Salé, um Lago no Baixo Amazonas

Já faz alguns anos que me dedico a entender a presença e a cultura dos judeus marroquinos na Amazônia, isso por que meu avô, o comerciante Jacob Amram Athias, de Alenquer, era um deles. Jacob deixou o Mellah de Salé como tantos outros que atualmente vivem na Amazônia ou espalhados pelo mundo, na grande diáspora dos judeus marroquinos.

[Jan Janszoon ( Murat Reis), renegado holandês a serviço da República de Salé (1650). Pintura de Pier Francesco Mola.]

Vários intelectuais investigaram e contribuíram com importantes estudos sobre esse grupo social muito antes de mim. Esses estudos históricos são importantes e geralmente tem uma abordagem que eu costumo chamar de memorialista. Entre esses investigadores, eu gostaria de citar três. O pioneiro desses estudos são trabalhos de Abraham Ramiro Bentes (1912–1992), nascido em Itaituba no Pará, general do Exército Brasileiro, que muitos anos esteve à frente da Sinagoga Shel Guemilut Hassadim no Rio de Janeiro. Eu tive a oportunidade de conhecê-lo brevemente no Rio de Janeiro, pois vivia na mesma rua em que meu pai. Ele escreveu vários livros, muito bons, entre os quais; “Das Ruínas de Jerusalém à Vederjante Amazônia”. Outro pesquisador importante e fundamental para dar um caráter mais acadêmico para esse campo de estudos sobre Amazônia foi o professor Samuel Benchimol (1923–2002). Ele nasceu em Manaus, economista e cientista social, ensinou mais de 50 anos na Universidade Federal do Amazonas, foi membro da Academia Amazonense de Letras e um dos fundadores do Comité Israelita do Amazonas (CIAM). Eu tive o imenso prazer de conhecê-lo, em 1977, no CEDEAM (Centro de Estudos e Documentação sobre a Amazônia/UFAM) que ele havia fundado nos anos 1970, quando eu ainda morava em Manaus. Entre os seus livros encontram-se o mais famoso “Eretz Amazônia” (o único traduzido para o hebraico) sobre os judeus marroquinos na Amazônia, com uma impressionante lista de nomes de judeus sepultados nos cemitérios da Amazônia. O terceiro autor, também importante, é o historiador Reginaldo Heller, do Rio de Janeiro, que escreveu “Judeus do Eldorado: reinventando uma identidade em plena Amazônia: a imigração dos judeus marroquinos do norte da África para o Brasil (Pará e Amazonas) durante o século XIX”.

Nesses livros, vamos encontrar nomes, fatos, situações etnográficas e uma lista muito grande de nomes de judeus marroquinos que se estabeleceram na Amazônia, todos eles comerciantes, mestres em fazer negócios e, sobretudo, especialistas do extrativismo amazônico, instalados nas principais cidades ribeirinhas do baixo Rio Amazonas e afluentes. Esses comerciantes foram os expoentes do desenvolvimento dessa região, como assinala os irmãos David e Elias Salgado em seu livro “História e Memória: Judeus e a Industrialização do Amazonas”.

O jornalista Henrique Veltman e o fotógrafo Sergio Zalis escrevem uma reportagem foto-jornalística em 1983, intitulada “Os Hebraicos da Amazônia”, encomendada pelo Museu do Povo Judeu de Tel-Aviv (Beit Hatefutsot), mostrando diversas biografias de comerciantes judeus de origem marroquina radicados definitivamente no baixo Amazonas, e já completamente integrados na cultura local. Porém, uma pesquisa associando esses judeus marroquinos com seus lugares de origem no Marrocos ainda é um trabalho interessante a ser realizado. Nesses anos, eu tenho, timidamente, tentado fazer uma lista de judeus, do baixo Amazonas que vieram de Salé.

