Carta de Meu Pai

Curitiba, fevereiro de 1.964



A sua bênção, Papai!



É com satisfação que pego esta caneta para escrever estas mal-traçadas linhas, dar as nossas notícias e ao mesmo tempo saber as suas. Papai, nós vamos como Deus quer. A Betiza vai bem mais os meninos. Agora espera mais um. Meu Deus, nós já temos cinco, porque mandar mais uma criança pra sofrer? Será que desta vez vem a menina? Eu nunca esqueço da que perdemos, tão bonitinha. Depois que ela virou anjinho vieram mais quatro meninos. Acho que Deus não gostou do nosso jeito de cuidar da sua santinha, não mandou mais nenhuma. Agora que estamos aqui, nesta terra fria, pode ser que venha uma moça. Eu não sei como é que o Jocelino ainda está vivo, bota lombriga sem parar, chega o bucho está inchado. Só mesmo pela vontade de Deus esse menino completa um ano vivo. Papai, o senhor não avalia o frio que faz aqui. Chega a ficar abaixo de zero. Parece que os dedos vão quebrar e o queixo bate sem parar. Só mesmo debaixo das cobertas pra resistir. E nós não temos muitas cobertas. Os meninos dormem juntos e às vezes brigam porque é uma coberta só. O pequeno dorme mais nós. Papai o povo daqui não é igual ao do Ceará. Acho que o frio gelou os corações deles, ninguém é de muita prosa, não se vê muitos sorrisos. Também, quem é que vai sorrir pra mais um nordestino, sem recursos pra sustentar sua mulher e cinco filhos, fora o que está na barriga? Nessas horas dá vontade de embarcar no primeiro ônibus e voltar pro meu Ceará. Mas de que adianta? Já fiz isso uma vez, quando estava em São Paulo, e deparei com a seca. O inverno ruim não deixa a terra sustentar o povo. Por isso vim pra cá. Eu sinto não ter qualificação, mas faço qualquer coisa: padeiro, cobrador de ônibus, servente de pedreiro, o que mandarem eu faço. O Osmar está vendo se arranja uma vaga pra mim como policial. É perigoso mas pelo menos tem pagamento todo mês. Aí nós paramos de viver de favor. Acredito que aqui os meus filhos vão ter mais chance. Aqui tem escola pra todos eles. Eu sonho que eles vão crescer e virar pessoas estudadas. Ninguém vai torcer o nariz quando um deles entrar num restaurante, numa repartição, num escritório. Não, Papai, vão olhar pra eles com respeito, porque eles vão ser gente importante, estudada. Nem vão lembrar desses meninos franzinos, coitados, que mal têm o que comer hoje. É por isso que eu me sacrifico, Papai. Nem que eu me mate de trabalhar esses meninos vão estudar e ter uma vida melhor que a que eu tive. Eu vou cobrar isso deles, uma vida melhor pra eles e pra mãe deles. A minha Betiza, coitada, nem parece aquela menina com quem casei. Os sofrimentos da vida judiam da minha pobre mulher. Mas ela é forte, acho que mais que eu. De sua boca não se ouve uma queixa, nem sequer um resmungo. Cuida dos filhos como ninguém e faz a pouca comida que consigo render muito, muito. Às vezes penso que não tem mais comida e, quando vejo, lá vem ela com um prato pronto pra comer. Nos seus olhos tem um brilho que eu não sei explicar. Esse brilho me anima e me mantém lutando quando penso em esmorecer. Deus abençoe esta santa. Papai, eu desandei a falar de mim e esqueci de perguntar, como está o senhor? Como estão a Maria, a Creuza, o José, o Raimundo, a Zefinha, a Nega? Como vai Zezé, o Joaquim? Como estão todos vocês?... que o destino me fez deixar, viajando dias e noites pra chegar neste lugar que não é meu, mas nele sonho meus filhos poder criar. Papai, peço que reze por nós, porque lágrimas já cansei de derramar. Pede a Deus que nos ampare, pra o melhor caminho podermos trilhar. E se muito já pedi, mais um pouco vou ousar, meu Deus, dai-nos saúde e mande chuva pro meu Ceará.