranha, e respeito: quem sou eu para considerar algo estranho? Mas é simples entrar na mente e nos corações de uma geração quando se vive uma época onde o condicionamento exige que todos sejam certinhos e obedientes aos seus pais até se casarem com quem não se ama, para depois alimentar o condicionamento enclausurado num casamento...
Suas letras, seu modo de interpretar estas letras, me enchem de tédio... Falar dele me enche de tédio, e nada nesse assunto me acrescenta em nada, então falemos do que realmente interessa: o tédio!
Considerando-o um intelectual de nível superior e com um conhecimento acima da média por estar acompanhado de sentimentalismo filosófico, prefiro imaginar que seu gosto por músicas não seja assim tão ruim, e que me enviou esta sugestão apenas para me fazer sentir o tédio em toda sua totalidade para que possamos falar nisso...
Se pra uns o tédio é cansaço, mal estar e aborrecimento, para mim estas sensações são reflexos do que pode ser o tédio. O tédio que sinto é um profundo desinteresse por futilidades que não me favorecem em nada no desenvolvimento mental e íntimo que anseio... E quando digo que morro de tédio é devido à maioria das coisas que me cercam causar-me tremendo tédio.
Tédio seria na minha concepção uma indiferença evidente nos assuntos e interesses da maioria... Uma frieza distante diante da rotineira mesmice sem inovação e criatividade do dia-a-dia... Um desinteresse total pelo previsível próximo minuto sem nenhuma surpresa...
Eu me salvo do tédio quando percebo que ele está nas coisas frívolas à minha volta... Quando concluo que meu tédio reflete a falta de algo do que só existe dentro de mim... Quando me sinto saciada, quando me sinto completa e percebo que este processo ocorre dentro de nós...
Há dias que o cansaço extremo causa-me tédio... Há dias que me torno então, tão abatida que sou invadida de tédio... Querer coisas me dá tédio... Recusá-las me dá tédio... A realidade de todos é para mim enfadonha... Os desejos banais escancarados nos rostos me dão tédio... As cobranças e exigências me matam de tédio... O ciúme, o egocentrismo, a auto-afirmação, as cantadas baratas que refletem uma falta de criatividade terrível, os conquistadores sem graça, sem estilo, sem algo que realmente me impressione e que desfiam suas linhas melosas fingindo querer meu coração, mas desejando um monte de carne, me fazem esparramar-me em tédio... Do mesmo modo que com você...
A diferença é que eu já aprendi a lidar com minha existência... Enquanto você determina seu último dia de existência, eu já deixei de marcar o dia de minha morte faz anos! A última vez foi quando o tédio invadia-me de tal modo que não conseguia sair da cama, e se alguém me obrigava, eu soltava meu corpo no chão após dar um passo... Minha Alma havia sumido! Meu corpo morria e perdia a vitalidade! Eu esperava apenas morrer, e não o fazia com minhas próprias mãos por não conseguir manter por um minuto minha mão direita no ar... Eu mergulhava num poço sem fundo de autopiedade, colocando-me como vítima do acaso e a pobre coitada...
Desistiram de mim, deixaram-me no meu quarto escuro onde me agradava a solidão sombria... E quando percebi que todos haviam me deixado, eu tentava arrastar-me para a cama... Parei um momento e a pouca luz que entrava pelas frestas da janela aborreciam-me... Aqueles fachos discretos jogavam-me na cara que o dia estava lindo, o mundo brilhava sob os raios do sol e era dia... Eu praguejava o dia, praguejava a luz... E me arrastava para a cama, para deitar ali e ali morrer de uma vez... Ao tentar subir na cama em vão, derrubei o livro de capa preta que estava na cabeceira... Abaixei minha cabeça como uma reprovação pelo meu fracasso e vi o livro aberto... Enquanto buscava as forças que não mais tinha para tentar me erguer, meus olhos passavam por aquelas linhas... Era um relato de Salomão sobre a Vaidade... "Tudo é vaidade...".
Eu soltei meu corpo, deixei que ele se espalhasse pelo chão, e coloquei meu rosto próximo ao livro que comecei a ler... Quando terminei, virei meu corpo e olhei para o teto por muito tempo... Não sei quanto tempo, aquela luz que entrava pelas frestas desapareceu...
Eu me levantei com dificuldade, fui ao banheiro, tomei um banho e voltei ao quarto... Peguei o livro do chão e reli aquelas linhas... O tédio que matava aos poucos disfarçado de depressão nada mais era que a visão nítida da vaidade em tudo... Eu estava na fronteira entre a falsa e a verdadeira realidade... Não via razão para a existência de absolutamente nada e já não sabia dizer o que de fato existia ou era apenas fruto de minha imaginação... Eu era fruto de minha própria imaginação!
Você acreditando que venceu o mundo... Eu também acreditei que tudo o que deveria viver eu já tinha vivido... Não foi num livro de universidade ou de um grande autor que vi mais uma chance pra mim... Foi naquele livro de capa preta que ninguém consegue impedir que ele seja lido e se mantenha atravessando os séculos...
Você não ultrapassou ainda o infinito: ainda é prisioneiro de um corpo limitado. Você ainda não venceu o Universo: ele continua se expandindo até nos consumir a todos... Você não derrotou Deus: Ele ainda é fato e está vivo dentro da maioria das pessoas, não se importando se cegas ou não, se crédulas ou não... Você não venceu as religiões: elas resistem ao tempo, sobrevivem...
Não deixe que um Jim Morrison interior retire sua vitalidade e roube-lhe tudo o que consegue ver sem estímulos exteriores. Não importa se neste mundo ou não, sempre haverá o amanhã. Acabe com seus dias futuros, e o amanhã ainda estará lá e você fará parte dele.
