A última canção: memórias e despedida de Joaquim
A última canção: memórias e despedida de Joaquim
A morte, quando chega, não avisa. Ela se infiltra nos recônditos das vidas, como uma sombra discreta que transforma a alegria em melancolia e os dias em longas jornadas de saudade. Foi assim que a partida de Joaquim Galdino da Costa, em 10 de julho de 2021, perfurou o coração de sua família e de todos aqueles que o conheciam. Nas terras que o viram crescer, o silêncio ensurdecedor que se seguiu à notícia de sua morte parecia ecoar entre as montanhas e os vales de São Gonçalo, onde sua ausência já se fazia sentir como um lamento.
Joaquim nascera em 16 de março de 1958, no Sítio Alto da Boa Vista, periferia de São Gonçalo-PB, em meio ao calor abrasador e às paisagens indomáveis do sertão. Filho de Manoel Galdino da Costa (1919-1985) e Francisca Abrantes da Costa (1925-1999), ele cresceu imerso no amor da família e na simplicidade da vida interiorana, onde os vínculos eram forjados à base de sorrisos, abraços e uma humanidade que ele carregaria por toda a vida.
Em 1963, a família de Joaquim mudou-se definitivamente para o acampamento federal de São Gonçalo, onde ele viveria toda a infância e juventude, após seu pai assumir o cargo de guarda no Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS). Em 1976, Joaquim concluiu o ginásio no Colégio Comercial Guimarães Duque em São Gonçalo. Em 1979, concluiu o curso de Técnico Agrícola no renomado colégio de Lavras da Mangabeira, no Ceará, ao lado de vários amigos de São Gonçalo, entre eles Carlos Augusto Dias, Kokinho de Pazinho, Ivan Alves, Ribamar Meneses, Jorge de Chico Ernestino, Aureliano e Tico.
Quarenta anos após a formatura no curso de Técnico Agrícola, os amigos da Turma de 1979 enfim se reencontraram em dezembro de 2019, no próprio colégio de Lavras. Foi um momento de emoção e nostalgia, pois, dos 68 técnicos agrícolas que compartilharam aqueles tempos de estudo e companheirismo, 62 estavam presentes, unidos por anamneses e pela amizade que resistiu às décadas. Alguns rostos faltavam: cinco colegas já haviam partido deste mundo, deixando uma saudade tácita no peito de cada um, e Tico de São Gonçalo, que não foi localizado como se tivesse se apagado entre as areias do tempo.
O encontro foi repleto de risadas, lembranças e recordações dos dias vividos com intensidade. Cada um deles carregava no olhar a marca dos anos, mas também o brilho de quem voltava no tempo, revivendo a juventude ao lado de amigos com os quais compartilharam sonhos e lutas.
No início da década de 1980, Joaquim deixou a Paraíba, estabelecendo-se em Pernambuco, onde deu início a sua atuação profissional como técnico agrícola e constituiu sua família.
Joaquim era, antes de tudo, um homem humano, carinhoso e dedicado. Pai amoroso, esposo apaixonado e amigo sempre pronto a estender a mão, ele irradiava uma presença que confortava, envolvia e conquistava todos ao seu redor. Sua facilidade em fazer amigos era quase natural, e, embora residisse em Petrolina há muitos anos, sua alma permanecia ligada às raízes de São Gonçalo.
Sua filha, Jaquelyne Costa, era seu maior tesouro, especialmente após a perda da mãe, vítima de um câncer feroz em 2012. Joaquim cuidou da filha com uma ternura que só os grandes pais possuem. Depois da morte da esposa, ele se tornara seu porto seguro, sua âncora. E agora, Jaquelyne enfrentava o abismo indescritível de perder também o pai. Sua dor era de uma profundidade inominável, como se um pedaço de sua própria alma lhe tivesse sido arrancado. Desde o fatídico dia, Jaquelyne mantém viva a memória de Joaquim com mensagens emocionadas nas redes sociais, compartilhando com o mundo o imenso amor que ainda a conectava ao pai, e essas palavras ressoavam nos corações de muitos, como um eco de um amor imortal.
Em plena pandemia, no ano de 2021, Joaquim resistiu à primeira dose da vacina contra a Covid-19, e, como tantos outros, nutria a esperança de que a segunda dose traria a proteção necessária. Contudo, o destino foi implacável. O vírus o alcançou antes que pudesse completar seu ciclo de imunização. Os primeiros sintomas o mantiveram em casa, em Petrolina, mas, com o agravamento do quadro de saúde, veio a hospitalização. A luta silenciosa contra o vírus levou-o à entubação, uma medida extrema para um corpo já fragilizado. Foram quinze longos dias em que sua família se agarrou à fé, em que as preces se tornaram mais intensas e em que cada respiro era uma espera por um milagre. Mas ele não veio. Joaquim partiu, deixando atrás de si um sofrimento incomensurável.
Entre os que mais sofreram com essa perda, além de Jaquelyne, estava sua irmã Nina (1947-2023). Ao longo dos dias e meses seguintes à morte de Joaquim, ela foi flagrada diversas vezes, escondida em seu quarto, chorando em silêncio. Aquela dor, que ela tentava conter e sufocar, como um fogo que ardia por dentro, parecia maior que qualquer palavra pudesse descrever. Nina e Joaquim, embora distantes, tinham um laço especial. Apesar de irmã, ela o via como um filho, protegendo-o, amando-o com um zelo materno. A perda do irmão querido a devastou de uma forma que o tempo não curaria. Não conseguia mais ouvir as músicas de “Altemar Dutra”, de quem Joaquim era fã incondicional. A voz de Dutra, que tanto alegrava Joaquim e embalava momentos de partilha e felicidade, tornou-se insuportável para Nina, como uma faca cravada em seu coração.
