CARTA AO PRATO DE BARRO
Salvador, dois anos passados
Salvador, dois anos passados
Oi meu ex-amor,
Espero que a vida tenha sido leve para você. Que a sua consciência esteja limpa, embora não consiga vislumbrar tal possibilidade depois de tudo que você fez, achando não ter feito nada. Eu, claro, segui o rumo. Não havia escolha não é mesmo? Você, ao trair o meu amor – não ousarei dizer nosso, pois não cheguei a te conhecer – me colocou num beco sem saída. Passei maus bocados. Saber da sua existência doía nos meus ossos... Agora me percebo sobrevivente de um naufrágio. Peguei carona neste seu barco fantasma e por pouco, muito pouco, não terminei meus dias escrevendo SOS na areia ou acenando para embarcações imaginárias.
Passados dois anos e alguns meses, revendo a nossa vida, noto como sou/fui fadada a perder tempo. Como quando, ainda menina, esperava pelo primeiro beijo e este nunca vinha. Por isso, comecei tarde na arte da sedução. Enquanto as meninas viviam enlaçadas aos meninos nos muros longe da escola, eu passava as horas imaginando a boca perfeita, o beijo mais doce. E aconteceu. Com 15 anos meus lábios encontraram os lábios de um belo caboclo de sorriso ensolarado. Durou muito pouco. Menos de duas semanas. Mas não esqueci.
Com você, foi quase perfeito. Quando nos vimos pela primeira vez, eu já estava com 19 anos e uma filha de dois meses. Você surgiu na pequena sala e nada fazia com que parássemos de nos olhar. Nem mesmo as palavras afiadas e ciumentas de minha amiga, agora ex-amiga, e à época uma das suas tantas namoradas.
Doze anos depois deste primeiro encontro, você me ligou e nos encontramos num bar. Você chegou correndo e, sem me dar tempo, roubou um beijo longo. Também correndo, veio seu tio para interromper. Até porque, como explicar tal cena para sua mulher e sua sogra com o seu filho – o único reconhecido por você de fato – nos braços? Tive vergonha e raiva. Te esqueci de imediato.
Insistente, anos mais tarde, você me ligou de país estrangeiro para avisar que num quatro de agosto estaria chegando e viria ao meu encontro. Falamos horas ao telefone. Passamos 23 dias cobertos num manto de amor que eu teci. Você partiu e voltou dias depois. Para ficar – você prometeu. E para ficar ao meu lado. Era setembro, lembro-me bem. Em dezembro, pela primeira vez afastados por alguns quilômetros, você me traiu pela primeira vez. Tive o prazer de jogar tuas coisas de um apartamento do terceiro andar e nos separamos.
Você passou uns 15 dias com a tal menina e, neste tempo, tentava voltar para mim. Apaixonada que era, acabei relevando. E aí, numa rede, você fez uma mea-culpa e disse que nunca mais faria algo parecido. Um ano depois, você viajou para resolver sua vida. Passou 18 dias me ligando todos os dias... Eu sabia que era você porque no celular aparecia apenas dois zeros. O silêncio veio em seguida. Nenhuma notícia, nada. Você já estava em Nápoles, com amigos, e vivendo um romance de mais 15 dias com uma menina catada na rua...
E, para manter a fama do cabra-macho, trouxe as fotos. Achei as piores escondidas. Neste dia, meu mundo veio ao chão e você pôde – pela primeira e talvez única vez – perceber o mal que este tipo de atitude idiota pode provocar em quem nos ama. Prometeu, então, nunca mais fazer tal coisa. Se enjoasse de mim, se deixasse de me amar, separaria e, muito provavelmente, segundo palavras suas, iria viver sozinho. Boba, como fui boba!
Demorou alguns anos é verdade, mas não satisfeito em ser uma pessoa tão mesquinha, me traiu mais uma vez. Desta vez, dentro da nossa própria casa, com a pessoa que me foi apresentada como uma “quase irmã”, embora eu soubesse do passado de sexo de vocês. Tão cedo iniciados... Ela tinha oito anos. Você talvez um pouco menos. Até os 16, vocês se encontravam, curtiam e transavam na velha Brasília do seu pai. Agora, vocês vivem como marido e mulher... Que bonito! Que cafajestada!
Pois bem, de nada adianta repegar o passado. Você não vai mudar nem depois de morto, como eu coloquei no romance escrito da primeira vez em que nos separamos. Este livro engavetado, talvez chegue um dia a outras mãos e esta história seja lida por outros olhos e toque corações partidos ou não. Mas não valerá a pena. O amor ficará somente nas páginas e, provavelmente, mofe em prateleiras.
É, meu ex-amor, você sabe como fazer mal a alguém.
E isto me dá certo prazer. Porque, mais cedo ou tarde, ela que agora comemora a conquista do amor passado, se pegue chorando a maldição da sua presença sublimada.
Você nunca vai estar inteiro. Isto posso assegurar.
Como pode alguém, partido aos pedaços, se doar inteiro ao que seja?
Enquanto isto não acontece, o ex-amor dela – ainda magoado e ferido por ter perdido mais tempo que eu – continua sorvendo o veneno da traição.
Eu, depois de me deixar contaminar ao extremo, achei o antídoto... Tornei você um objeto inanimado, pelo qual posso passar sem me dar conta. Demorou, mas consegui. Agora nem ouso pronunciar adeus. Seria como dar adeus a um prato de barro comprado numa feira qualquer, num dia qualquer, por mero acaso. Prato que quebrou num descuido e, pensando bem, não faz a menor falta.
Fui. Iza.