Noventa anos de história

Minha infância

Minha infância foi muito ligada à minha avó paterna. A vovó Dina é o tipo inesquecível. Fui a primeira neta e os dois foram meus padrinhos de batismo. Eu os adorava; tanto a eles quanto a todos os tios: Madrinha Alcina, minha madrinha de crisma; Elza, madrinha de representar_ que era usado naquela época, mas hoje me parece que não é mais usado pela igreja.

Até os sete anos eu vivi mais na fazenda de meus avós do que em casa de meus pais. Papai ia todas as manhãs na casa de seus pais, e quando ele sentia que já era hora de ir-me embora fazia-me apenas um sinal que queria dizer “...vamos para casa”. Ás vezes eu fingia não compreender e corria para perto da vovó. Ela sentia logo que eu não queria ir e dizia para o meu pai: “Amanhã ela vai”. Eu ficava toda contente; no dia seguinte eu ia e logo estava de volta. Não sei por que eu gostava tanto da fazenda; penso que era porque cá não tinha crianças e eu era alvo de toda a atenção.

Ás vezes me escondia na hora em que papai ia sair e era uma graça para todos. Eu saía do esconderijo toda desconfiada, observando se de fato ele tinha ido embora, e vovó comentava: “Agora ela aparece toda prosa...”. Quando se é criança a gente não percebe bem as coisas; hoje é que sei o quanto era querida por todos. À noite vovó sentava-se em um banquinho baixo e eu ao seu lado com a cabeça em seu colo. Ela rezava o terço e ao mesmo tempo alisava meus cabelos até que eu dormisse e meus tios me colocassem na cama; eu me sentia no céu. Não me esqueço dela e daquela maravilhosa vida que eu levava.

Meu avô era muito calado, pagava para não falar... mas era também muito bom. Vovó, pelo contrário, gostava muito de conversar; era muito alegre, lia revistas e jornais, comentava as notícias do dia e gostava também de política; os filhos a acompanhavam com muito entusiasmo.

Viviam na fazenda, mas possuíam casa no arraial (hoje, cidade), onde passavam as festas. Eram muito católicos, não perdiam missa aos domingos. Tinham automóvel, mas vovô gostava mesmo era de ir a cavalo; um cavalo muito manso, que já estava acostumado a ele e se chamava Bilontra.

Vovó gostava de fazer pequenas visitas após a missa; aos amigos, doentes e necessitados; era muito caridosa. Vovô já era bem mais velho do que ela e gostava mesmo era de ir embora logo após a missa. Ele era muito amigo do padre e dizem que este não começava a missa enquanto vovô não chegasse.

Mamãe era muito nervosa; talvez por causa da situação financeira dos pais que estavam bem velhos, e a ociosidade dos irmãos, todos em casa sem se preocuparem com coisa alguma. Talvez também por este motivo eu gostasse tanto da casa dos meus avós. Vovó era muito alegre e passeava muito; isso também era motivo para a minha preferência: todo passeio que ela fazia me levava consigo.

O mês de maio eles sempre passavam na casa do arraial para não perderem as rezas à noite. Preparavam tudo cá na fazenda; matavam um dos porcos mais gordos, para que dessem bastante carne e gordura para o mês todo. Faziam muitos doces, biscoitos, broas de canjica, etc. Eu era um dos principais motivos da ida para participar das rezas: vestindo de virgem toda noite e a escolhida para coroar Nossa Senhora no dia da festa. Vovó ficava muito entusiasmada e exigia que minhas tias me aprontassem muito bem. Tia Zilda e tia Elza me preparavam para a coroação, escolhiam os cânticos e me ensaiavam. Tia Saninha cuidava do vestido. Era tudo muito bem arrumado, com muito gosto e entusiasmo. Não me esqueço dos papelotes que me deixavam a cabeça dolorida por muitos dias. Terminada a festa regressávamos para a fazenda.

Na missa tinha um banco especial para a família com o nome de vovô, só que ele não se assentava neste banco. Possuía uma cadeira ao lado do altar de Nossa Senhora das Dores, e era lá que ele assentava-se comodamente. O nosso banco era o primeiro da fila, à direita. O primeiro da fila à esquerda pertencia ao capitão Ferreira.

Como eram bonitas as missas apesar de serem rezadas em latim; parecia que estávamos mais perto de Deus. Os padres eram muito respeitados e aquele silêncio parecia que elevava nossos sentimentos aos céus. Hoje é muito diferente, não é a mesma coisa. E quando era missa cantada, sempre nos dias de festa, que coisa linda! Tia Zilda tocava harmônium e tia Elza com voz maravilhosa, cantava.

