Relógio de Areia

A

I.L.P. e S

[...] Certa vez me disseram que o relógio, assim como o tempo, são iguais para todos. Mas será que mais uma vez mentiram para mim ? Ora, pois, vejo que agora o tempo não percorre como outrora, é moroso, é lento e quase nulo de tão parado. E este relógio que já conferi uma duas ou três vezes se acabou a energia que lhe permitia se movimentar, pois parece que esses ponteiros não saem do mesmo local.

É tão comum e tão estranho dizer que o tempo anda tão estranho. E as coisas estão assim desde que você decidiu ficar longe. Não, não pense que essa é uma carta de amor. É um desabafo de fim de noite em pleno dia. É quase que aquele receio de consciência que se tem antes de dormir ao lembrar de um fato marcante e petulante; aquele que nos tira o sossego do bom sono.

E eu que havia mesmo acreditado; aprendi, tão nova, que Cazuza estava errado. Sim, o tempo pára, aprendi que nem todas as promessas de amor são reais, e que nem sempre terei você aqui para te dar o alimento de alma que ambos precisamos.

Lembra de quando me dizia que essa poeira precisa ser limpa para não se acumular? Pois eu me lembro disso, lembro que me disse que resquícios do passado não devem ser guardados, e assim o fiz, mas por quê essas coisas me atormentam tanto? E eu que sempre me guardo para a nova hora que vai chegar e anunciar um novo dia, fico parada, olhando esse maldito relógio que não segue como deveria.

Reafirmo, não é uma carta de amor, é um anúncio de revolta às mentiras que me contaram todos esses anos. Em pensar que o tempo é o mesmo, que o amor é vivo em todos, que todos têm disposição de amar como devem, que a vida é singular, que...

É só um suspiro, tão desconexo e perdido como todo o restante dessa carta. É um afago na hora errada, porque o tempo não passou. É um desânimo que se perde na ânsia de não fazer nada. Lygia disse que os amantes retornam ao Jardim do Paraíso. E por essa frase me fiz inteira a pensar em como àqueles que amam fariam isso. A resposta veio em uma posse lenta, quase velha de tão lerda. “É que os amantes, são os únicos que resultam de sua ‘virtù’ o dom de trabalharem o tempo. E ainda assim reclamam.” Dizem esquecer que o tempo passa, e que passa mais rápido quando juntos, alegam querer fazê-lo parar afim de aproveitarem mais a presença do outro. É o ápice, é o que eu precisava para afirmar a todos que me acompanharam até agora que, sim, o tempo pára. Estaciona. Morre. -sem o amor (?)-.

Decidi comprar um relógio de areia, mas ele é muito dependente. Necessita de mim, mais que meus gatos. De hora em hora volto-me a ele, e ele vazio, de um lado diz precisar de mim para que equilibre sua vida, um lado vazio, e outro com toda areia. Penso que o amor é mesmo um relógio de areia, que precisa a todo tempo do outro para se mover, para se completar, para ter vida de funcionamento. Não posso deixar meu relógio do tempo sem mim, e me organizei toda para antes de o último grão cair eu estar perto dele para te ajudar a começar tudo de novo, como a última hora do dia que nos renova a esperança de que vai ter uma nova chance, e tudo vai ficar melhor. E eu que comecei essa carta numa inquietação sobre esse tempo estranho, agora me faço entender da maior lição de vida que aprendi, com um relógio de areia.

Ele oscila como os amantes que retomaram o Jardim, de Lygia. Por alguns segundos um lado tem mais, depois ambos têm o mesmo, e depois termina com um vazio e outro farto. Vê que esse amor é mesmo assim? Um quer o outro não, um fica bom o outro triste, depois se completam igualmente, e quando acaba, um fica vazio e o outro farto.

Agora te entendo e sei como é esse vazio de areia em nós. Sei que essa nossa transparência de vidro, portador de vida em areia, não é visível aos olhos dos que vivem e não amam. É preciso que o relógio seja transparente, senão ele morre, pois não verei o momento que tenho de retomá-lo à vida. E tem gente que não se dá esse direito de transparência e morre sem poder ser ajudado.

É quase hora de voltar a te ver, meu relógio; esse não pára como o de ponteiros, e me dá a sensação de que sou (f) útil.

Sei que agora o tempo pára em benefício à vida de todos, mas só os amantes entendem isso, pois declamam vida em versos, e versos de amantes costumam ser calmos, tempo suficiente para compreenderem o que digo. Aos que sentem esse marasmo às vezes necessário, aos que podem soprar a poeira, mas movimentar constantemente a areia, o amor não morre assim e o tempo segue...

E cai o último grão.

Ísis Almeida Esth
Enviado por Ísis Almeida Esth em 12/12/2008
Reeditado em 13/12/2008
Código do texto: T1332013
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