Memórias de um sobrevivente.

MEMÓRIAS DE UM SOBREVIVENTE

Ontem, dia 4 de janeiro de 2003, estávamos na praia da Barra de São Miguel, eu; Vívian (minha esposa); André e Lucélia (meu filho e sua namorada); Ivana e Filipe (minha irmã e meu cunhado) com seus filhos Thiago e Davi; Patrícia e Júnior (amigos); Ricardo Moreira e Graça (meu primo e sua esposa), e seus filhos Lucas e Víctor.

Conversávamos sobre generalidades, brincávamos, falávamos da vida alheia, enfim, fazíamos aquela verdadeira farofada na praia, com direito a todos os ingredientes necessários para tal.

Depois de tomarmos umas e outras, o Ricardo começou a relembrar um fato que marcou profundamente a vida de algumas pessoas que ali se encontravam: O tenebroso dia 1º de fevereiro de 1975, no qual uma tragédia abateu a nossa família através de acontecimentos distintos, porém, interligados.

Quando o Ricardo começou a narrar os fatos anteriores e posteriores ao ocorrido, estávamos dentro d’água, naquela de ficar jogando conversa fora enquanto o sol nos tostava. Éramos naquele momento, eu; Ricardo; Ivana e Filipe. Eu sabia que o rumo daquela prosa em nada agradava ao Filipe, que é tido e havido como o maior medroso de almas de outro mundo e de histórias funestas que eu já conheci. Não deu outra, com poucos minutos de narração, ele, sorrateiramente foi saindo de fininho e se encaminhando para a areia, onde estavam os outros componentes do grupo. A Ivana também não se demorou e, sob o pretexto de que o sol estava insuportável, retirou-se do colóquio, deixando-nos, a mim e ao Ricardo. Ele falando e eu ouvindo, pois, não me deixava completar qualquer observação que eu tentasse fazer.

Naquela conversa, o Ricardo fez uma declaração, que me soou como um pedido! Ele pretendia, a qualquer tempo, escrever um livro sobre estes fatos que ocorreram na véspera e no infeliz dia 01/02/1975, porém, havia uma grande dificuldade para ele, pois, não esteve presente no primeiro ato da triste cena da Praia do Françês, e teria que fazer a narrativa valendo-se das informações que colhêra da oitiva de uns e de outros, o que de fato tornaria a sua história, no mínimo pouco verídica. A alternativa para ele era que aqueles que participaram diretamente do acontecido dessem seu depoimento pessoal, contando tudo aquilo pelo que passaram, dentro logicamente da ótica de cada um, pois, cada cabeça é um mundo, vendo e interpretando os mesmos fatos, da maneira que por eles são vistos.

Foi instigado e impulsionado por esse desejo do Ricardo, que eu, Alberto Jorge Cavalcante Lins, um sobrevivente, resolvi escrever algumas lembranças que ainda guardo em minha memória, sobre aquele lastimável dia de nossas vidas.

Quero, antes de tudo, alertar a todos que possam se interessar pela leitura desse relato, que narrarei fatos muito tristes, fatos que marcaram intensamente a minha vida. Encontro-me hoje aos 40 anos de idade, prestes a completar 41, e vou relatar coisas que aconteceram nos meus 12 anos, quase 13 anos de idade, dentro da minha visão pré-adolescente, senão infantil mesmo, à época, influenciado agora pelo meu discernimento de homem maduro!

Hoje, 05/01/2003, após um dia de lazer e de trabalhos de jardinagem aqui em casa, onde até uma muda de Pau Brasil eu plantei, pensando durante o relaxamento em meu banho, em como escrever essas linhas, a emoção me dominou! Comecei a relembrar as sensações vividas há anos e anos passados. As imagens, inacreditavelmente, surgiam límpidas em minha mente como se aquelas cenas houvessem ocorrido ontem! Sentimentos de perda, de dor e de saudades afloraram, emergiram. Ainda agora, ao escrever, as lágrimas encharcam meus olhos. Relembro da minha irmã querida, carinhosa e amiga. Às vezes ela me abraçava, ficando por trás de mim com seus braços envoltos em meu peito, como aconteceu na noite anterior ao nosso passeio à Praia do Françês, na porta da casa da tia Miriam. Lembro-me ainda que ela só dormia ouvindo em seu radinho de pilhas a Rádio Mundial. Ah Valéria, quanta saudade!!!!

