4 - Gatos - Parto
Eu estava me arrumando para o trabalho noturno quando ouvi um miado diferente no terraço. Era o miado de socorro. Eu já tinha ouvido aquilo algumas vezes, tal qual fora no dia em que minha gata Clarence tinha pulado do telhado, com muitos metros de altura e tinha mirado o outro telhado erradamente...
Era noite e eu estava extremamente esgotada, mas do meu quarto eu ouvia um gemido insistente, que parecia até dizer: “Leila me socorre!”.
A gente sabe a diferença de miados de um gato. Gatos miam diferente até de madrugada, quando acham que estão sozinhos e querem nos acordar...
Resolvi verificar o que era e vi uma cena horrorosa: Clarence perfurada por uma ponta de metal, como Jesus cruz, a uns três metros de altura, numa grade, entre a vizinha e minha casa. Ela miava lentamente e olhava pra mim na penumbra da noite.
Fiquei doida! Eu sentia suas dores! E eu sinto sempre as dores de quem eu cuido, de quem eu trato e de quem eu amo. Aquilo me dava um nervoso que acho que passaria por todos os obstáculos do mundo para acabar com tal sofrimento. Pedi ao futuro ex-marido para subir numa escada longa e a retirar, mas ele, óbvio, achava muito sacrificante, mesmo tendo plena saúde. Eu peguei a merda da escada e subi lá no alto e arranquei a bicha do ferro.
Ela não gritava, apenas miava baixinho e me olhava. O que mais me matava era seu olhar. Ela olhava pra mim como um ser humano de tanta dor! E eu sabia o que sofria.
Pelo menos, me levaram a uma veterinária que estava de plantão. No carro ela estava deitada no meu colo e pedia o tempo todo para eu não retirar a mão do buraco que sangrava em seu corpo - ela pedia com miados e com as patas.
Toda vez que eu parava de falar, ela chorava; toda vez que eu tirava a mão do ferimento, ela puxava a patinha com as unhas recolhidas, para não me arranhar, e trazia minha mão para a ferida.
Tantas vezes eu falei assim para pessoas que sofriam... Eu já tive diálogos assim com muitas pessoas, mas naquele dia eu falava com um animal e este animal me entendia e se consolava com minhas palavras e meu conforto! Foram minutos intermináveis!
Ela foi operada e tudo correu bem. Muitas quedas aconteceram depois disso e ela saiu vencedora muitas vezes. Talvez por isso digam que gatos tenham sete vidas. A minha teve muito mais...
Uma vez foi uma gastroenterite, ou seja, uma diarréia desgraçada, que a levou a perder peso e a ficar sem se alimentar. Como eu vi que a coisa estava ficando "braba", resolvi levar a um medico.
Eu tinha uma amiga veterinária na esquina de minha rua, mas era um feriado especial: final de Copa do mundo... Ninguém estava comunicável. O jeito era levar numa clínica, onde algum veterinário bondoso estava disposto a salvar vidas animais...
Clarence fez uma bateria de coisas e depois foi a hora da Ultra-Sonografia. Pensei comigo: “Puta que o pariu! É copa do mundo; um marido mais interessado no placar final; eu aqui com uma gata e uma família doente em casa! Eu to doida!!!”.
Tava, não... Eu era a mais saudável de todos...
Neste dia o médico ficou pasmo, pois Clarence simplesmente se deixou ser depilada, mesmo doentinha, abriu as perninhas e deixou fazer a Ultra-Sonografia, sem ninguém a segurar. Ela até mudava de lado quando o médico pedia.
Ele me perguntava: “Ela é adestrada?”. Eu nem sabia que se adestra gatos! Disse pra ele que ela sabia exatamente quem era médico e sabia exatamente quem é que cuidava dela ou não, e que naquele momento ela sabia que ele estava cuidando dela.
Saímos dali com ela medicada, mas tive que passar três dias dando líquidos pela seringa, pois ela não aceitava comer. Eu falava para ela: “Sua filha da puta, eu não desisto de nada na vida! Se até minha mãe eu consigo salvar, você, uma gata vadia, vai ter que sobreviver também!”.
Sou obstetra. Já tive muitas emoções como profissional. Já tive a emoção de colocar no mundo uma quase neta, já senti surpresas que ao longo de mais de 25 anos só quem trabalha com isso pode vivenciar, e eu me emocionei da mesma forma no dia do parto de minha gata...
Eu estava me preparando para trabalhar quando vi um muco na vagina da gatinha e percebi que estava chegando a hora. O mais estranho era perceber que as contrações uterinas são iguais às das gestantes. Minha gata sentia tanta dor que puxava minha mão, da mesma forma que no acidente do muro, para que eu acalentasse a sua dor. Eu não sabia o que fazer! Só colocava a mão na hora da contração e conversava com ela.
Chamei minha veterinária, que por muitas vezes foi mais amiga que outra coisa, Celina Lessa, uma profissional maravilhosa e uma pessoa de luz.
