De Neto Para Clarice 15/08/1997

Complexo Penitenciário de Taguatinga, 15 de Agosto de 1997.

Para Clarice,

Querida Clarice, espero não estar sendo inconveniente remetendo esta carta para o endereço do seu trabalho. Depois de tudo o que aconteceu sinto-me completamente envergonhado, mesmo estando com a consciência limpa. Estou preso em uma cela escura e fria, minha janela fica virada para outro prédio e o sol não bate aqui dentro. Quando acaba o intervalo do banho de sol eu volto para a minha cela e começo a pensar em você, esses pensamentos tomam minha mente de assalto e eu fico revirando na cama a noite inteira.

Talvez você já tenha se esquecido de mim, e esteja dormindo bem todas as noites. Já se passaram 17 meses desde a última vez que nos encontramos, lembro-me de todos os detalhes daquela noite, você estava sorridente como nunca, feliz com o anel que eu acabara de por no seu dedo, eu queria que aquela noite tivesse durado para sempre. Hoje eu sei que se eu tivesse prolongado aquele momento por mais alguns minutos, estaria livre de uma condenação injusta. Este foi o meu grande erro, levar você para casa voltar pela avenida e encontrar um amigo no caminho. Você já deve estar sabendo do outro cara que foi pego junto comigo naquela noite, o nome dele é Fábio também conhecido como Binho, conheço ele desde os tempos da escola, mas havia alguns meses que eu não o via. Naquela noite enquanto voltava para casa, avistei um rapaz andando apressado pela calçada, olhei de relance pelo retrovisor e reconheci o rosto do Binho. Parei o carro coloquei a cabeça para fora e o chamei, ele não me reconheceu de início, mas assim que se aproximou abriu um largo sorriso e acenou com a mão.

Depois de perguntar o destino de Binho, cedi uma carona e ele se mostrou muito contente, ele trazia uma mochila grande nas costas e estava completamente suado, disse que havia caminhado muito e estava voltando para casa. De repente fomos surpreendidos por uma blitz a nossa frente, eu estava tranqüilo, minha única pendência era uma lanterna traseira quebrada, a policia não ia fazer muito caso. Mas para a minha surpresa Binho começou a ficar muito nervoso, perguntei o que estava acontecendo e ele começou a ficar agressivo, pediu para que eu acelerasse o carro, pensei se tratar de uma brincadeira e não dei ouvido, foi quando ele tirou uma arma da mochila e apontou para mim.

Não sabia o que fazer, então tomei uma decisão automática de acelerar o carro. Quando percebi estava fugindo da polícia, depois de alguns minutos fomos interceptados por outras viaturas. Eu estava completamente perplexo, meu coração pulava pela boca e os policiais apontavam as armas para nós enquanto gritavam para que saíssemos do carro. Abri a porta do carro para sair, foi quando Binho disparou contra um policial. Neste momento uma série de disparos foram feitos contra nós. Binho sentiu-se acuado e decidiu jogar a arma para fora do carro, mas já era tarde demais, os policias não queriam explicações e eu acabei sendo acusado como cúmplice de um usuário de drogas que acabara de assaltar um posto de gasolina.

Binho decidiu dividir a culpa comigo e não fez nada para tentar me inocentar. Não o vi mais, acho que ele está preso em outro pavilhão ou em outra unidade, não sei, também não quero vê-lo mais.

Não sei se você vai acreditar nesta história, soube por minha mãe que seus pais ficaram mortificados com o acontecimento e não querem que você venha me visitar, foi por esse motivo que enderecei esta carta para o seu trabalho. Não sei se você pensa como eles, não sei se já jogou fora o anel que te dei. A única coisa que peço, é que abra o seu coração, você é a minha única esperança, é o que me mantém vivo neste inferno, quando estou triste ou amedrontado seguro o anel com o seu nome escrito e penso em você, eu pus o anel em uma correntinha que ganhei da minha mãe, ele fica perto do meu peito e é como um amuleto da sorte.

Durante muito tempo hesitei em escrever esta carta. Talvez você jogue-a fora e não a responda, sei o que pode estar passando em sua cabeça e não quero ser uma sombra em sua vida, desejo para ti toda a felicidade do mundo, mesmo que para isso eu precise morrer no esquecimento.

Com amor,

NETO.

Já Morreu
Enviado por Já Morreu em 30/07/2008
Reeditado em 17/03/2009
Código do texto: T1103899
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