CARTA A JESUS

Senhor Jesus:

Um dia eu pedi, ardentemente, para ser feliz. Passou o tempo e acreditei que o meu pedido não foi ouvido ou que Você estava muito ocupado com as guerras atrozes, com a violência nas cidades e com a fome que assola o continente africano. Pensei que o meu tempo de viver esta felicidade pedida já tinha passado ou ainda estava longe, num futuro distante.

Repeti meu pedido. Em vão. Meu coração permanecia frio, vazio, insensível aos males alheios, preocupado com as próprias mazelas.

Hoje, um simples comentário de uma amiga, extraído da "Folha de São Paulo", do cronista Paulo Rabello de Castro, diz: "A vida nos oferece muitas morte, ainda que só uma nos leve embora a chama do corpo. As outras são mortes da alma, provisórias ou permanentes". Dei-me conta de quantas vezes minha prece fora atendida.

Como a águia que se retira, para renovar-se e continuar por mais trinta anos, eu também me afastei do burburinho do mundo para, no silêncio, ouvir a Voz que me guia os passos incertos, ainda de uma criança. Mas meu pensamento estava muito ocupado e dispersivo e, em vez de calar-me, falava compulsivamente.

A morte, definitiva ou provisória, empanava tanto o meu raciocínio que não conseguia vislumbrar o brilho da Sua vestimenta transfigurada. Vejo-O agora, resplandecente em glória, de braços estendidos para me levar à escola da vida e descobrir o be-a-bá da felicidade. Reconheço que as pegadas de uma só pessoa na terra fofa são as Suas quando me carregava ao colo. Nem assim, senti o calor desse Coração que batia ao meu ouvido. O fato de ter uma aposentadoria que me garanta conforto era conseqüência do meu trabalho, e não graça de Deus, que me deu capacidade e oportunidade para garanti-la. A família grande era para mim um desafio e um chamado à batalha diária pelo meu espaço vital e por minha importância pessoal nesse meio. A saúde do corpo e da mente era conseqüência da vida saudável que levara e das psicoterapias a que me submetera, sem pensar que os nomes dos terapeutas me chegaram, "por acaso", às mãos. Os amigos que tive ao longo da vida, desde o tempo de colégio, no trabalho, no bairro, eram frutos do meu esforço em ser popular. E quem me deu este talento de ser simpática? A hereditariedade?

Quando olhava para trás, via os amores fracassados, os chefes ranzinzas, minha mãe exigente e minha irmã distante. Era como se eu tivesse os óculos com lentes escuras; tão escuras que mal davam para enxergar esse passado.

Então, um dia, entrei na Igreja do Leme, numa manhã de sol e os vitrais iluminavam de colorido o chão e as pessoas. Tropecei no degrau da entrada, meus óculos escuros caíram ao chão e se partiram. Eu O vi. Estava sorrindo, com vestes brancas e o coração vermelho que pulsava em uma das mãos. E me mostrava, com a outra mão: a infância feliz em uma casa que tinha jardim, pai, mãe, irmã, avó e bisavó; perto, na mesma vizinhança, tios e primos. Era como se fosse uma imensa casa que abrigava toda a família unida. Mostrou-me em seguida os colégios privilegiados em que estudei e aprendi o que sei hoje. Os amigos da juventude tocando violão nas areias da praia, até o sol nascer. As festinhas familiares e o despertar do amor humano. Os primeiros namoros, que eu nem sabia se estava ou não namorando. O primeiro beijo, o pedido de casamento e o anel de noivado. O rompimento, primeira morte, quebra de laço amoroso, não foi um gesto impensado, mas uma conclusão de que a vida em comum entre nós não era possível. Outros se seguiram, registrados em versos ingênuos onde eu vejo, nitidamente, o quanto eu amei. Se era correspondida, isto não era importante. As viagens a lugares distantes que o meu dinheiro não poderia me proporcionar. Os diferentes costumes e amigos que fiz pelos caminhos da vida. Finalmente a possibilidade de publicar, lançar e distribuir o meu livro "Retalhos", pedaços da minha felicidade.

Senhor, Você respondeu abundantemente à minha oração e nem me dei conta de quanto eu era feliz. Reconheço isto hoje e peço apenas para as pessoas que sofrem ao meu redor desta falta tenham seus olhos abertos por Suas Mãos milagrosas e vejam o que agora me encanta. Obrigada, Senhor.

Gilda Porto
Enviado por Gilda Porto em 23/06/2008
Código do texto: T1047696
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