Carta Para o António
Querido António:
Tenho andado a adiar esta carta desde há muito tempo. Quando tentei escrever-te pela primeira vez faltava-me um endereço para colocar no destinatário. Durante anos guardei estas palavras comigo à espera da melhor oportunidade para que a ti chegassem.
Lembro-me vagamente quando começaste a aparecer na televisão. Tinha eu onze anos.
A imagem que retive foi a da tua última aparição em público, quatro anos depois, no programa do Júlio Isidro “ A Festa Continua”. A tua figura débil, vestida de pijama de ursinhos e coelhinhos ainda continua viva na lembrança. O apresentador, o mesmo que te tinha lançado no inicio da tua meteórica carreira, foi de uma especial simpatia para contigo. Transparecia a amizade e o respeito que por ti nutria. Anunciou que o teu problema de saúde estava em remissão. Cantaste uma canção do teu segundo album “ Dar e Receber”, dançaste como de costume, balançando o corpo com o modo próprio de te expressares. E eu acreditei.
Poucas semanas depois Portugal recebeu a notícia da tua morte. No entanto não foi nesse momento que sofri por ti. Tive pena, é certo, mas a dor, essa veio mais tarde.
Deves saber que a Amália esteve no teu velório, na Basílica da Estrela. E a ela se juntou o povo inteiro antes de partires para o cemitério em Amares, o mais perto da aldeia de Fiscal.
O Sr. Cardeal Patriarca de Lisboa, António Ribeiro, teu homónimo, prestando declarações aos jornalistas, afirmou que tu havias desafiado a natureza e esta te pagava agora com a morte. Sei que deves sorrir ao ler estas imponderadas palavras de um homem que morreu de cancro de pulmão por ter fumado toda a sua longa vida. Quem estuda a natureza sabe que tu eras um ser natural, mas de certo que nunca terá observado nenhum animal a fumar um cigarro.
Era já eu uma jovem mulher, com idade para exercer direito de voto, um amigo de infância gravou-me uma cassete áudio com os teus dois únicos discos: “Anjo da Guarda” e “Dar e Receber”. Foi a partir daí que te comecei a conhecer, António, e a gostar de ti cada vez mais.
As canções vinham-te do fundo da alma, música e letra. Os teus poemas eram reflexos da tua personalidade. Conheci-te, adorei-te, admirei-te, desfrutei-te quando já eras do outro mundo. Estavas Além. Com o passar do tempo crescia a minha alegria por andares comigo para todo o lado e a minha tristeza por saber que não voltarias a escrever novas músicas e nunca mais te poder ver.
Prometi um dia visitar-te em Amares e colocar na tua campa uma flor. Uma flor simples, do campo, como o homem que foste. Apesar de te preocupares com a estética e cuidares do corpo, praticando exercício, bebendo com moderação e abstendo-te do tabaco, não eras adepto da moda fútil. Não gostavas da fachada. Tratavas da alma, cultivando o respeito por toda a gente, a simpatia e a humildade. E assim todo o tipo de público te retribuía o respeito e estima. O homem tímido, que se transformava no grande artista em palco com o seu visual excêntrico, gerou uma onda de unanimidade em redor dos seus espectáculos e da sua obra musical.
Sabias ser sinceramente todas coisas: o homem, o barbeiro, o cantor, o artista de palco, o filho dedicado, o irmão amigo, o português do Minho, o cidadão do mundo.
Tu foste um inovador, um verdadeiro criador de música. Qualquer coisa que surgiu de uma síntese que fizeste entre a música portuguesa tradicional, o Fado, o Rock, o Pop, o Blues. E sintetizar não é apenas unir as coisas mas sim irmaná-las. Fazer com que o que à partida não liga se torne possível de encaixar em harmonia. Penso que esta tua característica é tipicamente portuguesa. É de todos nós, como a voz da Amália e a tua própria voz. Por isso te amámos todos. Porque és de todos nós. E tens em ti o melhor do que é ser português.
Passaram-se décadas, durante as quais fui decorando as tuas músicas, absorvendo os teus poemas até que tu fizesses parte da minha história de vida. Gosto de te considerar um amigo.
Um grande amigo, que me enche de alegria com as suas cantigas e vontade de viver!