Era engraçado de ver a coisa... Celina chegava e dominava a situação. Não sei se é assim em outros lugares, mas meus animais sempre adoraram esta profissional e sabiam que quando ela chegava, mesmo para uma vacina, o comportamento deles tinha que ser de submissão e respeito.
Algumas pessoas nasceram para a coisa e Celina nasceu para ser médica de qualquer animal. Eu diria que, se eu fosse um bicho, não queria outro médico senão ela.
Ela fez um tioque e retirou um gato enorme, que foi o animal de estimação de uma amiga, e que pesou na fase adulta uns seis quilos...
Depois deste parto outros gatinhos vieram atrás. Fui trabalhar com o coração na mão, pois não podia esperar mais. À noite descobri que ela tinha deixado todos eles num buraco do telhado da vizinha.
Eu só descobri isso depois de dois dias de sumiço, lutando para descobrir onde ela se enfiara. Ela estava protegendo suas crias...
Foi uma luta para tirar os filhotes do telhado e convencer minha gata, depois de três tentativas, que o melhor lugar era o terraço, nas caminhas de viado espumadas para cachorros...
Nesta ocasião, os cães já eram amigos da bichana. Matavam qualquer gato ou qualquer bicho que se aproximasse da casa e até poderiam matar um ser humano. Mas, Clarence era Clarence, entendem?... Ela não era uma gata para eles...
Aliás, havia muita maldade nestes animais, sabiam? Bicho é muito sádico mesmo... Os cães trituravam gatos. Até mataram o gato da escola em frente, que invadiu a casa (agora confesso...). Enquanto isso, Clarence trazia morcegos, ratos vivos, aranhas e pássaros vivos para casa como troféu. Ela me mostrava e depois os comia vivos, se eu deixasse...
O que eu podia fazer?! Nada!!! Ela nunca foi presa! Ela nunca tinha sido de cativeiro e só estava na minha casa porque aceitava meus cuidados o dia todo. Ela estava lá porque queria, não apenas por comida. Se fosse assim, ela só apareceria para comer, mas conviveu com cães adultos e com a casa o tempo todo, só se ausentando em raras ocasiões.
Ninguém ensinou nada! Era espontâneo. Os bichos se respeitavam mutuamente. Não havia chamego, mas havia um pacto: Leila era a mucama, Clarence a rainha e os cães eram os soldados...
Minha gata ainda teve mais duas gestações, todas elas causadas (depois vim a descobrir) por um outro gato vadio, lindo, gostoso, maravilhoso, realmente digno de se dar pra ele: Chorão.
Segue no capítulo V
Leila Marinho Lage
Rio, 24 de Janeiro de 2008
Eu estava me arrumando para o trabalho noturno quando ouvi um miado diferente no terraço. Era o miado de socorro. Eu já tinha ouvido aquilo algumas vezes, tal qual fora no dia em que minha gata Clarence tinha pulado do telhado, com muitos metros de altura e tinha mirado o outro telhado erradamente...
Era noite e eu estava extremamente esgotada, mas do meu quarto eu ouvia um gemido insistente, que parecia até dizer: “Leila me socorre!”.
A gente sabe a diferença de miados de um gato. Gatos miam diferente até de madrugada, quando acham que estão sozinhos e querem nos acordar...
Resolvi verificar o que era e vi uma cena horrorosa: Clarence perfurada por uma ponta de metal, como Jesus cruz, a uns três metros de altura, numa grade, entre a vizinha e minha casa. Ela miava lentamente e olhava pra mim na penumbra da noite.
Fiquei doida! Eu sentia suas dores! E eu sinto sempre as dores de quem eu cuido, de quem eu trato e de quem eu amo. Aquilo me dava um nervoso que acho que passaria por todos os obstáculos do mundo para acabar com tal sofrimento. Pedi ao futuro ex-marido para subir numa escada longa e a retirar, mas ele, óbvio, achava muito sacrificante, mesmo tendo plena saúde. Eu peguei a merda da escada e subi lá no alto e arranquei a bicha do ferro.
Ela não gritava, apenas miava baixinho e me olhava. O que mais me matava era seu olhar. Ela olhava pra mim como um ser humano de tanta dor! E eu sabia o que sofria.
Pelo menos, me levaram a uma veterinária que estava de plantão. No carro ela estava deitada no meu colo e pedia o tempo todo para eu não retirar a mão do buraco que sangrava em seu corpo - ela pedia com miados e com as patas.
Toda vez que eu parava de falar, ela chorava; toda vez que eu tirava a mão do ferimento, ela puxava a patinha com as unhas recolhidas, para não me arranhar, e trazia minha mão para a ferida.
Tantas vezes eu falei assim para pessoas que sofriam... Eu já tive diálogos assim com muitas pessoas, mas naquele dia eu falava com um animal e este animal me entendia e se consolava com minhas palavras e meu conforto! Foram minutos intermináveis!
Ela foi operada e tudo correu bem. Muitas quedas aconteceram depois disso e ela saiu vencedora muitas vezes. Talvez por isso digam que gatos tenham sete vidas. A minha teve muito mais...
