A gente se acostuma....

A gente se acostuma... (lembrando Marina Colasanti)

A gente se acostuma a quase tudo na vida.O mau hábito chega a ser parte integrante do kit de sobrevivência. A gente vai se acostumando a um descaso aqui,outro acolá,a um cumprimento não respondido,a tentar manter um dialogo com quem não nos olha nos olhos.

Vamos buscando justificativas (nas quais não acreditamos),para aquela pessoa que tripudia de seu afeto,que vai mudando o seu lugar na lista de prioridades dela,a ponto de não mais te convidar para uma conversa,para um encontro no final da tarde,para uma saída à noite,para um cinema,para um viagem....

De repente,a gente se vê aceitando migalhas de atenção,agradecendo frases carinhosas que não correspondem à realidade.

Quanto vale um "Eu te amo", pra quem se acostumou com tão pouco?

Sei que a gente não devia se acostumar com tantas omissões .A gente vai se perdendo na roda viva que nos consome,vai abrindo mão de laços verdadeiros,na tentativa ilusória de que o melhor amigo é o da vez,o que se conheceu numa festa divertida,numa viagem inesquecível...E vamos deletando da memória,o que nos deu suporte ,que moldou ou ajudou a moldar o nosso jeito de estar no mundo.

A gente vai perdendo o senso de pertencimento.Vai se desgarrando de tudo o que nos alimentava a mente e a alma,em busca de qualquer outra coisa.Mas não devia ser assim.

As relações humanas têm muito mais a ver com somatórias de experiências,com ressignificações do que recebemos da família e com as possibilidades de aprendizado que a vida nos oferece,do que simplesmente largar tudo,cancelar o outro e viver apenas do superficial.

A gente se acostuma a negar a nossa própria história,a negar nosso passado,como se as relações não pudessem durar uma vida inteira.

A gente não devia fechar todas as janelas,para que o vento não desarranjasse a casa ou o sol não reverberasse por todos os cantos.

Não existe renovação,sem "quebrar paredes",sem deixar que a poeira suba,volte a se assentar,para que a faxina aconteça.

A gente vai autorizando e justificando todo tipo de indelicadezas...

As mensagens enviadas pelo zap(quase que único contato "pessoal" hoje em dia)e os áudios de segundos (se chegar a um minuto pode não ser ouvido),que ficam com o duplo tique sempre cinza,pois a modernidade eliminou o azul pra desencorajar até o sabujo do que fora um dia um contato afetivo.Aí a mensagem fica lá,à espera que o destinatário tire um tempo para em dois segundos ou em três palavras no máximo,responda,pois a linguagem atual precisa de objetividade e ninguém tem tempo a perder...

A gente vai naturalizando a falta de cuidado,de ternura,de gratidão...

Lembrar do aniversário,pra quê?Só se for da galera,dos amigos do peito,de tudo que pode virar um evento pra postar nas redes sociais...

que vão se tornando cada vez mais caricatas,narcísicas,um ringue de eventos,um desfile onde as pessoas vestem sua melhor roupa,o seu melhor ângulo fotográfico,pra mostrar o quanto são felizes e realizados...

As guerras ( que se multiplicam mundo afora), estão na internet também.Disputa de poder,provocações no campo afetivo,na política...

A gente vai se acostumando a tudo isso e o Mal-estar da Civilização vai se intensificando,virando sintoma e nos levando a pedir ajuda.

Eu sei que sempre aceitei sem reclamar,um monte de coisa.Em nome da sociabilidade,de não ficar só,de não magoar as pessoas,de não chamar a atenção pra mim,de não me estressar por algo menor....Mas não devia!

A vida é uma via de mão dupla.O caminho que seguimos pra chegar ao lugar almejado,é o mesmo que nos traz de volta a nós mesmos.É importante estarmos atentos a quem encontramos pelo caminho.Interações saudáveis ,as que estendem a mão,que não apontam o dedo,que fazem críticas construtivas,só promovem o crescimento,só fazem bem.

Mas a gente vai sucateando tudo,confundindo aglomerados de momento com amizades verdadeiras,vai repetindo frases veiculadas pelos coachs,mentores e doutores das redes,todos com milhões de seguidores,em mantras ,sem se dar ao trabalho de conhecer os grandes mestres de verdade,pois tudo tem de ser pra ontem e buscar conhecimento num bom livro,virou algo quase impensável.

A gente vai se acostumando a abrir mão da gente. De nossos desejos mais caros,de nossa essência.De nossa parte mais bonita,mais original,mais humana.Mas não devia...

Até porque,no final das contas,cada um de nós,só tem a si mesmo.Difícil é a gente se apossar desse imenso latifúndio que somos e aprender a cuidar dele com o carinho e o desvelo que merece.Tudo começa dentro de nós.

Precisamos aprender a nos desacostumar.

Amarília T Couto