"PERNOGRAFIA" MORNA (3): Carta ao Poeta M. Loures sobre «A Ilha dos Amores»

Dirijo esta carta “pernográfica” e morna ao amigo e Poeta Marcos Loures, afável, agarimosa e quimérica. Procuram imitar (sem sucesso!) os seus poemas, nomeadamente a matéria amorosa, nuamente amorosa, dos seus sonetos.

Por exemplo, este, rotundo e brincadeiro: «Boiando o boiadeiro não sabia / Que a bóia quando abóia não diz nada, / Tramóia diz de Tróia a cada dia, / E a paranóia quer alma lavada. /// A jóia que me deste não valia, / Nem sói acontecer outra cilada. / Se dói o que em verdade não doía / Destrói minha alma agora rebelada. /// É factóide diria o mau político / Apenas indefeso e paralítico / O amor que a gente quer vai sifilítico. /// E morre nas esquinas, cego e cético, / O quanto não se quer amor poético, / Nem mesmo um vão carinho cataléptico...

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Hoje, 2 de Julho, já no Verão do sudoeste europeu, altero a entrada desta missiva e aproveito para pedir ao poeta amigo o perdão por ultimamente frequentá-lo tão escassamente. Prometo corrigir-me e visitar o seu recanto como dantes fazia. Abraço cordial!

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Meu Poeta, caro e inesquecível:

Conhecemos, pelo Canto IX, de ‘Os Lusíadas’, Camões celebrar «A Ilha dos Amores», que sente (parece-mo) como prolongação, em território e em atos, dos bens de Vénus. No regresso dos nautas heróis a Portugal, a própria Deusa Mãe, com a ajuda do filho Cupido, dispõe-se (acho) em ilha mística e feminina para os portugueses receberem a homenagem e honraria, antes do que o mistério, a promanar da conjunção amorosa dos sexos.

Mas por que motivo, meu Poeta, Vénus e a «Ilha dos Amores» de Vénus não possam ser consideradas protótipo e modelo de toda e qualquer mulher?

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Porque a Mulher sem dúvida, enquanto pessoa humana, corporalmente humana, se oferece à maneira de ilha, autónoma; mas não apenas. Sobretudo, porém, se acha configurada como continente de amores.

Se a experiência, feminina mais do que a masculina, não bastar, vale acudir à autoridade de poetas como Vinicius de Moraes, que assegura: «E em sua incalculável imperfeição / Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.»

Portanto, como ele, como os melhores poetas, nós, poetas ousados, deveríamos irisar de lirismos policromos toda a mulher que passa, a qual, por passar, fica espontânea aos nossos olhos e sentimentos: «Meu Deus, eu quero a mulher que passa! / Eu quero-a agora, sem mais demora / A minha amada mulher que passa!»

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Contudo, Poeta, reparemos bem na Mulher como pessoa deliciosa e acabadamente humana.

Se a imaginamos «Continente de Amores», podemos estimar que as pernas são perfeitas penínsulas, dunas de carne delicadas, que brotam naturais da perfeição; que descem do Céu à Terra como oblongos cones de contorno brandamente arredondado, de modo que, ao andarem, passo a passo traçam sobre o chão indecoroso segredos da fantasia sempre por descortinar.

Meu Poeta, as pernas femininas são como penínsulas acrónias, assentes na ousadia de invadirem universos ignotos; são regiões meigas, radicais, dilatadas no espaço, enigmáticas no tempo, torneadas, delicadamente torneadas, que istmos singulares e articulados unem à zona amendoada, escondida como crepúsculo de rosas suaves, onde o carinho abraçador aninha.

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Navegantes por mundos procelosos, como os nautas portugueses, Poeta, deixemos que a visão dessas penínsulas namoradas nos submerja em alegrias, súbitas ou reflexivas, frescas e belas, flutuantes, arrastadas pelas ondas subtis de mares nunca navegados; penínsulas andantes e bondosas, braços inversos de mar cristalinos, firmes e serenos, preságios de baía inquieta e arqueada, «cuja branca areia / pintou de ruivas conchas Citereia».

Se as percorremos, Poeta, lentamente, poderemos enxergar, segundo avançamos através da moleza curva da pele voluptuosa, três outeiros formosos erguidos com gentil soberba graciosa e a desigual distância. Ledas e deleitosas, claras fontes de prazer emanam os límpidos bicos rebuçados.