Não me mate de tédio, por favor! Não me faça acreditar que todo esse conhecimento e capacidade de enxergar a verdadeira realidade também é vaidade e possuir tudo isso seja tão vão assim! Não me faça vê-lo como um fraco que se entrega tão fácil e que crê ser tão injustiçado, que não tendo mais quem culpar, culpa um Deus! Você não acredita Nele, se lembra? Não há ninguém para culpar!
Foi-se o tempo que manifestava a ira contra a vida que fluía de mim, assim como você o fez! Quando eu também saia na chuva para deixar que me abençoasse e levasse de mim todo mal, as pessoas gritavam como eu era louca, quantas pneumonias mais eu teria, o quanto a chuva da cidade é poluída, e como é certo e lei usar um guarda-chuvas...
Eu me sentia ridícula... Eu sentia aquela mesma sensação de quem se masturba e depois sente culpa... Mas eu não conseguia ver o erro em sentir de perto a chuva! Eu não conseguia compreender a razão deles! E eu continuei...
Hoje, quando chove eu estou ocupada demais relembrando as sensações que a chuva dá descrevendo-as para que ainda apareça alguém que me diga o quanto está errado, ou como surpresa alguém confesse o quanto gosta disso também... Mas quando eu resolvo sair e lavar a alma, não há mais ninguém me mandando entrar... Não estou mais sozinha... Encontro-me com meus filhos que já estão encharcados e dançando felizes....
Você não viveu tudo... Você não experimentou tudo... E não vale viver e experimentar apenas as sensações que emergem em uma leitura ou no relato de alguém... Tivesse você vivido tudo o que diz, teria um pouco de compaixão por estas pessoas que apenas te assistem brindando com a chuva... Não te preocupa saber que toda essa dimensão de vida possível não é percebida pela maioria?
Você me perguntou pra que serve a vida... Eu te digo hoje que serve para caminhar para longe e acreditarmos que em determinado momento chegamos no fim... E perceber que diante do caminho ainda tem um pico alto com um resto de caminho a ser seguido... E escalá-lo para enfim dizer que trilhou o caminho e é o fim... E ao chegar no cume ver tudo ao redor e ver que há ainda muito mais além...
Ao fim de um longo dia, se vê o fim de um percurso, mas não de um caminho. Cada novo dia traz consigo todas as novas possibilidades, nada pode ser o mesmo amanhã: nem você nem nada! Hoje posso desejar a morte, amanhã eu invoco a vida. Hoje a flor murcha, amanhã eu percebo um novo botão.
E ao desejar seguir além, para alcançar a desculpa que é hora de entregar-se, pois não há mais nada para ser feito, o tédio invade... Pois quanto mais se vê, mais se enxerga... Quanto mais se aprende, mais se tem para aprender...E o sentido da vida é só isso?
Não me mate de tédio, por favor? Não me faça crer que seja tão egoísta! Eu vejo convicção em tuas palavras, eu vejo os sentimentos intensos em tudo o que acredita e sente, eu vejo um ser repleto de conhecimento e sabedoria... E porque pensas que sua vida limita-se a adquirir tudo isso e depois, fim? E você vem me dizer que já viveu tudo? Eu ainda não vi suas palavras atravessarem o mundo e darem cem voltas! Eu ainda não vi a promessa de seu nome ser eternizado! Não espere que eu faça isso! Não farei se eu sentir o quanto me enganei ao seu respeito!
Se tudo o que você viveu até hoje parece ser tudo, revire suas gavetas, arquivos, baús... Irá se satisfazer em apenas ter vivido e absorvido tudo o que podia e não dividirá isso com ninguém? Não se faça pequeno diante de mim, por favor! Como pode se entregar assim?
Já viveu tudo? Papo furado! Já convenceu aquelas pessoas do prazer intenso que é sentido numa dança sob a chuva? Ou vai ficar ai lamentando o quanto elas te acharam ridículo por isso?
Eu me dei conta de tudo isso quando a Morte me visitou e tentou roubar minha vida! Ela jogou-me na cara as tantas vezes que eu tentei jogá-la fora, e dar cabo de minha existência! Você consegue ver a dimensão da mesquinhez humana nisso?
Hoje mesmo eu comentava como é impressionante como tantas mentes brilhantes e geniais terem deixando belezas e contribuições ao mundo e de nada serviram para eles mesmos, pois a maioria morreu bêbada, pobre, cheia de vícios, sozinhas, infelizes ou se mataram! E há pessoas que me acham pretensiosa ao desprezar o estilo de um e outro... Palavras são apenas palavras se não vier acompanhadas de atos!
Não sou dona de minha vida, ela me foi emprestada: quem sou eu para decidir quando ela deve acabar ou não? Eu a ofereci numa bandeja de prata várias vezes para a Morte, por que agora não queria entregar-lhe? Faço-te lembrar Florbela Espanca? A sombra dela pode estar em mim, mas eu superei ela: eu não me entrego a Morte!
Não me venha com essa conversa de cansaço, de que já fez tudo como se fosse alguém com 200 anos, que já alcançou todos os picos mais altos do mundo porque isso não me convence, e não me diga que convence você se deseja me matar também de tédio e de frustração por ter me enganado tanto!
Meu querido... Lamento te dizer: você não venceu tudo! O mais difícil ficou por último: você ainda não venceu a si mesmo!
Ps: então, deixa disso, levanta, sacode a poeira e os ácaros e REAGE! Não sentirei pena de você!
São Paulo, 25 de Janeiro de 2009.