A QUEDA

São Paulo, 26 de novembro de 2008

Caríssimo J. L.

Escrevo-te, postumamente, para lastimar as seis palavras mal-ditas que causaram a queda, em segundos, do nosso reino de dezoito anos inteiros.

Perdoa-me, Rei. Sigo para o desterro. Não me podes perdoar agora (para sempre não o poderás?). Eu o sei. Poderia eu perdoar, estivesse em teu posto? O golpe que desferi foi mortal, o incompreensível e repentino golpe sobre tua cabeça e tua vida.

À distância, vejo-te a velar teus mortos, a cuidar da sobrevivente. À distância, vejo-te a pensar a ferida que te fiz sobre o pouco da pele intacta. És todo Ferida, neste momento, és inteiro Perda. Sei, no entanto - este o consolo, que não me absolve - que o teu Rei interno sempre acaba por triunfar sobre a Paixão.

Sobrevives sem mim. Sobrevives, certamente, como sobrevives à perda dos descendentes. Tua força é a dos que não se submetem às ilusões do Ego. Tua Dor é um Entusiasmo, que o Ser dentro de ti jamais te desabita do Saber.

Eu te presto este preito derradeiro. Eu, já no caminho do exílio que me decretei. Eu, nestas inferas, nesta solidão plutônica, sem saber-me Perséfone, sem qualquer poder de adivinhar-me no tempo cíclico de sombra e de luz. Eu, inteira sombra apenas, neste agora só de sombras.

Junto comigo, a seguir-me colado à pele, a sombra do outro rosto, aquele no qual sempre surpreeendi, ainda que nos momentos de máxima claridade, a presença da sombra da morte. O rosto do outro, este que se quer e se faz simulacro de um Dom Quixote, este impossível-em-si-para-si-mesmo, este que se busca nas periferias, não no centro, este antípoda, no qual me espelho, este igual de cujo reflexo me desvio, ainda que sempre de modo infrutífero. Este que não mais me contém em si e morre desta ausência. Este que me segue, colado-me à pele, à revelia de nós ambos, para nenhum destino, comum nem alheio. Este outro, Rei destronado apenas por si mesmo, a permanecer no deserto inventado (por escolha) no centro do próprio reino conquistado (por mérito próprio). Este outro Rei, por ação voluntária, bobo-da-corte do reino seu legítimo( e legitimado). Este Rei outro, que me segue esquecido de tudo o que poderíamos ter sido, esquecido de tudo o que poderíamos ainda vir-a-ser, ainda que "apenas" o reconhecimento (de novo), do rosto do outro na face do próprio espelho.

Rei, a quem feri com as seis palavras mal-ditas: Sei que prosseguirás no caminho indicado pelo teu Sol. Tu, que sabes quem és e para o quê vieste. Tu, a quem não iludem as vestes do Ego. Tu, a quem golpeei com seis palavras mal-ditas, vindas diretamente da minha sombra. Sei que seguirás, inteiro como és, inteiro como te fizeste, à custa de infinitas transmutações.

Eu abdiquei de nós, do privilégio de ter-te como companheiro, para esta terra de solidão sem nome, terra através da qual me segue a sombra do outro colada-me à pele, a sombra deste outro que não me reconhece mais, que talvez jamais me tenha reconhecido, verdadeiramente, mesmo nos tempos em que nos afirmávamos a

mútua comunhão. Rosto-máscara de mim, sobre outras infinitas máscaras-rostos de mim ( de nós?), assim todos presenças-perdas confundidas, a seguirem desanimadas, sem antevisões de terras-outras, apenas a seguirem, pela presente terra-de-exílio.

Zuleika ( à falta de algum heterônimo que me pudesse neste instante inventar-me, heterônimo quiçá consola-dor, impossível nome que me pudesse outorgar, a seguir-me também, através do exílio que me decretei).