Espelho

Então meu querido, não vês? Passas por sobre minhas cartas e as calcas aos pés? Ainda que não sejam pérolas, são vestígios de virtuais lágrimas vertidas quiçá no futuro... Atenta, amado, ainda que de vislumbre. Afinal, olha-me e vasculha além de meu corpo os suspiros de minh'alma.

E eu reflito sobre o motivo de tua fútil cegueira. Será teu olhar vertido sem lágrimas no espelho? No espelho talvez pudesse eu passar em vulto manso, contido. E ainda assim não me distinguirias de tua imagem. Seria eu apenas tua sombra? Sim, queres mesmo saber? Sobre a excelência de tua performance ... de teu domínio viril ...

Sombra vã a percorrer teu espelho em desatino, eu desfolho as páginas desta carta ao vento.

Já que a mim pouco importa se te esqueço ou desfaleço. Afirmo, assim, escancaradamente, que aquilo, lá ao longe a mover-me, és tu. Não tua imagem decalcada no frio do espelho. Mas teu coração que pulsa, tuas mãos que se agitam, tua cabeça em rodopios a percorrer belezas em giros e poesia.

Clandestinamente, falando pelos cantos, mesmo quando nenhuma janela refrata a luz acesa no fundo da noite, ou ainda que vendo o silêncio de passos na calçada inerte ... eu te vejo, sim. Vejo-te sorrindo ... mentindo e ainda assim projetando no fundo arfante de meu peito vago, uma novela ... sem romance.