Lá em casa nós nunca comentávamos sobre esse dia! Eu via apenas a saudade e a dor estampadas nos rostos de meus pais. Todos nós sofríamos muito. Era como que um assunto proibido, e para nós, era natural que não falássemos sobre isso, pois, abria feridas muito dolorosas que estavam em cicatrização.

Vamos então ao meu relato:

Da noite anterior ao nosso passeio à Praia do Françês, minha memória só registra de especial o último abraço que a Valéria me deu, como já narrei anteriormente. É provável que estivéssemos todos muito ansiosos, posto que iríamos a uma praia onde nunca havíamos estado, e eu particularmente, pois teria a companhia de uma paquerinha, a Eliana, uma paulistinha que viera passar as férias junto com nossas primas de São Paulo, Nielba, Nadja e seu noivo, Virgílio. O que eu sei daquela noite é o que ouvi depois, onde a Idalva (minha mãe) dizia que a Valéria havia lhe confidenciado estar muito angustiada, com o peito oprimido sem motivo que justificasse, e que estava sentindo uma enorme saudade dela.

Passo a narrar agora os acontecimentos que ainda guardo em minha memória, daquele fatídico dia. Trago em minha mente o grosso desses acontecimentos. Perdoe-me o leitor, mas não me aterei a detalhes muito minuciosos de horas e de pessoas, e não os descreverei, por absoluto esquecimento, provocado em parte pelo tempo decorrido, como também e principalmente pelo bloqueio promovido pela vontade inconsciente de querer esquecer tudo aquilo, que por certo, apagou em mim algumas lembranças.

Daquela manhã, os primeiros registros que tenho são os de já estarmos na estrada, saindo de Maceió rumo à Praia do Françês. Íamos em dois carros, ambos de propriedade de meu pai, Edson, que acabara de tirar um carro no sorteio do consórcio. Era uma perua Belina, da FORD, de cor branca e de placas AC-5010. O outro carro era um Corcel duas portas, também da FORD, de cor verde e de placas AA-2926.

Para ser bem franco, eu não lembro qual foi a distribuição das pessoas nos carros. Sei apenas que eu estava na Belina, que era dirigida por meu pai, e o outro era dirigido pelo Virgílio, noivo e hoje marido da minha prima Nadja.

Naquela época, para se chegar ao Françês tínhamos que seguir pela BR, passando ao largo de Satuba; Santa Luzia do Norte; Pilar, e ao nos aproximarmos de são Miguel dos Campos, pegávamos uma estrada de barro que nos levava até Marechal Deodoro, onde Fica a Praia do Françês. Não era uma viagem muito agradável, mas, esperávamos que o destino final valesse o sacrifício!

Lembro-me de meu pai ter falado que pegaríamos uma variante, e a Valéria perguntou se variante não era um carro (de fato havia um carro da Wolkswagen chamado Variant), então, nós fizemos a maior mangação com ela, já que ele se referira a uma estrada vicinal.

Depois de algumas horas, muita poeira e solavancos, chegamos ao nosso destino! Paramos os carros próximos a umas barracas de palhas, usadas pelos pescadores locais. Não me lembro de ter visto mais ninguém na praia. Era como um paraíso inexplorado. Não tinha viva alma, muito menos qualquer placa de aviso de praia perigosa. Depois do acontecido ficamos sabendo que já àquela época, mais de vinte pessoas haviam perecido naquelas águas revoltas.

Mal descemos do carro e já corremos para a praia. Meu pai ficara no carro devido a um mal estar e por não ter dormido bem à noite, ele queria descansar um pouco.

Para a nossa infelicidade, ou foi obra do destino, havíamos parado os carros justamente em frente à parte mais perigosa da praia, onde hoje os surfistas pegam ondas, fora da proteção dos arrecifes.

Como não conhecíamos a praia e não havia nenhuma placa de perigo, fomos entrando na água, apesar das recomendações de meus pais para que tomássemos cuidados.

As ondas se sucediam e nós íamos pulando-as ou mergulhando para vencê-las. A Valéria então falou: “está puxando muito”. E eu, na minha implicância de rapazote, querendo me mostrar para a Eliana, retruquei: Mas quem não está vendo?

Foi só eu fechar a boca e uma sucessão de ondas nos puxou para dentro cada vez mais. A correnteza era muito forte entre uma onda e outra, e logo estávamos em uma bacia! O desespero tomou conta de todos os que estavam no mar naquele momento! Éramos: eu; Valéria; Ivana; Eliana, Téo; Viviana, e se não me falha a memória, a Nielba.

