"Minha Vida de Mascate" =Recordações de um tempo tranqüilo ( 1972/ 1977)=
Meu amigo ítalo-brasileiro, Carlo Tagliani, colocou à minha disposição, para que eu tentasse vender a algum amigo ou cliente no Banco do Brasil, um colar de esmeraldas inscrustadas em ouro branco. Uma jóia fantasticamente bela e muito cara (para os meus padrões, certamente). Eu teria trinta dias para vendê-la e ganharia uma comissão de no mínimo vinte por cento caso o conseguisse. Saí da casa dele entusiasmado. Vinte por cento sobre o dinheirão que aquilo valia era tudo que eu queria como capital naquela época. Durante aquela noite abri e fechei a caixinha preta uma dezena de vezes para admirar aquela maravilha verde e refulgente. Jamais havia pego nas mãos uma jóia tão bela e tão cara.
No dia seguinte percorri todos os andares da agência centro do Banco do Brasil em São Paulo. Consegui alguns interessados, mas possibilidade de fechar negócio à vista, nenhuma. Dois dos clientes mais amigos, e mais abonados, quiseram comprá-lo, mas para pagamento em algumas parcelas . De preferência sem juros. Não aceitei na hora e fiquei de pensar sobre o assunto. Pegar cheques pré-datados e depois descontar com algum agiota seria encarecer muito a já bem cara jóia.
Andava com aquela preciosidade, embalada em uma caixinha preta, com receio de um extravio, de um roubo a qualquer hora, e comecei a pensar em devolvê-la ao meu amigo.
Liguei para ele e fiquei sabendo que estaria viajando por alguns dias. Ao recolocar o fone no gancho a idéia me veio: corri para a Caixa Econômica Federal, empenhei o colar, peguei um belo maço de dinheiro graúdo, passei em casa, fiz minha mala, peguei meu carro e fui embora para Minas Gerais. Mais precisamente para Tiradentes.
Três dias depois eu voltava a São Paulo e aguardava em casa a chegada do caminhão-baú que me traria de São João Del Rey e Tiradentes as muitas peças de mobiliário, de estilo antigo, feitas do chamado jacarandá mineiro. Belíssimas cópias de móveis do passado, tais como bancos de fazenda entalhados, cadeiras rústicas, mesas de tampo grosso com gavetas (as famosas “mesas de pão-duro”, feitas com gaveta para esconder comida caso chegasse alguma visita), porta-revistas, porta-bíblias, e muitas outras peças variadas.
Dois dias depois eu já havia vendido tudo que trouxera. Alguns comerciantes da rua Augusta, Estados Unidos, da avenida Santo Amaro e outras, adquiriram tudo que eu havia trazido e ainda pediram mais. Fiquei cheio de encomendas para uma próxima viagem.
Com o dinheiro na mão, fui até a Caixa Econômica, paguei o penhor da jóia, levei-a até a casa de meu amigo e a devolvi. Mas não escondi que a empenhara e que usara o dinheiro como capital. Contei também o que comprara e o quanto havia ganhado naquela jogada.
Meu amigo riu, disse que eu tivera uma ótima idéia, e perguntou-me se eu não me importaria de voltar a empenhá-la e depositar o dinheiro na conta dele. Claro que eu não me importaria de prestar esse favor a um tão bom amigo.
Fiquei de voltar no dia seguinte para pegar o colar de volta. Naquela noite uma pessoa, por coincidência, queria examiná-lo, e parecia muita interessada, segundo ele.
Voltei inutilmente. Na noite anterior meu amigo havia vendido o colar por um preço bem mais alto do que pensara anteriormente. O comprador sabia o exato valor da jóia e pagou sem regatear. Fiquei feliz por ele e, para não perder a viagem, comprei em suas mãos as caixinhas de “strass” que me haviam encomendado em Minas. Uma mercadoria altamente lucrativa e de fácil transporte em vista do pouco peso e tamanho.
Em Tiradentes, em questão de minutos, negociei todas as caixinhas de pedrinhas brilhantes. Eles as usavam na confecção de bijuterias prateadas, às quais davam o enganoso nome de “prata de Tiradentes”. Prata era só o banho final, às vezes muito fraquinho, dado em cima de alpaca pura.
Em franco progresso, desta vez chegaram a São Paulo dois caminhões cheios de móveis rústicos. Muitas dezenas de peças grandes, belas e caras que vendi em questão de horas.
