Uma carta de despedida muito macabra

Albitrina, 24 de janeiro de 1978

Prezados,

Não sei quais as pessoas que encontrarão essas letras trêmulas, mas peço que não me chamem egoísta por encontrá-las tardiamente, embora eu não queira dividir com ninguém este momento da vida. Quero estar só nesta hora mais sublime de minha existência.

Cheguei na melhor fase de minha vida, acreditem! Tenho agora 78 anos e ainda a vontade de viver outros tantos, mas os anos consomem-me aos poucos. Sinto-me enfraquecida e só me resta o desejo de reduzir-me ao pó, sem sofrimento.

Não espero a morte, pelo contrário, a morte que me espere! Enquanto vivo, vou seguindo ao lado dela, brincando de pega-pega, uma levando a outra pelo longo caminho das descobertas.

Falando em descobertas, o que fiz durante a vida? Apenas vivi, amei, chorei, ri, me desgastei e fui construindo lentamente o meu percurso. Só agora vejo com bons olhos minhas realizações: umas ruins, outras piores, mas eu repetiria todas, uma a uma, se outra vez eu nascesse e pudesse escolher. Até os desencontros eu viveria. Tantos sonhos, tantas incertezas, tudo! Escolheria cada fio de cabelo apagado pelo tempo e cada ruga em minhas carnes a consumir-me lentamente, por dentro e por fora.

Acho que agora posso morrer dignamente, pois já vivi o bastante para descobrir o valor do meu ser. Agora não sinto mais meu fôlego e meu coração bate como um relógio sem pilha ou sem cordas, mas sinto a felicidade invadir minhas entranhas e arrebatar minha alma.

Se acharem-me agonizante, não perturbem. Quero deleitar cada segundo dessa desintegração.

Não tenho filhos ou netos para me enterrarem. Quem chega a essa altura da vida, certamente tem sementes que já deram frutos e os frutos deram outros, que estão maduros, mas eu não! Como já dizia Machado de Assis, eu não quis deixar a ninguém o legado da minha existência. Graças aos céus ou ao inferno por isso. Tristeza em meu túmulo só perpetuaria o sofrimento que não possuo. Também não quero ser enterrada por carpideiras, pois elas dão graças aos céus logo após a encenação de seus papéis. Peço apenas que me deixem aqui perto das flores (sou alérgica à podridão do concreto e à escuridão das catacumbas), onde viverei eternamente.

A generosidade será compensada.

Adeus,

Rosilda Ferreira

Langeli
Enviado por Langeli em 20/01/2009
Código do texto: T1395027
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