À ex-amiga
Oi, tudo bem?
Quanto tempo não te vejo. Estou com saudades.
Saudades daquele tempo e de como éramos unidas. É bem verdade que nunca pensamos da mesma forma, mas o respeito sempre foi um item importante na nossa relação.
Hoje as coisas estão bem mudadas.
Mudei de empresa sabia? Estou em um lugar novo, tão capitalista como os outros, mas desta vez estou ganhando algum dinheiro com isso, não sei bem o que faço com ele. Não adianta ser só bonzinho, não é mesmo? Tem adiantado para você?
Nem devo ser tão boazinha assim, tenho um mal latente, é que poucos encostam em mim para sentir a pulsação do meu mal.
O lugar onde eu moro é silencioso, não é tão bonito como o que você conheceu, mas ainda ouço o canto dos pássaros pela manhã.
Minha mãe me visita aqui às vezes, ela é bem mais calada agora. Depois de tudo que aconteceu ela fala com os olhos apenas. Meu pai eu não tenho visto, meus irmãos estão como sempre.
Tenho um cachorro, é, sei da sua dificuldade de conviver com esses bichinhos, mas sabe como é, né? Eu realmente gosto de bichos. Gostaria de morar em um zoológico. Às vezes, penso que foi um desperdício não fazer biologia, mas as letras têm sido de alguma utilidade também.
Tenho ouvido novas músicas, acabei desprendendo um pouco dessa coisa de escutar só músicas que eu entendo. Comprei um CD de música turca, eu não entendo nada, mas gosto muito do ritmo, descobri com isso a linguagem dos sentidos.
Existem muitos recursos em uma música e quando não entendemos a letra, deixamos de pensar na mensagem e entramos na onda do sentir todos os elementos do som. Somos envolvidos por outra onda muito especial. Sei lá porque estou colocando isso no plural, estou falando só de mim, vivo deliciosamente só.
Como em cartas não há resposta simultânea, posso falar sem parar, fazendo disso aqui meu monólogo, talvez seja o único jeito de você “ouvir”. Nos últimos tempos você estava irritadiça, falava desembestadamente quando eu falava que o seu autor preferido às vezes era medíocre.
Quero, eu não preciso, eu apenas quero dizer o quanto você foi importante para mim. Em um processo de redescobrir meu gosto, minha personalidade, meu caminho na vida, você foi alguém importante, me lembrou a beleza da arte, me lembrou a dor da perda, me lembrou que é bom dividir pensamentos com alguém, pois assim amadurecemos idéias.
Naquele tempo que vivíamos tão grudadas, ou grudentas, eu fiquei até parecida com você, estranho constatar isso, mas olhando fotos eu tive essa certeza. Não é bom nem ruim, apenas é. Você sabia de tudo sobre mim, eu sabia de quase tudo sobre você, eu me fazia de satisfeita com aquilo tudo, você nunca estava feliz mesmo estando tudo bem.
Isso é uma das coisas que me lembro bem, nunca você esteve feliz, né? Acho que a fase em que convivíamos foi uma fase triste, deve ser por isso tanta infelicidade, porque pelo que sei hoje está tudo bem diferente para o seu lado, que bom.
A árvore que plantamos juntas cresceu tanto, precisa ir lá ver um dia, eu sempre passo por ela e fico encantada, em breve vai dar os primeiros frutos.
Então... Andei lendo um livro bonitinho sobre amizade, é cheio de fotos de amigos, tem também muitas frases sobre a amizade.
Veja algumas:
Um amigo é uma alma em dois corações. (Aristóteles)
Amigo certo se reconhece numa situação incerta. (Cícero)
Grande parte da vitalidade de uma amizade reside no respeito pelas diferenças, não apenas em desfrutar das semelhanças. (James Fredericks)
Tenho amigos para saber quem sou. (Oscar Wilde)
Amigo: alguém que sabe de tudo a teu respeito e gosta de ti assim mesmo. (Elbert Hubbart)
Com tudo isso e mais um pouco eu fiquei pensando na nossa amizade.
Fomos tão felizes, não é mesmo? Vivíamos uma coisa boêmia, tão poética, que parecíamos em breve estar partindo para um exílio. Só assim estaríamos certas de estar fazendo a coisa errada. Queríamos mesmo era estar na ditadura para que alguém prestasse atenção no que dizíamos.
Na verdade não era nada de mais, éramos mais uma dupla feliz, achando que mudaríamos o mundo com um lápis na mão e muita cerveja nas idéias. Lápis, sempre algo que pudesse ser apagado nas próximas horas.
Ainda gosto muito de você, meu carinho é realmente muito grande pela pessoa especial que você sempre foi e que mesmo com muitas transformações tidas e as muitas outras que virão, continuará a ser um certo alguém ímpar.
Existe muita coisa sua aqui, mas com o tempo eu fui transformando em coisas minhas e agora acho que você não reconheceria o que é seu em mim, nem eu.
Releia essa carta quando quiser, escreva se tiver vontade.
Ex-amiga, você é, quase sempre, muito bem-vinda.
Continue sendo feliz.
Beijos e um abraço apertado.