Com aquela dinheirama no bolso, aquele belo capital conseguido em menos de quinze dias, fiquei com vontade de diversificar, mas não me ocorria idéia alguma. E eu tinha pressa. Sei que comigo “dinheiro na mão é tentação. É vendaval...”.
Um dia ou dois depois de minha decisão de dar uma mudada de ramo, estava andando lentamente com meu carro na rua Líbero Badaró, centro de São Paulo, enfrentando um congestionamento rotineiro, quando vi um camarada ajeitando pilhas enormes de calças de veludo em uma loja. Fazia um calor de rachar naqueles dias e olhar calças de veludo dava até arrepio. Mas arrepio mesmo eu senti quando o lojista colocou a placa de preço de liquidação: CR$ 9,00 (nove cruzeiros)!! Nove cruzeirinhos por calças que eu havia visto serem vendidas até a mais de CR$ 100,00 !! Não acreditei muito nos meus olhos, mas mesmo assim entrei no primeiro estacionamento que vi, corri até a loja, confirmei o preço e pedi ao camarada que contasse quantas calças ele possuía em estoque.
Comprei todo o estoque dele a CR$ 7,50 cada uma, lotei meu Opala até o tampo e lá fui eu de novo em direção a Minas. Percorri Ouro Preto, Sabará, Mariana, Congonhas, Prados, Tiradentes, São João Del Rey, e fiquei sem calças. Sem calça nenhuma a não ser as que era obrigado a usar e que não eram de veludo. O frio chegara com tal violência à minha terra natal que vender aquelas calças de veludo foi como vender limonada gelada no deserto. Meu preço mínimo para quantidade foi de CR$ 30,00 a unidade.
Tiradas as despesas de almoço, jantar, lanches diversos, farras em Belo Horizonte, a ainda barata gasolina, um consertinho no carro, ainda cheguei em casa com três vezes e meia mais do que havia empatado.
Resolvi tirar alguns dias de férias. Andava meio cansado de dirigir centenas e centenas de quilômetros pela famigerada Fernão Dias (naquela época) e pelas terríveis estradinhas de terra ou asfalto vagabundo que ligavam as cidades que eu percorria.
Mas não pude tirar férias nem de dois dias. Encontrei um amigo que havia entrado como sócio em uma pequena empresa de bijuterias e precisava de um representante para o interior de Minas. Convidou-me e aceitei na hora. Gostei da mercadoria e lembrei-me logo de um comerciante que poderia fazer uma grande compra delas.
Dois dias depois lá fui eu para Conselheiro Lafayette com o mostruário das bijuterias.
Dirigi durante muitas e muitas horas, resolvido a não parar até chegar ao restaurante “O Cupim”. Disposição e juventude eram coisas que eu esbanjava naqueles tempos.
O “O Cupim” era um desses gigantescos restaurantes de beira de estrada, no caminho BH-Rio, e o proprietário, meu xará, uma pessoa afável, muito simpático e bem educado, e logo que chegou ao estabelecimento atendeu-me.
Olhou detidamente cada uma das peças sem deixar transparecer interesse ou desinteresse. Quando começou a fazer seu pedido meus olhos devem ter ficado arregalados: 500 dessas, 600 dessas, 1.000 desses anéis, mas variados, 400 dessas aqui, 750 desse tipo...e por aí foi se estendendo o gigantesco pedido do “O Cupim”. Meu coração parecia que ia sair pela boca, tanta era minha emoção naquela primeira venda para a empresa de meu amigo.
“Voei” para São Paulo em meu querido e sempre confiável "Opala" dourado, quatro portas, e mal via a hora de fazer a surpresa ao meu amigo e a seu sócio, um argentino tão legal que nem parecia...deixa pra lá...
Com uma velocidade espantosa, a pequena empresa atendeu a encomenda e logo saíamos, eu e o argentino, em direção a Conselheiro Lafayette. Fomos no “Dodge Polara” dele, que foi lotado até o teto, e combinamos de manter a média mínima de 120 por hora, revezando-nos ao volante.
Com que prazer eu fazia aquele carrinho chegar ao “vedeó”...O argentino dormia ao meu lado e eu descia o cacete nas retas, diminuindo só nas curvas mais fechadas.
Depois de muitas horas chegamos ao “Cupim” e nele entramos quase que ao mesmo tempo que o proprietário. Algumas horas depois saíamos dali satisfeitos da vida, com a dinheirama em uma pasta, e decididos a retornar a São Paulo direto, sem descanso.
