O DILEMA DA CRIAÇÃO

(para Akesa Santos, em Salvador)

Amada experimentadora! Sempre vou te entender, até porque nunca serei dono da verdade. O que tento fazer com os novatos e os já em período de noviciado é instigar a reflexão, o pensar sobre o que escreveu.

Cuidado com esta história de que alguém dita o texto para o ouvido! Uma alma penada ou espírito praticando prestidigitação, diria o incrédulo!

Acatar isto e publicar o texto em nome de terceiro é crime de plágio, mesmo que não se saiba o nome do verdadeiro autor, desde que este exista!

A isto chamamos psicografação. Um espírito nos dita o que escrever. Não podemos assinar este texto assim nascido! Funcionamos apenas como médiuns no exercício da mediunidade. Uma vez algo neste sentido aconteceu comigo, por volta dos trinta anos.

Lembro que havia lido Ramatis, em “Marte e os discos voadores" e "Há dois mil anos", de Allan Kardec. Por causa de minha formação familiar no espiritismo, parei de escrever durante dois anos. Queria saber se a escritura se dava por mim ou por outro espiritual.

Depois percebi que havia me equivocado, e que o texto era de minha lavratura pessoal, apesar das influências do inconsciente coletivo, de algumas crenças místicas, do pretenso fato de escutar a voz da ancestralidade, etc... Voltei a escrever, acrescido de curtida reflexão haurida nestes dois anos de absenteísmo dos domínios espirituais, em prosa e verso.

Não estou falando de como ou de onde nascem os teus escritos. O que quero dizer é que precisas refletir sobre eles...

Após o primeiro momento de inspiração, de espontaneidade, segue-se um segundo momento de inventiva, de criação, que é o da transpiração. Deixa de molho os textos. Vais ver que sairão melhores, mais densos de experimentação, de humanidade.

Insiste na criação em prosa (“discurso que vai em linha reta até o fim”), diz o Aurelião, no verbete peculiar.

Transparece que o teu discurso como prosadora é mais consistente do que o da poeta, e isto não é demérito nenhum.

E, aliás, os livros em prosa se pagam com mais facilidade, porque vendem muito mais. E é necessário pensar nisto, na publicação das obras, no custo delas, no dinheiro que vai sair do bolso do iniciante, o qual dificilmente vai ter editor que deixe de cobrar a edição. Editor gracioso só aposta em quem já tem público que vá adquirir o seu livro.

Aqui no RS, segundo amigos livreiros, com base em depoimentos e não em dados estatísticos – não tenho conhecimento de que haja tal pesquisa – livros de poemas vendem muito menos do que obras escritas em prosa.

Neste Rio Grande de Deus a percentagem dos leitores que apreciam obras poéticas varia de 30 a 35% em relação às aquisições de livros dos aficionados da prosa literária de várias espécies: crônica, conto, novela, romance, teatro, memorialismo, historiografia, etc.

Não tenho dados sobre a tua pátria espiritual, a Bahia, tão peculiar em fetiches e mitos. Talvez o baiano leia mais, porque tem uma ancestralidade mais rica. Afinal, tem 500 anos de Brasil. Este "garrão" do Brasil onde moro tem somente cerca de 200 anos de escrituração literária.

Inclino-me a entender que há mais inconsciente coletivo na Bahia "de todos os santos". O seu sincretismo religioso, a sua ginga, a sua musicalidade, tudo amalgamado na inteligência e criação de um povo aberto, produziram figuras com Jorge Amado e suas figuras míticas. Gabriela e a sua tietagem do agreste são peculiares.

Dizemos por aqui – e já isto ouvi isto fora do RS – que o baiano é tão musical que, ao simples cair de um garfo ou de uma faca, ao repenicar do som, o baiano já sai dançando... A música baiana domina o coração dos brasileiros, opera milagres na transfiguração do real.

Castro Alves, o moço anti-escravagista e o seu verso forte alumbram pátria e memória. Está vivo há mais de um sesquicentenário. Perenizou-se pelo verbo, atos e gestos. Copia-se até a basta melena e bigodes. Faz-se procissão em nome da Poesia, repete-se que a praça é do povo!

Meu incentivo é neste sentido: viver e fruir o que der. E ler muito nos intervalos. Sempre com os olhos voltados para a posteridade.

O presente é o momento da lavratura, mas o interlocutor do que se está a escrever está no futuro. Ele nos lerá se não perdermos o norte da contemporaneidade. O passado só interessa aos tradicionalistas e aos historiógrafos de plantão.

Num país que não tem memória, que lê miseravelmente e que, portanto, escreve com pouco estilo, com estética pouco apurada, permanecerão os melhores. Ficarão somente aqueles que se identificarem com o outro pólo do ofício de escrever: o leitor. Aquele a quem recomendamos o mundo recriado, o NOVO.

Mesmo que sigamos a consagrada sabedoria popular:

— Faz o que eu digo, mas não faz o que eu faço!

– Do livro CONFESSIONÁRIO - Diálogos entre a Prosa e a Poesia, 2006.

http://www.recantodasletras.com.br/cartas/125347