Em minha última viagem ao Marrocos (2015) eu tive a oportunidade de ler um livro que me impressionou bastante pela densidade das descrições sobre a cultura dos judeus de muitas cidades do Marrocos. Foi escrito pelo historiador marroquino, radicado em Paris, Haïm Zafrani [1], intitulado: “Deux mille ans de vie juive au Maroc: histoire, culture, religion et magie” (Dois mil anos de vida judaica no Marrocos: história, Cultura, Religião e Magia). Este autor mostra como era a vida desses judeus, apresenta inúmeros dados históricos, descrevem as relações jurídicas dos Mellah com as Medinas, as principais profissões dos judeus no Marrocos, as Hukim e, sobretudo, a importante literatura produzida por judeus hahamim nos diversos períodos históricos do Marrocos. Ou, como o próprio Haïm Zafrani diz, “a literatura judaica produzida no ocidente Mulçumano”. É, realmente, um livro baseado em uma impressionante pesquisa. É de tirar o chapéu. Pois lendo esse livro, eu fiquei sabendo que até 1956 haviam quase 300.000 judeus vivendo em mais de 65 cidades marroquinas, nos Mellah das Medinas. Portanto, uma população significativa cujos antepassados chegaram ao Marrocos muito antes do Islã. Muitos desses judeus saíram do Marrocos em diferentes levas e hoje fazem parte da grande diáspora do Judaísmo Marroquino espalhada em todos os cinco continentes.

[Salé e Rabat com suas Medinas separadas pelo Rio Buregregue que desagua no Oceano Atlântico]

A cidade de Salé é vizinha de Rabat, capital do Reino do Marrocos, separadas pelo famoso rio Buregregue. Salé, com sua impressionante Medina, tem uma história muito antiga e muito peculiar, pois foi fundada no século IX AEC pelos Fenícios que a denominaram de “Salla”. Depois, conheceu períodos de desenvolvimento significativo no tempo das dinastias dos Ifrenidas no século XI EC e dos Almóadas, século XII EC e dos Merenidas, século XIV EC, principalmente por causa de sua posição estratégica comercial na rota terrestre que liga Fés a Marrakech. Mas, sobretudo, pelo seu importante porto na costa Atlântica, principal centro do comércio entre a Europa e o Marrocos.

Com a chegada de refugiados judeus da Península Ibérica durante o século XVI, Salé sofre uma enorme transformação, pois havia se criado uma rivalidade, em torno do comércio com a cidade vizinha de Rabat. Esses refugiados Sefarditas, muito animados pelo seu espírito mercantilista, estruturam uma nova administração política que ficou conhecida posteriormente como a “República de Salé” (ou República de Buregregue), levando expedições comerciais até a Cornoalha na Inglaterra. Esses comerciantes foram reconhecidos pela sua audácia e astúcia. Os corsários de Salé deixaram a imagem de “Sallee Rovers” na memória e historiografia dos Ingleses. Até o século XVIII, as atividades de pirataria permitiram uma expansão e sua influência na região, pois tem-se notícias que esses chegaram até em regiões muito distantes como a Islândia e Novo Mundo.