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Deslizemos, Poeta, os nossos dedos, frondentes e nobres, cavaleiros andantes loucos de amor puro por sobre os “loca amoena” em epiderme de laranjeira donairosa e de limão virginal até cobrirmos esses lugares amenos com loureiro lírico e com murta libidinosa, ao jeito de coroas peregrinas, e revesti-los da frouma aromática dos pinheiros, tão viçosos quanto imaginar-se pode. Carnais, cristalinos, resplandecentes, odoríferos, apontemos, determinados, a nossa viagem para o etéreo paraíso. Os dons de Natura rebentam em sabores a cereija purpúrea e a amora amorosa e a pêxego atapetado.

Portanto, Poeta, modelemos delicadamente a argila concupiscível e amena, calma e lúcida, que em suspiros se estremece. Observa que céu e terra albergam idênticas cores florescidas ao som de violas amantes, lírios alvos e rosas vermelhas.

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Avancemos solenes, como o níveo cisne sobre lago lustroso, enquanto no coração ecoamos assobios de filomela ou queixumes de cachoeiras transparentes ou saltinhos de lebres fugazes ou silêncios tímidos de gazelas.

Com certeza geraremos, Poeta amigo, passos de lindas Deusas, ingénuas, mas subtis, e sons de doces cítaras e harpas e flautas que aquelas tangem, descontraídas no feitio descoberto do lindo corpo, formosas e nuas com o abandono da delícia.

Façamos com que os nossos dedos se conduzam como fortes e delicados mancebos, cobiçosos, a acharem caça agreste e gostosa por tamanhos vales e outeiros leves e montes deleitosos. Abandonem, porém, ferir cervos e lancem-se a passear ao longo dos espumantes ronseis ou esteiras que, ledos, traçam por entre a suavidade não de rosas ou flores, mas de pele, seda fina, que incita à veemência dos amores.

Digamos a imitação dos heróis: «Sigam estas regiões divinas e vejam, se fantásticas são, se verdadeiras.» Sem dúvida, os dedos acelerarão, velozes mais que gamos, as carícias e atingirão as ribeiras labiadas do amor, atentos a sorrisos e gemidos.

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Fechemos os olhos e aparecer-nos-ão ninfas de cabelos de ouro, que o vento leva, e de fraldas de cetim, que o desejo acende, e de carnes macias súbito mostradas ... Talvez seja o momento de nos render à condição venturosa de «Leonardo, soldado bem disposto, / Manhoso, cavaleiro e namorado.» Dantes, triste em amores, mas, bendito de Vénus na sua Ilha achou Efire, «exemplo de beleza, / Que mais caro que as outras dar queria / O que deu para dar-se a natureza.» Afinal a Ninfa pura tornou-se em benéfico dom e deixou de fugir e venceu da fortuna a força dura e, em quanto desejou, foi-lhe seguindo com apenas não lhe fugir!

De facto, «não fugia a bela Ninfa, tanto / por se dar cara ao triste que a seguia, / como por ir ouvindo o doce canto, / as namoradas mágoas que dizia.»

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É a triste sina que temos os poetas: Que as Ninfas volvem a nós o rosto sereno e santo e, banhadas em riso e alegria, cair se deixam aos nossos pés desfeitas em puro amor...

Isso dizem alguns... Ignoro se é certo.

Entrementes continuemos a discorrer fantasias de famintos beijos na floresta e mimosos choros que resoantes e afagos suaves e ira honesta que em risinhos alegres se torna!

Acabemos o nosso percurso ao confim das penínsulas do prazer.

Como Camões sentença: «Melhor é experimentá-lo que julgá-lo, / Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.»

Talvez a Mulher, Ninfa perfeita, nos tome pela mão, nos leve e guie até ao cume das suas elevações excelsas e divinas e, com ela, passemos a maior parte das horas diurnas e noturnas em doces jogos e em prazer contino e, submersos nos seus paços, logremos amar-nos pelas sombras, entre as flores.

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Foi o meu cativo fantasear e foi a carta a ti, Poeta criador e Sonetador imaginativo.

Abraços camonianos.