Carta de uma anciã - Que culpa tem eles? Eu Sou Invisível!

Logo que me associei ao Recanto das Letras, escrevi o texto sobre o Idoso, (14/03/08).

Hoje, eu lhes envio a carta de uma anciã relatando o desprezo que a família lhe infligia.

Que culpa tem eles? Eu Sou Invisível!

Já não sei em que dia estamos. Lá em casa não há calendários, e na minha memória

as datas estão todas misturadas. Recordo-me daquelas folhas grandes, uns primores, ilustradas com imagens dos santos que colocávamos ao lado do toucador.

Já não há nada disso. Todas as coisas antigas foram desaparecendo. E sem que ninguém desse por isso, eu também me fui apagando...

Primeiro, mudaram-me de quarto, pois a família cresceu. Depois me passaram para outro menor ainda, com a companhia das minhas bisnetas. Agora, ocupo um cubículo que fica no anexo da moradia.

Prometeram-me substituir o vidro partido da janela, mas... Esqueceram! Todas as noites, - entra por lá um ar gelado que aumenta as minhas dores reumáticas.

Mas... O que fazer?

Desde há muito tempo que tinha intenção de escrever, porém

passava semanas à procura de um lápis, e quando o encontrava, voltava a esquecer onde eu o tinha colocado.

Na minha idade, todas as coisas se perdem facilmente.

É claro que não é uma doença, mas o esquecimento! Estou certa que as tenho, elas é que desaparecem.

Uma tarde destas dei-me conta de que a minha voz também tinha desaparecido!

Quando falo com os meus netos, ou com os meus filhos, eles não me respondem.

Todos falam sem me olhar, como se eu não estivesse ali, mas eu ouço atenta ao que dizem.

Às vezes, intervenho na conversação certa de que o que vou dizer poderia ser-lhes útil, mas não lhes ocorre esta idéia.

Não me ouvem, não me olham, não me respondem.

Então, cheia de tristeza retiro-me para o meu quarto e vou beber uma chávena de chá. Faço assim de propósito, para que percebam que estou aborrecida, para que compreendam que me entristecem, venham buscar-me e me peçam perdão …

Porém, eles me ignoram...

Quando o meu genro ficou doente, pensei ter a oportunidade de ser-lhe útil, e levei-lhe um chá especial que eu mesma preparei. Coloquei-o na mesinha e sentei-me à espera que ele o tomasse. Só que ele estava a ver televisão, e nem um só movimento

me indicou que dera conta da minha presença a seu lado. O chá pouco a pouco arrefeceu, e com ele, também o meu coração...

Um dia destes disse-lhes que quando eu morresse, todos iriam arrepender-se.

O meu neto menor, disse:

- “Ainda está viva avó?”

Acharam todos tanta graça, e não paravam de rir.

Chorei três dias no meu quarto, até que uma manhã entrou um dos rapazes para ir buscar um skate. Nem o bom dia me deu. Foi então que me convenci de que sou invisível...

Uma vez, parei no meio da sala para ver se me tornando um estorvo eles me notassem. Porém, a minha filha continuou a varrer à minha volta sem me tocar, enquanto os meninos corriam de um lado para o outro sem tropeçar em mim.

Um dia, os meninos vieram dizer-me que no dia seguinte iríamos todos passar um dia no campo. Fiquei muito contente.

Há tanto tempo que não saía, e mais ainda, não ia ao campo!

Nesse Sábado, fui a primeira a levantar-me. Quis arrumar as minhas coisas com calma. Nós, os velhos, demoramos muito a fazer qualquer coisa, e assim, adiantei o meu tempo para não nos atrasarmos. Muito apressados todos entravam e saíam de casa a correr e levavam as bolsas e os brinquedos para o carro.

Eu estava pronta, e muito alegre, permaneci no meu cubículo à espera deles.

Quando dei conta, eles já tinham partido, e o automóvel arrancou envolto em algazarra. Compreendi então que não tinha sido convidada.

Naquela hora, o meu coração encolheu e a minha cara tremeu como quando a gente tem que engolir a vontade de chorar.

Eu os percebo. . Eles têm o mundo deles.

Riem, gritam, sonham, choram, abraçam-se, beijam-se.

Já nem sei qual o gosto de um beijo. Dantes, beijava os pequeninos e era um prazer enorme tê-los nos meus braços como se fossem meus. Sentia a sua pele macia e a sua respiração doce bem perto de mim.

A sua vida nova dava-me alento e vontade de cantar canções de que não imaginava lembrá-las. Mas um dia, a minha neta Joana, que acabara de ser mãe disse-me que não era bom que os anciãos beijassem os Bebês.

Por questão de saúde...

Desde então, não mais me aproximo deles.

Não quero transmitir-lhes nada de mau! Tenho tanto medo de

contagiá-los!

Eu os perdôo já que...

Que culpa tem eles? Eu Sou Invisível!

Desconheço autoria.

Formatado também em PPS.

Marília
Enviado por Marília em 07/11/2008
Reeditado em 07/11/2008
Código do texto: T1270210
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