Recentemente tenho lido exploradores, naturalistas e etnólogos franceses que passaram pelo baixo amazonas (geralmente vindos da Guiana Francesa) que publicaram sobre essa região, cuja a importância é muito grande, desde a época do famoso administrador de Portugal, Marquês de Pombal, para o estabelecimento de um mercado extrativista a nível internacional. Entre esses autores gostaria de mencionar, Paul Le Cointe, nascido em Tournon sur Rhône, na França em 1870 e morreu em Belém do Pará em 1956. Paul Le Cointe, era engenheiro, naturalista e cartógrafo. Ele se estabelece primeiramente em Óbidos, depois em Alenquer. Entre os anos de 1892 a 1893 ele vai ser o responsável para o estabelecimento da linha telegráfica entre Óbidos e Manaus. De 1895 a 1896, juntamente com Jules Blanc, ele explora a toda bacia do Rio Cuminá. Em seguida, viaja no Rio Apiramba em regiões já conhecidas anteriormente por naturalistas como o famoso etnógrafo Henri Coudreau que morreu acometido de malária perto da foz do Rio Trombetas em1899, e sua dedicada esposa Octavie Coudreau que continuou as expedições até as cabeceiras do Rio Curuá, documentando Alenquer com algumas fotografias em 1901. Então, Paul Le Cointe, morando em Óbidos em 1898, vai trabalhar como cartógrafo realizando os limites com um instrumento conhecido como “teodolito” para as fazendas na bacia do Rio Trombetas, e ele faz um mapa da região. No seu retorno à França, Le Cointe tornou-se professor na Universidade de Nancy. Em 1920 decidiu voltar para o Brasil, onde foi nomeado diretor (ele foi o primeiro) da Escola de Química Industrial do Pará. Nesse texto eu me interesso a mostrar um mapa [2] elaborado por ele ainda nos anos de 1900, mas publicado em 1911. Esse é um mapa diferente, porque ele coloca os nomes dos proprietários de fazendas impressos no próprio mapa. Ele deve ter entrevistado muita gente para poder fazer essa detalhada cartografia. Analisando esse mapa, bem perto do Lago Grande na região de Óbidos e Oriximiná, pode-se ver o lugar de nascimento, infância e adolescência de meu pai, Salomão e de meu tio Jônathas. É a Região onde meu avô Jacob e seus conterrâneos David Azulay, Fortunato Chocron, Moisés Benguigui e muito outros judeus trabalharam por muitos anos como extrativistas e comerciantes de rios (conhecidos na região como regatões). E, pasmem-se todos! O nome desse lago no mapa do Paul Le Cointe é chamado de “Salé”. Nesse momento minha imaginação vai longe e começo a ver a concentração de judeus marroquinos originalmente de Salé que se estabeleceram perto dessa região. Ao ver esse mapa eu me animei conhecer ainda mais os locais de origem no Marrocos desses judeus e sobretudo a relação deles com os seus lugares de chegada na Amazônia. Temos notícias, ainda de outros judeus marroquinos que se estabeleceram na Amazônia como Aziz Azulay, Jacob Azulay, Isaac Hassan, Eliezer Benitah, David Issakhar Benzaquen, Zacarias Elmescany, Aben-Athar, entre outros, que também vieram de Salé [3].

Em todas as conversas que mantive com pessoas na diáspora marroquina, que viveram em Salé, eles sempre enfatizam o jeito de fazer comércio e o de negociar. Quando estive no Marrocos, desde a minha primeira vez nos anos oitenta, eu achei muito peculiar a maneira deles barganharem e de venderem seus produtos. Aliás, li vários textos de antropólogos que relacionam a identidade marroquina com o jeito de próprio de se fazer negócios. Atualmente, existe até textos divulgados na internet com o passo-a-passo para turistas que vão ao Marrocos aprenderem como barganhar nos suks das medinas marroquinas. Um desses sites está intitulado: “Negociar nos suks marroquinos em sete etapas” [4]. Para quem já teve essa experiência, vale relembrar as histórias das barganhas marroquinas. Quando estamos juntos, em família, nós sempre lembramos como a minha irmã Yolanda saiu de um estabelecimento do suk de Meknés, com tapete que ela não queria comprar, mas agora é descrito por ela como sendo o melhor negócio que ela fez, diz ela relembrando as horas em que passou na barganha marroquina.

Meu avô Jacob Athias, certamente inovou quando iniciou o seu comércio nas margens do Trombetas. Ele começou pela região do médio Amazonas, construindo sua residência em Óbidos, trabalhando até Sena Madureira, no Acre. Em Oriximiná, ele estabeleceu um comércio, e posteriormente adquiriu uma fazenda, ampliando seus negócios. Promoveu diversas atividades comerciais, como aviamento para o extrativismo regional, comércio de carne de gado através charqueada (que aprendera com seu pai, ainda em Salé) e compra e venda de lenha para navios à vapor. Nos anos de 1920, ele fundou a “Casa Israelita”, diversificada, o que seria hoje uma espécie de mini-mercado, vendendo alimentos, armarinho em geral, sapataria, remédios populares, perfumaria e uma diferenciada gama de mercadorias para uso doméstico (secos e molhados), pois ele conhecia exatamente as necessidades dos ribeirinhos pelos anos que trabalhou regateando no Rio Trombetas. Meu pai Salomão nos conta que meu avô sabia muito bem falar com as pessoas que entravam em seu estabelecimento comercial, os fregueses sempre saiam satisfeitos. Segundo ele, o seu primeiro freguês, em uma segunda-feira, não podia sair da Casa Israelita, sem levar nada, pois se isso acontecesse, ele teria uma semana difícil nas vendas. Ele corria e dava um produto só para não ver o seu primeiro freguês saindo de mãos vazias. Haviam muitos outros comerciantes em Oriximiná e a competição não era fácil. Ele recebia seus produtos através de caixeiros viajantes que chegavam até lá com as encomendas previamente estabelecidas.