Quando liguei o carro vi que alguma estava errada com ele, mas conseguimos chegar até a cidade de Conselheiro Lafayette e procuramos uma oficina.
O mecânico nos informou logo depois que era o girabrequim, ou virabrequim, sei lá. Uma peça que só encontraríamos na concessionária Cryshler de Belo Horizonte:
- Mas vocês terão que passar a noite aqui. A “Cryshler” fecha às seis horas e já são cinco. A menos que vocês tomem um táxi e cheguem lá a tempo. Mas já são quase cinco horas..cinco pras cinco, pra ser exato.
Corremos para o ponto de táxi e perguntamos quem era o chofer mais rápido do pedaço. Logo várias vozes puseram-se a gritar pelo “Pé-de-Chumbo” enquanto outras nos informavam que era o taxista mais maluco do pedaço.
- Esse chega até Beagá em uma hora. Ou até menos. Ocêis terão que ter coragem.
Entramos no “Opala” preto do “Pé-de-Chumbo” e demos início à mais pavorosa viagem de minha vida. O homem não apenas pilotava extremamente bem, tirando do carro tudo que podia, como não tinha o menor medo de fazer as curvas na mesma alta velocidade da reta e ultrapassava filas de caminhão na faixa dupla, na subida, na descida, nas curvas, e contando vantagens sem parar. De vez em quando eu me escondia embaixo do painel do carro e rezava fervorosamente para algum santo do qual me lembrasse. Enquanto isso o argentino ria e incentivava o outro a correr cada vez mais, desafiando-o. Hijo de una...
Às 17:54 hs. chegamos às portas da concessionária e vimos que um funcionário já as abaixava, encerrando o expediente. Corremos em direção a ele gritando que não fechasse.
Peça na mão, outro “vôo” até Lafayette, mas dessa vez devagar. Mais ou menos a cento e cinqüenta por hora.
Enquanto o mecânico colocava o girabrequim, fomos nós dois, eu e o argentino, comer alguma coisa no botequinho rústico ao lado.
O mineirinho que nos atendeu parecia uma dessas figuras de caricatura, ou o Jeca Tatu do Monteiro Lobato: magrinho, miúdo, sem os dentes da frente, cabelo muito preto e ensebado, cara toda enrugada. Uma figurinha difícil.
Enquanto comíamos, o mineirinho examinava atentamente meu amigo argentino que, alto, louro, de olhos azuis, e parecia um americano recém-chegado. Examinava-o nada discretamente. Não tirava os olhos dele e parecia doido pra puxar conversa.
Quando pedimos a conta, o mineirinho fez aquela cara de matuto esperto e quis mostrar que era poliglota. Com voz fininha e rascante nos informou que a despesa era de:
- Naife crúzeros.
“Naife crúzeros”!! Nós dois explodimos em uma gargalhada que chamou a atenção até lá no ponto de táxi. Tipo da situação que se pode dizer: rimos de chorar.
Durante a viagem de volta a São Paulo não perdemos a oportunidade de perguntar se a despesa no posto, no bar, no pasteleiro, chegava ou não a “naife crúzeros”. E ríamos com a mesma intensidade todas as vezes. “Naife crúzeros” ficou sendo minha frase inesquecível.
Alguns dias depois de minha maravilhosa venda no “O Cupim”, chegou a novidade: as antigas caixinhas pretas de bijuterias, aquelas coisinha feias e sem graça, seriam agora substituídas por caixinhas de plástico transparente, com fundos de cores variadas. Meu amigo argentino e seu sócio haviam encomendado milhares delas e estavam com um grande problema: não sabiam o que fazer com as caixinhas antigas.
Resolvi rapidamente o problema para eles propondo-me a comprá-las por uma insignificância qualquer. Quiseram argumentar que era muito pouco em vista do que tinham investido nelas. Não me faltou a contra-argumentação:
- O que dará mais prejuízo: vender barato ou jogar fora?
Queriam o mínimo de quinhentos cruzeiros por todas as caixinhas. Ofereci duzentos, rindo, e disse que o fazia apenas por amizade. Briga daqui, discute dali, xinga de lá e de cá, baixei minha oferta para cento e cinqüenta e eles aceitaram os duzentos. Bom fazer negócio entre amigos...Impunham uma condição: eu teria que tirar todas as caixas de caixinhas até a meia-noite do dia seguinte. Se ficasse uma só caixa à meia-noite, eu teria que pagar os quinhentos cruzeiros pelo lote.
