Conto em Carta um Conto
"Meu querido...
A alegria me toma cada vez que recebo uma carta tua... Tuas palavras me invadem, e possuem o poder de alcançar o mais profundo do meu ser, como uma espada de bom fio. Estranhamente, assim vejo você: a pele bronzeada pelo sol, em cima de um cavalo com cela fina, vestido de tecidos caros do Oriente que esvoaçam à passagem do vento e a espada, fiel companheira.
Ler-te causa-me um misto de reflexões e sentimentos... Não sei se as lembranças ainda nítidas de uma vida passada sob as quentes areias do deserto é que submergem, ou um desejo antigo e secreto se evidência...
Nesta vida atual, eu nunca estive no deserto... Mas minhas mãos se lembram da textura ao enchê-las com um punhado que escapavam entre os dedos... Meus pés se lembram dos passos que se afundavam e sentiam o calor que acalmava a dor da caminhada... Hoje, eu fujo do Sol, e não suporto o calor de seus raios ardendo em minha pele... E sempre que procuro me abrigar numa sombra, pego-me pensando nisso: '- Terei vivido exposta por tanto tempo sob o Sol que já não suporto mais seu calor?'
Essas lembranças ficam mais a deriva quando leio tuas linhas... E tenho então absoluta certeza de que este é um reencontro. Não sei explicar, e talvez nem precise... É algo de alma...
Quero compartilhar contigo este meu desejo secreto que levo comigo por tantos anos... Certa vez na infância eu assisti um filme bonito. A lembrança é vaga, mas o sentimento que me foi despertado faz-me recordar de determinadas cenas. Não me recordo do nome do filme, mas um homem americano, talvez escritor ou professor, buscava por um livro cujo autor era russo. Descobriu que o livro só poderia ser encontrado na Rússia, pois devido ao período que o país passava, nada era importado ou exportado. Conseguiu por intermédio de alguém o endereço de uma livraria que tinha disponível o tal livro. Ele escreveu uma carta e obteve a resposta. Estavam dispostos a enviar o livro, mas haveria certa demora e o motivo seguia-se na carta. Era difícil utilizar o serviço de correios por causa da rígida fiscalização. Acrescentaram contando por menores, como por exemplo, a escassez de comida que havia, pois só era permitido comprar unidades 'x' por pessoa. Havia também muitos conflitos, e os funcionários da livraria encontravam-se abrigados na loja, pois havia lá um tipo de porão onde todos podiam estar seguros.
O americano ficou sensibilizado com a carta e passaram a se comunicar mais vezes. Conseguiu-se lhe enviar o livro, o que foi muito agradecido pelo comprador. Em uma das cartas, ele interessou-se em saber quem era a pessoa que lhe escrevia . Era a dona da loja. Um laço começou a nascer nestas correspondências, e o americano chegou até a enviar uma caixa contendo enlatados para que pudessem passar alguns dias. Esta, foi enviada por um amigo que seguia de viagem a aquele país.
Enfim, o que me marcou foi a história de amor que nasceu entre a dona da livraria e o americano. Não declaravam amor um ao outro, mas o sentimento intenso era evidente. O mundo girou, mudou e continuavam se correspondendo até a morte do americano, o que foi sentido demais pela russa que o escrevia.
Anos depois, li As Cartas de Amor de Kalhil Gibran, e a lembrança do filme voltou à memória. Gibran era apaixonado por uma professora com quem mantinha correspondência... Também não era declarado o amor que sentiam, mas pode-se notar que ele existia pela confiança mútua, pela falta que um fazia ao outro, pela sinceridade, pela necessidade do outro que vez ou outra se percebe de modo discreto. Mesmo sendo ambos casados, as correspondências se mantinham ao longo de anos. Uma ou duas vezes, se não me engano, tiveram a oportunidade de estarem um diante do outro, sozinhos, e nunca se tocaram como gostariam, segundo o que o livro diz.
Eu sonho com um amor assim... Que me escreva cartas. Ninguém jamais poderá esconder o que é enquanto escreve. Quando se escreve, se despeja sentimento, pensamentos, se abre o coração e se revela a alma. O amor ama mesmo estando distante e é assim que se mede o amor... Um amor que não se interesse tanto pela textura de minha pele, pelos traços de meu rosto, pelo tom de minha voz, mas que possa me ver assim como sou verdadeiramente, em cada palavra que eu expresse.
Recebo com alegria tuas cartas... E as respondo repleta de intensa felicidade. Pois em tuas linhas, revelas com certeza absoluta o quanto me amas, e eu timidamente posso também dizer o mesmo.
Hoje, respondo a mais uma de tuas cartas, meu querido... Mas está, jamais te será enviada. Pois nela, confesso que o amor que nos toma é tão antigo, tão puro e sincero... Que seria impossível que este amor não contaminasse de amor tudo o que me cerca e tudo que tenho por dentro.
Esta resposta, jamais chegará até teus doces olhos... Pois sou apenas uma irmã de alma e tua grande amiga... Em nossa realidade só existem almas, nossa tarefa com este mundo e o Amor Absoluto que rege nossas vidas...
Com toda minha alma e meu coração,
Tua sempre amiga."
São Paulo, 18 de Janeiro de 2009.