Não é tão comum assim encontrar alguém com essa força toda, esse poder de se relacionar com o mundo com sabedoria, essa lucidez de encarar a vida. Que grandes lições nos dás a todos nós, meros mortais, António, com os teus refrãos directos e apelativos.
Um dia aconteceu um milagre! Ouvi na rádio uma música tua, original, cantada pela Manuela Azevedo. Tinhas voltado com canções nunca antes ouvidas. Eram os Humanos (Camané, David Fonseca e a Manuela Azevedo) com um álbum inteirinho de novidades tuas, muito bem musicadas e interpretadas. Que maravilha, António! Que saudades tínhamos, eu e Portugal, de ti. Fizeram-se concertos e tu foste celebrado por várias gerações. Pessoas que te conheceram ainda em vida e seus filhos e netos que não tiveram essa sorte. E poderiam ter tido. Não fosse a falta de informação sobre um vírus mortal que ainda não foi debelado e hoje mata sem discriminar.
No entanto, António, conseguiste ainda assim, em tão curto tempo, sentindo sempre que te fugiam os dias, deixar a tua marca na história. Não na historiazinha de casa de banho como com humildade dizias, meio a brincar, meio a sério, querer ficar, mas na história verdadeira da música portuguesa.
Continuo sem ter uma morada para onde enviar a minha carta. Gostava que as palavras tivessem um poder mágico de fabricar uma ligação cósmica que lhes permitisse encontrar o caminho até esse sítio onde te encontras.
Fico com essa esperança. E que estejas feliz a observar as crianças que te cantam no nosso país de hoje.
A minha filha tem 6 anos. Quando aprendeu a cantar ainda não sabia escrever. Depressa decorou o “Muda de Vida”, A “ Maria Albertina”, o “ Não me Consumas”, o “ Tu Aqui” e tantas outras. Suspeito que para ela também te tornarás um ídolo. Quando o meu bebé de 11 meses souber falar o nosso duo passará a trio. E assim sucessivamente através das várias gerações. Enquanto este povo tiver memória e alma.
Até sempre, querido António Variações, um abraço desta que te adora:
Ana Marques
20/7/2007
Querido António:
Tenho andado a adiar esta carta desde há muito tempo. Quando tentei escrever-te pela primeira vez faltava-me um endereço para colocar no destinatário. Durante anos guardei estas palavras comigo à espera da melhor oportunidade para que a ti chegassem.
Lembro-me vagamente quando começaste a aparecer na televisão. Tinha eu onze anos.
A imagem que retive foi a da tua última aparição em público, quatro anos depois, no programa do Júlio Isidro “ A Festa Continua”. A tua figura débil, vestida de pijama de ursinhos e coelhinhos ainda continua viva na lembrança. O apresentador, o mesmo que te tinha lançado no inicio da tua meteórica carreira, foi de uma especial simpatia para contigo. Transparecia a amizade e o respeito que por ti nutria. Anunciou que o teu problema de saúde estava em remissão. Cantaste uma canção do teu segundo album “ Dar e Receber”, dançaste como de costume, balançando o corpo com o modo próprio de te expressares. E eu acreditei.
Poucas semanas depois Portugal recebeu a notícia da tua morte. No entanto não foi nesse momento que sofri por ti. Tive pena, é certo, mas a dor, essa veio mais tarde.
Deves saber que a Amália esteve no teu velório, na Basílica da Estrela. E a ela se juntou o povo inteiro antes de partires para o cemitério em Amares, o mais perto da aldeia de Fiscal.
O Sr. Cardeal Patriarca de Lisboa, António Ribeiro, teu homónimo, prestando declarações aos jornalistas, afirmou que tu havias desafiado a natureza e esta te pagava agora com a morte. Sei que deves sorrir ao ler estas imponderadas palavras de um homem que morreu de cancro de pulmão por ter fumado toda a sua longa vida. Quem estuda a natureza sabe que tu eras um ser natural, mas de certo que nunca terá observado nenhum animal a fumar um cigarro.
Era já eu uma jovem mulher, com idade para exercer direito de voto, um amigo de infância gravou-me uma cassete áudio com os teus dois únicos discos: “Anjo da Guarda” e “Dar e Receber”. Foi a partir daí que te comecei a conhecer, António, e a gostar de ti cada vez mais.
