CARTA PERDIDA 2

Salvador, 1/05/2004

Sinto-me como nas minhas adolescentes tardes de sábado, esperando o filme que talvez nem viesse a colorir a tela amarga da TV. O repolho refogado no fogo me faz voltar à imagem de minha velha mãe ao fogão. A diferença, e só agora percebo como se fosse a pior de todas, é de não ser mais adolescente e não ter mais o tempero de minha mãe nem poder andar dois quarteirões para conversar com a minha prima inventada.

A solidão é uma crosta. Não acho entre os apetrechos de limpeza, nos quartos do fundo, dentro do subsolo insuportável, nada capaz de removê-la. E, na sala sentado, está o homem que parecia ser a saída para quase tudo. Boba ilusão adolescente num corpo sedentário de mulher adulta e sem realizações.

O choro corre solto pela face, enquanto corto cebola, alho, chuchu, beterraba, enfim... O que ainda resta na geladeira de consórcio, resto de outro casamento cheio de mágoas. E o homem na sala, inicialmente dócil e ardente, mistura-se à rotina.

Parece ter guardado para mim o azedume de seu amadurecimento. E, quando as fotos das suas “ex” pairam ante mim, até tenho vontade de ter sido uma delas. De tê-lo acompanhando em suas viagens; sentado em seu colo; recebido suas carícias, ainda que torpes e divididas entre tantas.

A vida parece parada sob este ângulo. Como areia a entupir ampulhetas quebrando a mágica do tempo passando. Do tempo. Este senhor de tantas fases e faces. Estou envelhecendo rapidamente. Posso sentir a pele enrugar, as articulações doer, o cheiro de mofo em nossa cama... Mofo que parece refletir os nossos espíritos seguindo, a cada dia, caminhos díspares entre remédios, roncos, insônias e o barulho impertinente da TV a avisar o final da programação.

Será que algum dia estarei em Nápoles, num barzinho, ouvindo-o ao violão destinando canções para mim? Ou sentada no seu colo, feito criança, ganhando afagos e ouvindo elogios por ser tão bonita no frescor da juventude? Não creio.

Ou estarei num daqueles pubs ingleses tomando cerveja escura e trocando olhares de sedução? Também não.

Quem sabe pelas velhas ruas da França admirando castelos notáveis, onde rainhas ainda dormem secretamente sem perder o sentido das noites? Pouco provável.

Talvez ali, no Pelourinho, vendo-o exibir-se com sua guitarra para, depois, ser tomada em seus braços na varanda do Stiep? Nunca.

Enfim, acho que chega. Não dá para insistir no absurdo. Não dá para respirar no tédio querendo ser, para aquele homem sentado na sala, o que outras já foram.

Só resta descascar a cebola, o alho e deixar que o repolho morra queimado na janela por ter esquecido, como uma velha, o fogo em sua potência máxima. Adolescência ida, comida estragada!



Iza Calbo
Enviado por Iza Calbo em 03/09/2008
Código do texto: T1160529
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.