Carta a mim mesma
Acredito que quando te chegue esta carta, muito te trará em alegria e felicidade. Assim deverá começar a carta que eu escrevo a mim mesma, a carta que tenho almejado desde sempre receber de quem amo sem correspondência.
A carta dirá: sabe, tu precisas entender o quanto me é difícil abrir meu coração, desnudar minhas vulnerabilidades. Ainda que o orgulho me incendeie os lençóis em pleno sonho dourado, em que verto as lágrimas mais premidas por soluços, de onde expiro todas minhas poses, deixando à mostra o rosto na dissimulação de máscaras, leito incandescente de onde me levanto leve, inutilmente aliviado do fardo que, embora alvejado, arrasto todavia; ainda que sofra a sufocação da vaidade esfumada, ainda assim intoxicado pelos meus delírios de grandeza, um mártir impassível em auto de fé mantido impávido, permaneço estático e a ti não dirijo um único olhar, uma módica palavra. Quiçá um gesto invisível e vazio onde vai carreado um influxo de sangue, bílis e um jato discreto de sêmen, quase em gotas.
Que eu possa distraidamente acordar ardendo até, reduzido, chegar às cinzas; o volume da memória ainda vai pender para aquelas confissões singelas, onde o lugar comum com as confissões dos mais simplórios amantes de todas as eras e por todo o orbe retumba nos infernos e grita que, embora hoje contrafeito, terei dito a teus ouvidos, os braços enlaçados em tua cintura densa e tortuosa, que sim, com certeza seguiríamos enroscados até bem velhinhos. E Deus terá escutado essa sentença alvissareira e imensamente curta?
Ainda que eu levante banhado em suor depois de tantas noites em que repeti a outros tantos ouvidos essa sentença curta e indistintamente repisada, no empenho gigantesco de torná-la irrelevante e oca, mesmo assim, como haverei de espantar a imagem do casal de invasores, aqueles morcegos frugívoros em rodopios sobre nossas cabeças num augúrio a confirmar nossas entregas?, nossos gemidos, nossos suspiros, nossos gozos, nossas pernas intrincadas e mórbidas, a invocar a morte como exclusivo árbitro de nossa separação inaccessível.
A repetição de que és uma entre tantas, uma oração diária, inflamadamente relembrada a cada momento, é a devoção à minha indiferença rasgada na economia de qualquer contato contigo. Como podes ousar ser a deusa de um devoto monoteísta? Que tens tu para desafiar meu gozo esplêndido em explosão estrelar expansiva a todos os confins do Universo? Como instigas, pretensiosa, a devassidão do que foi nosso segredo?
De tal maneira que rejeito tuas intrusões em meus devaneios. Guardo compacto a face taciturna em noites meditativas e silentes. Renego-te na busca de ti em outros seios, mergulho em outras pernas, pois não suportaria novamente a dor de te desencontrar em irreverentes sinais de que já não me aceitas, deste jeito despedaçado que exibo ao não doar-me e ao derramar-me inteiro na recusa de dar-te passagem à intimidade de alguma lágrima, que derrame insano, a desconhecer o como ou alguma razão para pranto.
Por quê, bela entre outras tantas iguais, me indicaste a saída de ti? Assim hei de ficar até velhinhos; estaremos eu de costas a teu rosto que me espreita; ouvidos lacrados a teus gritos e cantorias e preces. Por fim, até o fim, para sempre, a recordação de uma dor que apenas sombreia, aliviadamente latente; e não me venha a suplicar que seja eu um valente para olhar dentro de tuas pupilas infames e não sucumbir a teus encantos voláteis.
Agora chega, já estás a sorrir satisfeita; basta!, volto ao abrigo de meu orgulho fulgurante a ofuscar o discernimento de tuas veias.