Uma vez foi uma gastroenterite, ou seja, uma diarréia desgraçada, que a levou a perder peso e a ficar sem se alimentar. Como eu vi que a coisa estava ficando "braba", resolvi levar a um medico.
Eu tinha uma amiga veterinária na esquina de minha rua, mas era um feriado especial: final de Copa do mundo... Ninguém estava comunicável. O jeito era levar numa clínica, onde algum veterinário bondoso estava disposto a salvar vidas animais...
Clarence fez uma bateria de coisas e depois foi a hora da Ultra-Sonografia. Pensei comigo: “Puta que o pariu! É copa do mundo; um marido mais interessado no placar final; eu aqui com uma gata e uma família doente em casa! Eu to doida!!!”.
Tava, não... Eu era a mais saudável de todos...
Neste dia o médico ficou pasmo, pois Clarence simplesmente se deixou ser depilada, mesmo doentinha, abriu as perninhas e deixou fazer a Ultra-Sonografia, sem ninguém a segurar. Ela até mudava de lado quando o médico pedia.
Ele me perguntava: “Ela é adestrada?”. Eu nem sabia que se adestra gatos! Disse pra ele que ela sabia exatamente quem era médico e sabia exatamente quem é que cuidava dela ou não, e que naquele momento ela sabia que ele estava cuidando dela.
Saímos dali com ela medicada, mas tive que passar três dias dando líquidos pela seringa, pois ela não aceitava comer. Eu falava para ela: “Sua filha da puta, eu não desisto de nada na vida! Se até minha mãe eu consigo salvar, você, uma gata vadia, vai ter que sobreviver também!”.
Sou obstetra. Já tive muitas emoções como profissional. Já tive a emoção de colocar no mundo uma quase neta, já senti surpresas que ao longo de mais de 25 anos só quem trabalha com isso pode vivenciar, e eu me emocionei da mesma forma no dia do parto de minha gata...
Eu estava me preparando para trabalhar quando vi um muco na vagina da gatinha e percebi que estava chegando a hora. O mais estranho era perceber que as contrações uterinas são iguais às das gestantes. Minha gata sentia tanta dor que puxava minha mão, da mesma forma que no acidente do muro, para que eu acalentasse a sua dor. Eu não sabia o que fazer! Só colocava a mão na hora da contração e conversava com ela.
Chamei minha veterinária, que por muitas vezes foi mais amiga que outra coisa, Celina Lessa, uma profissional maravilhosa e uma pessoa de luz.
Era engraçado de ver a coisa... Celina chegava e dominava a situação. Não sei se é assim em outros lugares, mas meus animais sempre adoraram esta profissional e sabiam que quando ela chegava, mesmo para uma vacina, o comportamento deles tinha que ser de submissão e respeito.
Algumas pessoas nasceram para a coisa e Celina nasceu para ser médica de qualquer animal. Eu diria que, se eu fosse um bicho, não queria outro médico senão ela.
Ela fez um tioque e retirou um gato enorme, que foi o animal de estimação de uma amiga, e que pesou na fase adulta uns seis quilos...
Depois deste parto outros gatinhos vieram atrás. Fui trabalhar com o coração na mão, pois não podia esperar mais. À noite descobri que ela tinha deixado todos eles num buraco do telhado da vizinha.
Eu só descobri isso depois de dois dias de sumiço, lutando para descobrir onde ela se enfiara. Ela estava protegendo suas crias...
Foi uma luta para tirar os filhotes do telhado e convencer minha gata, depois de três tentativas, que o melhor lugar era o terraço, nas caminhas de viado espumadas para cachorros...
Nesta ocasião, os cães já eram amigos da bichana. Matavam qualquer gato ou qualquer bicho que se aproximasse da casa e até poderiam matar um ser humano. Mas, Clarence era Clarence, entendem?... Ela não era uma gata para eles...
Aliás, havia muita maldade nestes animais, sabiam? Bicho é muito sádico mesmo... Os cães trituravam gatos. Até mataram o gato da escola em frente, que invadiu a casa (agora confesso...). Enquanto isso, Clarence trazia morcegos, ratos vivos, aranhas e pássaros vivos para casa como troféu. Ela me mostrava e depois os comia vivos, se eu deixasse...
O que eu podia fazer?! Nada!!! Ela nunca foi presa! Ela nunca tinha sido de cativeiro e só estava na minha casa porque aceitava meus cuidados o dia todo. Ela estava lá porque queria, não apenas por comida. Se fosse assim, ela só apareceria para comer, mas conviveu com cães adultos e com a casa o tempo todo, só se ausentando em raras ocasiões.
Ninguém ensinou nada! Era espontâneo. Os bichos se respeitavam mutuamente. Não havia chamego, mas havia um pacto: Leila era a mucama, Clarence a rainha e os cães eram os soldados...
Minha gata ainda teve mais duas gestações, todas elas causadas (depois vim a descobrir) por um outro gato vadio, lindo, gostoso, maravilhoso, realmente digno de se dar pra ele: Chorão.
Segue no capítulo V
Leila Marinho Lage
Rio, 24 de Janeiro de 2008