Um desses caixeiros, me contou o meu pai, que também trabalhou no balcão com meu avô, representava os perfumes “Royal Briar”, muito famoso na época e bem conhecido da população de Oriximiná. O tal caixeiro viajante deixou de vender para meu avô, dando preferência para os outros comerciantes. Meu avô não gostou muito da postura desse caixeiro. Poucos dias depois, uma pessoa muito conhecida na cidade veio a falecer, os parentes foram até a Casa Israelita comprar algo para o velório. Meu avô, que sempre trazia as novidades de Belém lamentou a morte e fez a doação de um vidro do perfume Royal Briar para se usado no corpo do falecido durante o funeral, informando que era uma moda muito nova em Belém: a de perfumar bastante o defunto para o velório. E assim foi feito. A partir desse velório o famoso Royal Briar ficou conhecido em Oriximiná como o perfume do defunto. As vendas do perfume encalharam. O caixeiro viajante não conseguiu cumprir com as suas metas.

[Jacob Athias com o seu inseparável panamá e o seu time dos casados em Alenquer (Acervo do Ximango Dilson Athias Mesquita).]

A história de meu avô representa muito dos processos envolvidos nas transformações socioeconômicas do Baixo Amazonas. Apesar de sua vida de imigrante, seu sucesso econômico foi também singular, pois somente ele poderia conduzir seus negócios da maneira que o fez, dependendo das circunstâncias e motivação pessoal. Jacob desenvolveu em Alenquer uma relação profunda com todos os moradores, adotando o baixo Amazonas que conhecia muito bem como a sua terra. Foi lá que ele entrou no ramo da cerâmica, pioneiro em toda a região, produzindo tijolos e telhas em sua Olaria Yaci. Aliou-se às principais lideranças locais, tornou-se um dos assíduos da Loja Maçônica e construiu a sede Internacional Futebol Clube.

A identidade marroquina de Salé, pela sua história, sua cultura e suas maneiras de relacionar com os outros em suas diversas línguas, (Berber, Árabe, Judeo-árabe, haquitia, ah’biach e Ladino), se integra, nessa imensa diáspora dos judeus marroquinos na Amazônia, criando assim uma ampla rede internacional de comunicação e comércio oriundo de um mercantilismo baseado na República de Buregregue, que antecede o capitalismo globalizado da contemporaneidade. Jacob Amram Athias, de Salé, faleceu em Alenquer, sendo sepultado com todas as honras da tradição dos judeus sefarditas do Marrocos, no dia 31 de agosto de 1974, sem jamais ter retornado a sua terra natal. A biografia de Jacob é ao mesmo tempo extraordinária e comum, idêntica e diferente de muitas outros judeus, que fizeram e continuam fazendo parte do povo do Baixo Amazonas.

Notas:

[1] Agradeço a minha prima Gisèle Fhima Rainglas, nascida em Salé, de ter me apresentado a Haïm Zafrani e a toda a sua literatura sobre o Marrocos Judaico.

[2] Agradeço a Emilie Stoll por me mostrar esse mapa, em um delicioso almoço em um restaurante ao lado do Museu de História Natural, Jardin des Plantes, em um início da primavera de 2017, em Paris. Para ser melhor visualizado basta clicar nesse link abaixo. Tem uma ótima resolução através do site da Universidade de Stanford nos E.U. https://searchworks.stanford.edu/view/2940277

[3] Obrigado a Yehuda Benguigui por lembrar outros nomes de judeus marroquinos que vieram de Salé.

[4] http://www.explorelemonde.com/negocier-souks-maroc/

Artigo publicado na Amazonia Judaica, no. 11 2017.

https://issuu.com/amazoniajudaica/docs/edi____oderoshhashan___5778

Renato Athias, é Etnólogo, professor Associado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade (NEPE) da Universidade Federal de Pernambuco e Professor do Master Interuniversitário da Universidade de Salamanca, na Espanha.