As canções vinham-te do fundo da alma, música e letra. Os teus poemas eram reflexos da tua personalidade. Conheci-te, adorei-te, admirei-te, desfrutei-te quando já eras do outro mundo. Estavas Além. Com o passar do tempo crescia a minha alegria por andares comigo para todo o lado e a minha tristeza por saber que não voltarias a escrever novas músicas e nunca mais te poder ver.
Prometi um dia visitar-te em Amares e colocar na tua campa uma flor. Uma flor simples, do campo, como o homem que foste. Apesar de te preocupares com a estética e cuidares do corpo, praticando exercício, bebendo com moderação e abstendo-te do tabaco, não eras adepto da moda fútil. Não gostavas da fachada. Tratavas da alma, cultivando o respeito por toda a gente, a simpatia e a humildade. E assim todo o tipo de público te retribuía o respeito e estima. O homem tímido, que se transformava no grande artista em palco com o seu visual excêntrico, gerou uma onda de unanimidade em redor dos seus espectáculos e da sua obra musical.
Sabias ser sinceramente todas coisas: o homem, o barbeiro, o cantor, o artista de palco, o filho dedicado, o irmão amigo, o português do Minho, o cidadão do mundo.
Tu foste um inovador, um verdadeiro criador de música. Qualquer coisa que surgiu de uma síntese que fizeste entre a música portuguesa tradicional, o Fado, o Rock, o Pop, o Blues. E sintetizar não é apenas unir as coisas mas sim irmaná-las. Fazer com que o que à partida não liga se torne possível de encaixar em harmonia. Penso que esta tua característica é tipicamente portuguesa. É de todos nós, como a voz da Amália e a tua própria voz. Por isso te amámos todos. Porque és de todos nós. E tens em ti o melhor do que é ser português.
Passaram-se décadas, durante as quais fui decorando as tuas músicas, absorvendo os teus poemas até que tu fizesses parte da minha história de vida. Gosto de te considerar um amigo.
Um grande amigo, que me enche de alegria com as suas cantigas e vontade de viver!
Não é tão comum assim encontrar alguém com essa força toda, esse poder de se relacionar com o mundo com sabedoria, essa lucidez de encarar a vida. Que grandes lições nos dás a todos nós, meros mortais, António, com os teus refrãos directos e apelativos.
Um dia aconteceu um milagre! Ouvi na rádio uma música tua, original, cantada pela Manuela Azevedo. Tinhas voltado com canções nunca antes ouvidas. Eram os Humanos (Camané, David Fonseca e a Manuela Azevedo) com um álbum inteirinho de novidades tuas, muito bem musicadas e interpretadas. Que maravilha, António! Que saudades tínhamos, eu e Portugal, de ti. Fizeram-se concertos e tu foste celebrado por várias gerações. Pessoas que te conheceram ainda em vida e seus filhos e netos que não tiveram essa sorte. E poderiam ter tido. Não fosse a falta de informação sobre um vírus mortal que ainda não foi debelado e hoje mata sem discriminar.
No entanto, António, conseguiste ainda assim, em tão curto tempo, sentindo sempre que te fugiam os dias, deixar a tua marca na história. Não na historiazinha de casa de banho como com humildade dizias, meio a brincar, meio a sério, querer ficar, mas na história verdadeira da música portuguesa.
Continuo sem ter uma morada para onde enviar a minha carta. Gostava que as palavras tivessem um poder mágico de fabricar uma ligação cósmica que lhes permitisse encontrar o caminho até esse sítio onde te encontras.
Fico com essa esperança. E que estejas feliz a observar as crianças que te cantam no nosso país de hoje.
A minha filha tem 6 anos. Quando aprendeu a cantar ainda não sabia escrever. Depressa decorou o “Muda de Vida”, A “ Maria Albertina”, o “ Não me Consumas”, o “ Tu Aqui” e tantas outras. Suspeito que para ela também te tornarás um ídolo. Quando o meu bebé de 11 meses souber falar o nosso duo passará a trio. E assim sucessivamente através das várias gerações. Enquanto este povo tiver memória e alma.
Até sempre, querido António Variações, um abraço desta que te adora:
Ana Marques
20/7/2007