O alvoroço foi grande! Depois de muita luta, Viviana e Nielba conseguiram se salvar boiando. O Téo conseguiu se salvar nadando desesperadamente! Eu; a Valéria; a Ivana e a Eliana, não conseguimos sair. O mar nos tragava cada vez mais para dentro!

Por outro lado, na praia, meu pai; minha mãe e os outros que não tinham entrado no mar já haviam despertado para o acontecido e, desesperados, gritavam para que nós tivéssemos calma. Meu pai, alucinado, tentou entrar para nos salvar, porém, quase se afogando e exausto, vendo que não teria condições, terminou por sair das águas.

Nós quatro, aos gritos de socorro, víamos o movimento na praia ficar cada vez mais distante. Eu via minha mãe desesperada levantando as mãos e gritando, a andar de um lado para o outro!

Fomos arrastados para muito longe da praia...

Depois de algum tempo percebi a Valéria emborcada com o rosto para dentro d’água, boiando a uma certa distância. A Ivana e a Eliana já estavam no limite da exaustão. Vi a Ivana afundar por duas vezes. Fui até ela e a sustentei. A Eliana também se juntou a nós. Ambas, na tentativa de sobreviver se agarravam a mim, saltando sobre o meu pescoço. Naquele momento achei que íamos morrer, e então, não sei como, consegui segurá-las ficando com os braços estendidos como se estivesse crucificado, segurando uma em cada ponta e dizendo para elas tentarem boiar, pois, já estávamos exaustos. Quando vinha uma onda eu dizia: vamos agora, vamos tentar sair! Mas a onda se formava e não tinha força para nos arrastar para fora porquê era muito fundo. Estávamos tão longe da praia que quase não víamos mais as pessoas que lá estavam!

Num daqueles momentos eu disse para as duas continuarem boiando (quando eu digo boiando, não é na horizontal não, mas tipo nadando cachorrinho), pois, eu queria puxar a Valéria para perto de nós. A maré a havia afastado. Ela continuava emborcada. Não passava pela minha ingênua cabecinha infantil que ela estivesse morta. Eu achava que ela apenas desmaiara e que depois voltaria a si. Fui até seu corpo inerte e tentei puxá-la pelo maiô para mais perto. Não consegui muita coisa. Olhei para as outras duas, desesperadas, e resolvi voltar a elas.

Não sei quanto tempo passamos lá dentro. Acredito que foram mais de vinte minutos. Falam em meia hora. Foi uma eternidade!

Avistamos duas embarcações que vinham da praia em nossa direção. A primeira que chegou era uma jangada conduzida por um único jangadeiro. Ele ajudou as meninas a subirem. Eu subi com muito esforço. Estava exausto! Pedi para que o jangadeiro fosse pegar a minha outra irmã, que estava boiando, emborcada. Ele me respondeu assim: “Aquela ali não tem mais jeito não. Deixe que a canoa vai buscar”.

Apesar de ele ter sido meu salvador, eu o odiei por muitos anos! Primeiro, por não ter ido buscá-la, e segundo, por ter dito que aquela ali não tinha mais jeito. Eu não tinha mais forças, nem físicas nem psicológicas e, abatido, não retruquei. Hoje, passados tantos anos, consegui deixar de ter raiva do jangadeiro. Sei que ele, na sua simplicidade e rudeza, tinha razão e não falou aquilo com desprezo ou descaso. Sou-lhe eternamente grato por ter salvado a mim e às meninas!

A canoa passou por nós e foi pegar a Valéria. Não lembro quantas pessoas estavam na embarcação.

Quando chegamos na areia, minha mãe, enlouquecida, perguntou-me: “Cadê a Valéria?” Eu lhe respondi que ela estava vindo na canoa. Não tive coragem de repetir o que o jangadeiro havia me dito.

Eu e as duas meninas fomos para uma barraca de palhas de coqueiro. Lá já estavam deitados os outros sobreviventes, inclusive meu pai. Todos estávamos em choque!

Ao chegar a canoa que trazia a Valéria, minha mãe ao vê-la inerte, começou uma tentativa desesperada para reanimá-la. Fez respiração artificial, tentou aspirar a água que ela supostamente teria engolido, ao ponto de sugar pedaços de sanduíche que ela havia comido durante a viagem! Sem conseguir qualquer resultado positivo, resolvera de imediato levá-la a um hospital.