Corri para a casa de meu pai, pedi ajuda a ele, e logo depois, cada um em seu “Opala”, fazíamos mais ou menos quinze viagens cada da empresa até a casa dele. Alguns minutos antes da meia-noite não restava nem lembrança das caixinhas no depósito.
Na manhã seguinte visitei apenas uma firma de bijuterias na Lins de Vasconcelos e encontrei uma interessada. A proprietária gostou de minha oferta: por apenas três mil cruzeiros eu entregaria a ela uma quantidade imensa de caixinhas de todos os tamanhos e feitios para suas bijuterias. Ela compraria todas, mas eu teria que voltar dentro de alguns dias, já que ela acabara de pagar os salários de seus funcionários e estava sem dinheiro em caixa no momento.
Quando eu descia a escadinha do escritório dela vi ao pé da mesma uma quantidade enorme de colares cafoninhas. Junto a eles uma placa oferecendo-os por apenas um cruzeiro cada. Voltei e perguntei a ela quantos colares daqueles ela possuía em estoque.
- Seu Fernando, eu estou na mesmo situação que o senhor: o senhor não sabe o número de caixinhas que tem. Eu não sei quantos colares daqueles eu tenho. Sei apenas que são umas vinte ou trinta caixas grandes cheias deles.
- Então eu lhe proponho um negócio justo: a senhora fica com as caixinhas sem saber quantas tem e eu fico com os colares sem saber quantos são.
Negócio selado com um aperto de mão, ficou combinado que ela mandaria sua Kombi para retirar as caixinhas na casa de meu pai, onde eu as havia deixado, e eu poderia levar os colares de imediato.
Eram quarenta e três caixas de colares cafonas à minha disposição para fazer dinheiro. Quarenta e três caixas que, milagrosamente, fiz caberem em meu carro.
Interior de Minas, lá vou eu de novo. Desta vez acompanhado de minha mãe, que ficaria encarregada de ir recolhendo o dinheiro das vendas e de anotar todas as vendas feitas.
Chegamos a Mariana e procurei meu primeiro cliente. Acostumado a lidar com meus conterrâneos, não botei preço nos colares. Tirei uma dúzia deles, entreguei-o nas mãos de um comerciante, e pedi a ele que “chutasse” o bom preço que eu queria.
O homem olhou, reolhou, examinou detidamente, olhou de perto, olhou de longe, fingiu que não se interessava, e eu ali calado, só esperando a resposta. Que demorou, mas veio:
- Mais que uns quarenta a dúzia eu não pago.
Fiz minha cara de desânimo total. A que esconde o entusiasmo que não se demonstra ao comprador.
- Pelo amor de Deus...A gente vem lá de São Paulo, tem uma despesa imensa, traz uma coisa linda dessas, e o senhor fala em quarenta a dúzia? Desanima...Se fizer a esse preço, quantas dúzias o senhor vai querer?
Ele olhou para a esposa. A esposa olhou para ele. Os dois olharam para mim. Eu olhei para o relógio da matriz.
- Dez dúzias para o senhor não perder viagem.
Olhei tristonhamente para minha mãe. Tão tristonhamente que a esposa do comerciante resolveu aumentar o pedido para quinze dúzias sem consultar o marido.
Entreguei as quinze dúzias, dei meia dúzia de presente para a senhora, recolhi a grana no bolso, e partimos para outra cidade. Não convinha vender para mais de um comerciante em cidade tão pequena. Um poderia "queimar" o outro. Deixei ali o meu "revendedor exclusivo" dos colares cafoninhas.
Uma cinco cidades depois, umas dez ou quinze lojas depois, não tínhamos mais nem um colar para vender. Todos haviam se transformado em dinheiro vivo, guardado na bolsa de minha mãe.
- Mãe, abra a bolsa e me deixe dar uma olhada no pacote de grana que a gente fez.
Minha mãe deu um grito e ficou pálida ao extremo. Havia esquecido a bolsa no banheiro do último restaurante em que havíamos parado.
Dei um completo cavalo-de-pau na estrada e pisei no acelerador até o fundo. A esperança era na honestidade do pessoal do interior. E não deu outra: assim que entramos correndo no estabelecimento uma sorridente moça nos entregou a bolsa dizendo:”Calma, gente. Calma que a bolsa está aqui e ninguém abriu”.
Desencarreguei minha mãe da guarda do dinheiro e tudo transcorreu em paz até chegamos em casa. Ou melhor, às nossas casas.