Na festa de aniversário de 80 anos de Zé Tarzan (cunhado de Joaquim), em 11 de outubro de 2022, no Restaurante Catete de São Gonçalo, Nina pediu a todos que evitassem qualquer menção ou música de Altemar Dutra, tamanha era a angústia ao recordar o irmão cantando suas canções favoritas, sempre com um sorriso na face e a voz embargada de emoção.
Joaquim era um homem de imensa generosidade, capaz de tocar o âmago das pessoas com sua simplicidade e humanidade. Depois de muitos anos sem visitar São Gonçalo, em janeiro de 2020 ele voltou para participar do tradicional “Encontro de Conterrâneos e Amigos”, um evento que parecia, em retrospecto, uma despedida sutil de seus velhos amigos e da terra que tanto amava. Naquele encontro, ele reviu rostos que não via há anos, trocou abraços apertados, conversou longamente com aqueles que, como ele, carregavam a melancolia de tempos antigos. Parecia que o destino, sábio em suas decisões misteriosas, lhe concedera uma última oportunidade de dizer adeus.
Quando Joaquim faleceu, São Gonçalo sentiu profundamente sua ausência. Nas redes sociais, as homenagens se multiplicaram. Nos grupos de WhatsApp, mensagens de carinho e tristeza inundaram as telas. O nome de Joaquim ecoava em todas as conversas, e cada lembrança compartilhada era uma tentativa de manter sua memória viva, de eternizá-lo no seio da comunidade. Mas nenhuma desses tributos conseguia expressar a dimensão da dor de sua filha Jaquelyne, para quem o mundo parecia ter perdido toda a cor e toda a razão. Até hoje, as mensagens que ela escreve em honra ao pai geram grande repercussão, comovendo todos aqueles que conhecem a devastação de uma perda tão profunda.
Outra que sentiu imensamente a perda de Joaquim foi sua irmã mais nova, Júlia Galdino. Apesar de tentar manter-se forte, o vazio deixado por seu irmão era irremediável. A partida de Joaquim não foi apenas uma despedida física, mas uma perda emocional, uma ruptura no tecido que unia aquela família.
Ao lado de Nina e Júlia, os demais irmãos de Joaquim também sentiram sua morte como uma ferida que não cicatriza, um golpe que abalou a alma da família. Zé Galdino, com sua postura sempre firme, deixou transparecer um lado vulnerável, silenciando-se diante da perda e mergulhando em reflexões profundas sobre o significado da vida. João Galdino, sereno e de índole introvertida, guardava seu pesar em silêncio, tomado por uma tristeza melancólica e solitária que parecia ecoar de memórias antigas. Já Júlio Galdino, sempre mais expansivo e animado, embora morasse distante, sentiu-se devastado ao receber a notícia da partida do irmão, e manifestou sua dor de maneira mais visível, com lágrimas e palavras sentidas, lamentando a lacuna que a distância física havia intensificado. Jucélio Galdino, por sua vez, carregava uma angústia discreta, quase contida, mas sua fisionomia demonstrava o tamanho da consternação.
Cada um deles, à sua maneira, lamentava não apenas a perda do irmão, mas também o hiato que ele deixou nos laços familiares, antes tão sólidos e completos.
Outra pessoa que sofreu o peso da despedida foi o seu velho e querido amigo, Chimarrão, seu fiel companheiro em encontros e noites de canções à moda antiga. Juntos, partilharam as emoções que só os bons amigos conhecem: as risadas entre goles de cerveja, o som da voz de Altemar Dutra ecoando no ar, as palavras se entrelaçando em melodias que falavam de saudade, amor e uma dor bonita.
Agora, sem Joaquim ao lado, Chimarrão olha para o vazio à sua frente, sentindo a ausência como um silêncio quase insuportável. Em cada nota de “Sentimental Demais” e “Brigas,” ele vê o rosto do amigo e ouve a voz que, um dia, ressoou tão cheia de vida e vigor. O sertão, que tantas vezes fora o cenário das cantorias e celebrações, torna-se agora uma moldura melancólica, onde a presença de Joaquim persiste, mesmo na ausência. Mas para Chimarrão, é como se ele levasse consigo, em cada gole, em cada acorde solitário, um pedaço da amizade que, embora eterna, agora ressoa apenas como uma lembrança nas madrugadas vazias.
O vento que levou Joaquim foi o mesmo que, agora, sopra lembranças e saudades nos corações de todos. Sua ausência se tornara uma presença constante em cada canto, em cada conversa, em cada gesto. São Gonçalo, Sousa, Petrolina e todos os lugares por onde ele passou sentiram sua partida como um golpe, mas também celebraram sua vida, marcada pela bondade, pelo afeto e pelas amizades que ele construiu com tanto cuidado e devoção. Joaquim Galdino da Costa viveu intensamente. A morte calou sua voz, mas agora, como as estrelas cintilantes sobre o sertão, sua memória brilhará eternamente nos corações de quem o amou...
Josemar Alves Soares