CARTA PERDIDA 3

Salvador 8/5/2004

Acordei por volta das 2 horas ao som de Gabriela na TV. Comi uvas e o pânico invadiu o meu resto de noite. São 5h30. Talvez um pouco mais. O sol já se faz presente e os pássaros também. Minha cabeça faz cálculos feito bomba prestes a explodir. Apesar de ter dormido pouco, não me sinto como minhas velhas tias.

Hoje é sábado. “Há a agonia de um homem dentro de uma mulher, porque hoje é sábado”. Acho que as fotos antigas, a expectativa de um trabalho e a falta real de perspectivas interromperam o meu sono, fruto da medicação.

Às vezes seria bom não pensar. Apagar a memória, até mesmo a da pele. Ainda ouço os cacos de vidro da janela do nosso quarto tocando o chão e rasgando o começo da quinta-feira. Você é louco. Queria esquecer.

O----, após detonar quase uma carteira de cigarros, ronca como aniquilador de silêncios. Temo por esta compulsão inconseqüente. Pois, apesar da mágoa ainda presente, não imagino a vida sem a sua presença. Ele enche a casa.

Estou tentando, na medida do meu possível, apagar as coisas más que este homem provocou em mim. Mas ontem, quando ele falou da vulgaridade de um beijo na TV, lembrei imediatamente do seu beijo de cabine igualmente vulgar.

Para mim, não se deve beijar por beijar para, depois, sequer lembrar o gosto, o cheiro, a saudade da boca. Mas a vida dele é assim: Um sobressalto. E isto me assusta.

Não discuti a respeito. Ou melhor, não exteriorizei verbalmente o que passo agora para o papel. Não vale a pena. Ele acha tudo isso uma idiotice. Mas não oferece o antídoto para a dor brotada do gesto e imagem congelados.

Uma foto pode, creio agora, destruir um sonho. Sobretudo o de pessoas como eu fadadas a castelos de areia que não pude edificar na juventude das praias onde estive.

Não sou mais àquela menina na janela, sentada, violão em punho, fingindo saber inglês. Há dores enormes no meu coração. Dores lancinantes. Que seja. Um dia elas passarão. Como tudo. Até como a dor de um antigo companheiro expresso numa carta ressentida perdida em meio às fotos vistas ontem.

E minha cabeça parece um barril de pólvora. Minhas pernas teimam em não me obedecer. Sinto vontade de um café de cevada. Contudo, caneta e papel se impõem na manhã de sábado. Nem sei se estou triste. Aflita seria dedução mais sensata.

Vou ligar para Lurdes. Ela me acalma. Mas ainda é cedo. Tenho que pagar R$ 1 a “Seu” Jesus. Não gosto de ficar devendo. E tem mais um monte de dívidas e hoje ainda é dia 8. Também estou cansada de ficar colada à TV. De saco cheio mesmo, além disso, me sinto impotente como se tivesse perdido o prumo de vez.

Assim náufraga, vou até a cozinha preparar meu café sem cafeína para evitar mais baticum deste coração desvairado. Pergunto-me pelos filhos, pais, amigos. Todos perdidos de vista. Pareciam tão próximos que poderíamos colidir. Agora são meros personagens na minha história que começa a tirar meu sono e a minha vontade de encarar o amanhecer...

E ele dorme. Sem dúvida, vai me trair de novo e dizer “eu te amo” para outra mulher. Eu vou sumir do mapa e ele nem vai lembrar que esteve aqui, sendo servido como seus reis franceses e malditos. Premonição? Não. Dedução de quem sabe com quem dorme ou vê dormir.

Iza Calbo
Enviado por Iza Calbo em 03/09/2008
Código do texto: T1160536
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