Meu pai não estava em condições de dirigir. Apareceu então um senhor que costumava passear e pescar naquela praia. Ele era de Maceió. Prontamente se dispôs a nos ajudar! Deixou o seu carro lá na praia e dirigiu o nosso até São Miguel dos Campos, enquanto o Virgílio levava minha mãe e a Valéria no outro carro, em busca de socorro médico.

Não sei qual é o nome desse senhor, mas, eu e minha família somos eternamente gratos a ele!

Soube depois que até chegar a um posto de saúde em Marechal Deodoro, minha mãe tentou desesperadamente reanimar a Valéria. Lá chegando, o médico atestou a sua morte! Eles iniciaram então, uma longa e triste viagem de regresso. Imaginem o desespero de uma mãe que tem em seu colo uma filha morta, sem poder devolver-lhe a vida! Coitado também do Virgílio, que naquele estado de nervos teve que dirigir até Maceió!

Nós, no outro carro, paramos em um posto telefônico, onde alguém ligou para Maceió a fim de dar a notícia do que havia acontecido. Não sabíamos ainda qualquer notícia sobre o estado da Valéria! Depois, continuamos viagem até São Miguel, em busca de atendimento médico para meu pai, que não estava bem. Ao chegarmos no hospital ele foi atendido e ficou tomando soro por algum tempo.

Lembro-me que o Quinzinho, marido da Helena, prima da minha mãe, ao ficar sabendo do fato, nos deu uma grande assistência em São Miguel, levando-nos para a sua casa, onde passamos algumas horas enquanto meu pai descansava após ter saído do hospital. Eu estava louco para voltar para casa e saber notícias da minha irmã!

Depois de algum tempo, chegaram à casa do Quinzinho, vindos de Maceió, o Carlinhos (irmão do meu pai e marido da Eliana Cavalcanti); o Cícero (marido da Vitória Maria, minha prima) e mais alguém que eu não lembro, que talvez tenha sido o tio Teógenes, marido da tia Miriam (ambos viriam a ser meus sogros). Ao chegarem, eu estava dentro do carro ouvindo rádio na esperança de ter alguma notícia. O Carlinhos veio até a mim e disse muito nervoso: “desligue isso aí. Vá ficar com o Edson”. Eu notei o seu nervosismo e achei que era pelo fato de meu pai não estar bem. Só depois eu soube que eles haviam encontrado na estrada o carro que levava a Valéria para Maceió, e tomaram conhecimento de sua morte!

Quando meu pai se sentiu melhor, fizemos a viagem de volta para Maceió, sem saber de nada do que estava acontecendo. Os que vieram de lá, não tiveram coragem de nos contar. Havia um clima pesado entre eles! Não lembro em que carro voltei. Quando chegamos na casa do tio Teógenes e da tia Miriam, eu esperava encontrar minha mãe junto com a minha irmã, sã e salva. No fundo eu temia que o pior pudesse ter acontecido. Ao adentrarmos à casa, ouvimos muito choro, e foi assim que ficamos sabendo que não mais teríamos a Valéria entre nós!

Não posso lhes dizer o que se passava em minha cabeça. Para mim aquilo tudo era um sonho, ou melhor, um enorme pesadelo que em breve acabaria! Não parecia real, mas sim, um filme no qual eu era um coadjuvante! Sabia que a Valéria havia morrido, mas achava que de repente ela acordaria, se levantaria e tudo voltaria ao normal. Na minha pouca experiência de vida eu não podia mensurar o que significava perder um ente querido. Aquilo era pura ficção!

Meu pai foi acomodado no quarto de meus tios, e nós, eu e todas as pessoas que estavam na casa, ficamos ao seu redor, atônitos, sem entender aquilo que estava acontecendo! Chegavam pessoas, amigos em busca de notícias. Conversavam, inquiriam, confortavam-nos. Um deles foi o Cláudio Assumpção, amigo irmão que nos deu grande apoio, principalmente nas piores horas de providenciar o funeral! Outro amigo que foi ao nosso encontro foi o Alberto Ferreira, dentista, colega de turma de faculdade de meu pai, e grande amigo em todas as horas!

Já corria uma conversa à boca miúda, sobre um outro acidente que teria acontecido com pessoas da nossa família, que estavam em União dos Palmares para uma festa no dia seguinte, da qual nós também deveríamos tomar parte.

