O Desconhecido
Aimée, minha amiga quase distante.
Momentos felizes antecederam minha chegada à Queimadas, em certa altura o mundo interiorano me dá ao rosto um tom mais animal, a constatação de que as coisas são realmente menos coloridas do que uma página na web ou do que a beleza anestésica de um outdoor. No trajeto, vendo a vida pela janela, vez em quando um sorriso de contentamento e de reconhecimento do que é belo me vinha aos lábios e à expressão do rosto que em conjunto sorria em mim. O tempo todo pensava eu em frases que redigia mentalmente pra você, frases que descreveriam a imagem-despedida-bem-querer do que me dava à obrigação de ver saudosamente e ao mesmo tempo amar. Saudade e amor ao que desconheço, porque talvez a imagem me provocasse a sensação do que conheço: saudade, medo e esse meu louco sabor por aaaaaventurar. Os casebres na beira da estrada quase todos muito iguais, casinhas quadradas com uma porta e uma janela ao lado e uma pequena varanda em geral muito estreita que imagino dar sombra quase nenhuma. Tudo muito arquitetado em barro e mal calhado em tintas verde, rosa, azul ou amarela, todas muito claras (o que me fez pensar o porquê da escolha dessas cores de enxoval de bebê), mesmo as placas que sinalizam na pista os quilômetros ou as lombadas, objetos tão freqüentes para nós, destoam como um enorme pedaço de civilização em cores vermelha, amarela e azul de tons muito escuros.
Vários pés de Mandacaru, alguns bodes magros e vacas gordas um pouco mais à frente. A cidade de Nordestina do filme nacional “A máquina” existe aqui bem perto, passei por ela e quis ser Antônio e poder ter o controle do tempo e quis também ter a loucura sábia que Antônio já velho adquire, e saber descrever as coisas e criar conexões explicativas ao desconhecido como ele tão brilhantemente faz no filme. Em outra ocasião me imaginei sendo fulana a percorrer a cidadela de bicicleta entontecida de amor, cantarolando enquanto as imagens ao redor se fazem tão belas e satíricas. BELEZA SATIRICA. Saindo de Nordestina o ônibus parou para que embarcasse mais uma passageira para essa grande viagem, e senti um cheiro tão docemente perfumado naquele instante, sorri de contemplação. Lembrei-me de quando você me perguntou que imagem me vinha à cabeça ao sentir o cheiro daquele seu perfume de nome “Imagine”, se não me falha a memória, quis estar sentado ao seu lado ainda na Universidade. Saudade, muita saudade agora.
Na chegada à Queimadas a lembrança da fragrância docemente perfumada se esfez em merda, me disseram ter um rio aqui, mas o trecho dele que me foi apresentado logo na entrada mais parece ser esgoto, algumas borracharias na entrada e percorrendo uma estrada de pedras em direção ao centro da cidade uma pequena aléia...Palmas, palma, palmas! Muitas palmas espinhosas e resistentemente verdes formam um caminho, bem diferente daqueles em que quando criança sempre desenhávamos em direção a uma casinha tão singela de janela aberta com um jarro e uma bela flor colorida no peitoril.
Hoje à noite tomei um café com leite muito quente e por estar tão quente queimei a língua, o sabor que permanece na língua queimada pelo café me despertou uma vontade de fumar que há muito não surtia em mim. Talvez seja o fator solidão que me deixa assim susceptível, mas não fumei e nem posso, minha renite tem me provocado uma coriza desconcertante. Ainda a pouco saí para telefonar de um telefone público para meus pais e às 20 horas já não se tinha que ver na rua. Enquanto te escrevo ouso Maria Bethânia cantar Tocando em frente: “Conhecer as manhas e as manhãs o sabor das massas e das maçãs, é preciso amor pra poder pulsar é preciso paz pra poder sorrir é preciso chuva pra poder florir”. E assim me parece que consigo fazer com que a minha mente entre lentamente no tempo que as coisas aqui exigem de mim “penso que a vida seja simplesmente compreender a marcha e ir tocando em frente” TOCANDO EM FRENTE...TOCANDO EM FRENTE...TOCANDO EM FRENTE. Quero muito ainda continuar tocando as pessoas e que elas me toquem, você me tocou. Cheguei a chorar com as suas cartas que representam para mim a nossa amizade guardada à sete cartas à sete chaves.
Fica bem também!