Vivos mortos ou mortos vivos?
Esses meses da minha ausência foram muito difíceis, mas bem mais difíceis para nossa avó. Vó Clara era geniosa, firme e meio radical em seus métodos de disciplina. Apesar de ao longo dos anos termos uma certa admiração e respeito uma pela outra, a convivência não era muito fácil. Talvez ela como mãe tivesse ciúmes do filho a quem eu passei a prestar meus cuidados logo após meu casamento. Ele estudava a fundo Ufologia e éramos muito amigos. Talvez, o amor que ela tinha pelo neto (meu marido) era tamanho que além de ser eu reprovada por ela para ser a esposa ela possuía aquele cuidado meio que exagerado, acreditando que apenas ela era capaz de cede -lo... Não sei... Mas, por muitos anos vivíamos assim: cada uma no seu canto, com todo respeito possível, mas sem nenhum laço de afetividade.Aos 87 anos, a mente era bem lúcida, mas o corpo sentia o peso dos anos. Foram pouco mais de 3 meses de sofrimento para ela, cansaço, fraqueza. Apesar de ter ainda três filhos e muitos netos, ninguém se prontificou a cuidar dela, ficando para nós esta responsabilidade Ela lutava dia após dia para manter -se viva um pouco mais. Ela não queria ir... Não era uma doença que a degenerava... Era a muita idade que a impedia de ter uma vida plena. Trabalhava a sua mente para que ela pudesse buscar daquela força descomunal que surge quando menos se espera, para que ela pudesse reagir, se recuperar e se restabelecer. O corpo já não tinha mais reservas de energia e força, mas ela só pensava em viver. Queria ver o bisneto crescer: ela era apaixonada por ele e se derretia ao ver suas peripécias. Mas, a uns oito anos atrás, ela perdeu seu filho (meu sogro) e com essa perda veio uma depressão que se arrastou por todos esses anos trazendo consigo todo tipo de desgaste físico e emocional. Seu corpo antes saudável e bem cuidado passou a sofrer de males como o Mal de Parkinson, a Labirintite, Pressão Alta e além de tudo isso ela era cardíaca. Anos chorando e se deprimindo pela perda de seu ente mais querido, debilitou seu corpo de tal maneira que quando precisava reagir a alguma doença tratável e passageira, suas forças minavam e a deixavam mais debilitada ainda.
Era mais um dia de cuidados, exercícios e atenção... Era a rotina que vivia há meses... Ela havia se recuperado bem do dia para a noite. Ela se sentia amada e cuidada.De repente, o coração parou! Eu a levava ao banheiro após o lanche da tarde como todo dia era feito. Ao entrar no banheiro, seu corpo e seu olhar pararam! Não percebi que ela estava indo embora, mas como todo dia estava sendo exatamente igual, logo me dei conta. Um misto de desespero e racionalidade tomavam conta de mim: era preciso socorro urgente, e era preciso controle emocional para poder prestar os primeiros socorros. Assim ela se foi: sem que nada pudesse ser feito! Em um minuto ela estava conversando, deliciando -se com seus biscoitos de limão...Em outro minuto ela estava partindo.
Muito aprendemos com a vó nesse período em que cuidamos dela... Não só no momento de sua partida, mas durante os últimos dias que com ela convivemos. Tivemos a oportunidade de expor qualquer tipo de ressentimento que pudéssemos ter uma pela outra, relembrando mal entendidos, nos acertando. Não imaginei que ela fosse partir tão rápido, mas acreditei que eu deveria me acertar com ela enquanto tinha a oportunidade. Depois disso, nasceu uma amizade muito bonita... Ela se sentia segura comigo e eu sentia prazer em cuidar dela.
Aprendi um pouco mais sobre os idosos: deixam de ser adultos experientes e bem vividos e voltam a ser criança. Precisam de todos os cuidados que um bebê necessita: são frágeis, vulneráveis, sentem medo, solidão e insegurança.
Aprendi e compreendi melhor sobre as fases que passamos neste mundo, as mudanças que o corpo sofre e de como a vida pode ser complexa e intensa, como também muito vazia.
Aprendi que desde uma criança até o idoso, cada um tem sua parcela de responsabilidade para que esse grande ciclo mantenha -se em harmonia e que apesar de cada idade trazer uma aparência e representar algo, somos todos iguais e estamos interligados.
Cada ser neste mundo tem um papel fundamental para crescimento e evolução mútuos: somos uma cadeia de vida... Um coletivo, e por mais que tentemos nos firmar como indivíduos o inevitável vem para todos, de qualquer idade, de qualquer classe social e de qualquer religião, para que possamos entender entre várias coisas que precisamos uns dos outros, que estamos aqui de passagem, temos cada um a responsabilidade de uma tarefa que deve ser cumprida, e recebemos através dos caminhos que seguimos e de nossos resgates aqui lições que nos aprimoram.
Essa foi a lição aprendida: a voz de Cristo ainda ecoando o ensinamento eterno de amar ao próximo como a ti mesmo. Perdoar os inimigos e lançar no mar do esquecimento todo ressentimento, mágoa e rancor.
Deus nos deu a família para entendermos o princípio da coletividade. Para iniciarmos em pequeno ou grande grupo como precisamos uns dos outros, como perdoar, como aceitar as pessoas como elas são, pois isso é o amor!
Aprendemos também que não importa quem a outra pessoa é, como vive e como pensa: importa quem somos nós! A outra pessoa... O próximo... Mesmo que seja nosso inimigo, antes de qualquer coisa que seja é uma pessoa como qualquer outra, sujeita as mesmas coisas e pertencente também a esta grande cadeia coletiva da vontade Divina. Independente de que corpo a vida escolha para habitar, como escolhe viver e pensar, cada ser deste mundo desempenha sua tarefa para o bem maior e para todos os que estão prontos a aprender.
Estávamos no velório e enterro e cada parente reagia a seu modo. Ficou mais evidente o que sempre digo a mim e as pessoas: tudo passa, tudo tem um tempo determinado e nada é por acaso.
Estamos neste mundo de passagem e sujeitos as coisas deste mundo. Toda luz um dia se apaga, toda cor um dia desbota, tudo se deteriora. Mas o que é verdadeiro dura para sempre.
Hoje, tenho muito mais consciência de que somos muito além do que apontamos e condenamos no outro. Anseio por humildade para aceitar que somos todos iguais, expostos aos mesmos males, as mesmas dores e tristezas. O modo como reagimos a este mundo é que nos torna diferentes.
Nada somos: se não fosse a misericórdia do Divino já teríamos sido consumidos.
Anseio para que possamos perdoar, viver intensamente, perseverando sempre no bom caminho. Anseio para que não nos apeguemos a nada, nem bom nem mal que pertença a este mundo, pois o que pertence a este plano, neste plano ficará.
Mas nós, imagem e semelhança de Deus somos em nossa essência verdadeiros e eternos.
Esta vida é uma passagem e se nos permitimos, ultrapassaremos nossos estágios!
Ninguém morre! Apenas muda... Transforma-se... E volta pra casa!