No Natal também íamos para o arraial, e como tudo era lindo e diferente. Minha avó cuidava de tudo e com muito gosto. Lembro-me do primeiro presente que ganhei de Papai Noel: uma linda boneca de louça que minha mãe deu às crianças para brincarem; estragaram-na e eu fiquei muito triste.

Não fui uma criança alegre. Era uma criança triste, não sei por que, se não me faltava nada. O ambiente, tanto na casa de meus pais quanto na casa de meus avós era bom e alegre, com a diferença de que lá eram crianças e cá eram adultos.

Quando fiz sete anos fui para São João Nepomuceno fazer o primário, porque onde morávamos era distante do arraial e eu não tinha meios para freqüentar a escola, por falta de companhia. Foram quatro anos maravilhosos. Dona Sinhaninha, dona da pensão, era uma pessoa sensacional. Dentre todas as pensionistas, quase todas mais ou menos da minha idade, eu era a preferida. Acompanhava-a nas visitas, cinemas e nos passeios.

Naquela época papai passava por ótima situação financeira. Eu tinha crédito na cidade inteira, era muito querida e andava muito bem vestida sob os cuidados de Dona Sinhaninha. Porém era muito introvertida e as professoras ficavam admiradas porque eu não tomava parte nas brincadeiras com as colegas.

Sempre fui boa aluna, a primeira da classe. Tirei o diploma com distinção e louvor. Não continuei os estudos apesar da vontade louca de continuar. Fui para casa e tudo voltou a ser como era antes: dias cá na fazenda, outros em casa de meus pais.

Os dias em que passava com meus avós e tios eram aproveitados para aprender a bordar à máquina, à mão, fazer tricô e crochê, pois era exigência de minha vovó que minhas tias me ensinassem. Também aprendia a tocar piano, incumbência de minha tia Zilda.

Se não tivesse ido para São João terminar os estudos e depois lecionar na Cachoeira, teria virado pianista. Ganhei até um piano velho para estudar as lições. Com minha saída puseram meu piano na tulha, que se encheu de cupim... e lá se foi o meu piano.

Antes de ir para lecionar na Cachoeira me arranjaram uma bolsa de estudos em São João Nepomuceno. Lá fui eu me matricular na escola normal Dona Prudenciana. Nesta ocasião eu já substituía minha tia Zilda em uma escola rural existente na fazenda. Em São João fui morar com meu avô materno. Ele, um velho alegre e bondoso que gostava muito de mim e me tratava muito bem. Minha avó, ao contrário, me tratava mal, bem como minhas tias. Não podia sair a não ser para o colégio, ordem de minha mãe. De vez em quando, com ordem do meu avô que não gostava de ver minhas tias saírem e eu ficar, mandava que eu saísse também.

No colégio dei-me muito bem, apesar de não poder comprar um livro; ia mais cedo para a aula e estudava nos livros de minhas colegas, que emprestavam de muito boa vontade. Apesar de tudo eu tinha as melhores notas e elas não se importavam, ao contrário, morriam de rir. Os elogios e bons tratos no colégio me davam forças para agüentar o que suportava em casa. Ao fim do ano letivo precisei pagar uma taxa de cento e cinqüenta mil réis e meu pai não tinha esta quantia. Com grande tristeza abandonei os estudos.

Eu era complexada desde criança; era a mais morena da família e por qualquer arengazinha me chamavam de preta e outros apelidos. Para completar eu tinha um dente fora do lugar. Aos dezessete anos consegui tirar este dente e melhorei um pouco o meu sorriso triste.

Voltei para casa bem mais instruída do que antes, mas isso não agradou a muitos.

A escola rural da fazenda acabou fechando. Minha tia, que era a professora, casou-se e foi morar na Cachoeira onde seu sogro arranjou uma escola para ela lecionar. Com pouco tempo resolveram mudar-se. Então chegou minha vez: primeiro substituir, depois assumir o posto de professora. Na ocasião a prefeitura tinha convênio com o estado e o salário era compensador. Trabalhei oito anos e dez meses para o estado, depois passou para a prefeitura. Com este ordenado de professora rural ajudei papai que atravessava uma situação financeira muito difícil por causa da baixa do café.

Ir lecionar na cachoeira foi um dos melhores tempos da minha vida. Fui muito estimada, tratada como filha da família que lá me acolheu. Jamais me esquecerei de todos com quem lidei e conheci. Guardo uma doce e saudosa lembrança; difícil morar numa casa de tantas pessoas e não ter sequer uma pequena queixa de ninguém. Que gente boa, que saudades.

Em 1940 me casei e conheci o outro lado da vida; tudo mudou, e como...

(continua...)

Vovó Zezé (Maria José Furtadinho Sarmento)
Enviado por Vovó Zezé (Maria José Furtadinho Sarmento) em 02/02/2008
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