Começava aqui, meus amigos, o segundo ato daquela tragédia do fatídico 1º de fevereiro de mil novecentos e setenta e cinco!

Acontece que ao saberem da morte da Valéria, nossos familiares que estavam no sítio de meu avô Chiquinho, na serra em frente à cidade de União, 14 quilômetros morro acima, vieram em desabalada carreira em busca de mais notícias e de algum outro carro, pois a Caravan do tio Hélio (irmão mais velho de meu pai, que viera de Salvador, onde morava, e estava ali para a festa) estava lotada e não poderia fazer o trajeto para Maceió com todas aquelas pessoas. Inacreditavelmente eles fizeram o percurso entre o sítio e a cidade, com todos aqueles abismos e buracos na estrada de barro, em menos de quinze minutos!

Chegando em União, alguns ficaram para pegar outro carro, já que o do tio hélio só desceu a serra com todos eles porquê não havia outro jeito. Conseguiram o carro do Prefeito de União, que era primo de meu pai. Um motorista da prefeitura iria levá-los à Maceió.

Já na estrada, próximo a uma pedreira na cidade de Murici, que fica perto de União dos Palmares, uma caçamba carregada de pedras, saindo do nada, invadiu a pista asfáltica sem dar chance a que o motorista do carro no qual viajavam nossos familiares, pudesse evitar a colisão. O carro era um TL, carro baixinho da Wolkswagen. Pouco sobrou dele!

Quando estávamos todos no quarto em que meu pai se encontrava, ele deitado e nós ao seu redor, ele apontou para mim e disse emocionado: “esse aqui é o herói do dia. Salvou uma irmã e uma prima!” Por um momento eu me senti envaidecido, mas, logo me veio à cabeça que apesar de ter conseguido salvar a Ivana e a Eliana, não havia salvado a Valéria, e isso era um fracasso! Na realidade eu nunca me senti um herói, pois, se tivesse conseguido nadar e me desvencilhar das ondas, teria também salvado a minha pele, e então, não sei qual seria o final daquela triste aventura! Alguns dos sobreviventes que conseguiram sair nadando, eu soube muito tempo depois, ficaram alimentando um sentimento de culpa por não terem tentado salvar a Valéria. Sinto pena deles. Ninguém ali teve culpa de nada! Foi uma fatalidade! Qualquer um teria tentado se salvar. Nós que ficamos, não saímos devido a várias circunstâncias. Também tentamos desesperadamente sair daquela situação, só que não conseguimos!

A pedido do meu pai fui com o Alberto Ferreira ao Hospital de Pronto Socorro de Maceió, que funcionava ali na esquina da Dias Cabral, onde hoje funciona a Emergência da Santa Casa de Misericórdia. Íamos em busca de notícias dos acidentados. Até aquele momento eu não sabia sequer quem eram eles! Durante o trajeto o Alberto Ferreira, que já sabia de tudo sobre o acidente, pois, havia ouvido a notícia pelo rádio, não me contou nada. Lá chegando, desci do carro e me dirigi à recepção do Pronto Socorro indagando a uma atendente sobre o estado de saúde dos acidentados da estrada de União dos Palmares. A recepcionista perguntou-me se eu era da família. Respondi que sim. Ela então me disse: “bem, o senhor de idade faleceu ao chegar aqui. Os outros estão sendo atendidos e estão gravemente feridos”. Perguntei-lhe então o nome do senhor de idade e ela me deu o nome do meu avô, Francisco de Moraes Lins. Os outros eram os meus tios Chico e Rejane. Havia uma outra pessoa da qual eu não reconheci o nome informado. Era o motorista da prefeitura, que conduzia o carro acidentado. Poucos dias após o acidente ele faleceu!

Bombardeado com aquelas informações, saí do hospital e voltei ao carro do Alberto, que só então me confessou que já sabia de tudo e que só não tinha nos falado porque estava tão chocado com tanta tragédia que não teve coragem de nos contar. Voltamos à casa do tio Teógenes e ao chegarmos lá, todos já sabiam do acontecido.

Meu pai, desesperado, deitado na cama, lamentava-se por não poder chorar a morte de seu pai tanto quanto era merecido, pois seu coração já estava dilacerado pela morte de sua filha!

Era inacreditável! Duas mortes na família, e no mesmo dia! Estávamos mesmo vivendo uma ficção, um pesadelo que teimava em não acabar!

Desde que saímos da Praia do Françês eu não mais havia visto a minha mãe. Soube que ela estava com a Valéria. Não a deixou por um momento sequer, desde o momento do acidente, passando pelo instituto médico legal, até o funeral. Não dá para imaginar a dor que ela sentia!

O tio Teógenes nos levou até a nossa casa. Fomos, eu; a Ivana e as nossas primas de São Paulo para que pudéssemos tomar banho e trocar nossas roupas, e também para pegar roupas para meus pais.

Na rua em que morávamos encontramos alguns amigos, e eu pedi para que o tio Teógenes parasse o carro para que transmitíssemos a notícia.

Ao entrarmos em casa eu pensei: nunca mais verei minha irmã aqui. Senti um grande vazio, em mim e na casa. Nada seria como antes! Tomei banho. Um banho sem sentir a água. Meu pensamento vagava. Coloquei uma roupa. Voltamos.

Alguém me levou ao Cemitério Parque das Flores. Lembro-me de ter visto muita gente. Alguns amigos lá da nossa rua estavam no velório e falaram comigo. Perguntavam como tinha ocorrido, como eu estava me sentindo. Respondi que ainda não tinha caído na realidade. Era tudo muito estranho. Eu estava sob um estado de torpor!

Lembro-me vagamente de ter visto o caixão da minha irmã. Lembro-me também que o caixão do meu avô demorou a chegar. Eu não lembro se entrei na capela onde estavam sendo velados os corpos.

Alguém me levou de volta à casa dos meus tios e lá dormi. No dia seguinte eu não quis ir ao enterro. Queria guardar em minha mente a imagem da minha irmã quando viva. A morte do meu avô Chiquinho era para mim uma coisa ainda mais distante. Meus pensamentos eram povoados apenas com as imagens da Valéria, lembranças, saudades, tristeza!

Passamos alguns dias numa fazenda de amigos do meu pai. Quando voltamos para casa, mudamos de quarto, eu e a Ivana. Ela que dormia com a Valéria no quarto maior, passou a dormir no quarto que era meu, e eu passei a dormir no quarto que era delas antes. Eu não sentia medo. Muitas vezes, trancado naquele quarto eu abria o guarda-roupas ainda repleto de roupas dela. Lembro-me muito bem de um vestido cor-de-rosa. Eu ficava olhando, chorando baixinho para que não percebessem. Mentalmente perguntava a ela o porquê de nos ter abandonado. Nunca tive resposta alguma!

Sinto não ser mais velho naquela época para poder apoiar a meus pais, pessoas admiráveis que sofreram tanta dor, com imensa dignidade.

O tempo passou. As feridas foram cicatrizando, mas a Valéria nunca ficou esquecida em meu coração nem em minha mente. Ela é uma Lembrança sempre viva! Uma lembrança de amor, amizade, companheirismo e de uma imensa saudade!

Termino essa narrativa, muito emocionado! São lembranças muito duras. Novamente saudades, dúvidas, porquês, e um imenso sentimento de respeito e amor aos meus queridos pais e à minha irmã Ivana, que também é uma sobrevivente e sofreu tanto quanto nós.

Enviei esse doloroso testemunho ao meu primo Ricardo Moreira, pedindo-lhe que se algum dia ele decidisse publicar alguma coisa sobre esse episódio, estando meus pais ainda vivos, pedisse permissão a eles, respeitando sua dor, que é perene. No entanto, mostrei uma cópia a algumas pessoas que participaram desses episódios, e elas acharam que seria importante que as pessoas que não conheciam esta história, e os mais novos da família que àquela época ainda não estavam inseridos no nosso grupo familiar, e até os que ainda não haviam nascido, conhecessem esses fatos, contados por uma pessoa que os vivenciou.

Meu pai tentou ler, mas não conseguiu. Minha mãe, muito menos! Eles, porém, não interpuseram quaisquer obstáculos para a divulgação dessas dolorosas linhas.

Eu, particularmente, acho que apesar de ser este o episódio mais triste de nossas vidas, é também a história delas, vivida, sentida, chorada, e que por isso mesmo, não deve ficar escondida no passado. Acho que os membros mais novos da família precisam saber como foram tecidos os laços que fazem hoje a força e a alegria desse Clã!

Que Deus esteja conosco!

Maceió, 05 de janeiro de 2003.

Alberto Jorge, um sobrevivente.