Quando o caos vira ordem - Chuva torrencial
Está chovendo torrencialmente já faz… cinco dias. Algo incomum. Eu não me recordo, desde o ano passado, de nenhum outro momento com tanta chuva, por tantos dias seguidos. Às vezes parece que escorre um rio do céu.
Quem sou eu?
Quem sou eu no meio de tudo isso?
De tanta informação, de tanta opinião, de tantos dados?
Quem sou eu no meio de tantos pensamentos, de impressões, quem sou eu quando eu respiro fundo e me percebo, ou melhor, me sinto como minha mãe? Como meu pai?
Quem sou eu no meio dessa tristeza?
A tela de trabalho repleta de ícones de artigos científicos, sites, imagens para trabalhos, pouquíssimas fotos, pastas de projetos e mais artigos e artigos… Quem sou eu quando não me resta nada? Quem sou eu quando não tenho trabalho? Quem sou eu quando eu só tenho que desligar um pouco?
Dói perguntar isso, dói de verdade, porque a resposta é que eu não sei. Existe alguém que saiba mesmo quem é? Eu não sei, e parece que só eu não sei. Eu me sinto só, e parece que a maioria das pessoas não se sentem sozinhas. É como se eu tivesse entrado num time de fracassados, de pessoas que não tem ninguém, é o que dizem. Que eu sou difícil de lidar.
As pessoas que me dizem isso, eu sei quem são: são aquelas que não quiseram admitir seus próprios erros. Elas foram egoístas, ofensivas, violentas e não admitiam que eu me posicionasse e dissesse “não”. Pessoas que não estavam “nem aí” para mim, mas, assim como sempre na história da minha vida, por elas eu chorei, sofri, corri atrás e estive totalmente “aí” para elas. Me arrastando e sofrendo pela falta de “aí” delas. Pela falta de companhia, presença, empatia, parceria, solidariedade. E foi justamente essa falta de dignidade da minha parte, essa auto humilhação, que abriu portas para que o maldito rótulo “uma pessoa difícil de lidar” entrasse com tudo na visão que eu tenho sobre eu mesma.
Mas… Quem sou eu? de verdade?
O que diz quem sou eu são minhas escolhas, mas quais foram minhas escolhas e como julgá-las, classificá-las? Defini-las?
A intenção é sempre dúbia, a motivação idem, sempre há egoísmo, mas… Nos últimos anos, eu sei que algo eu posso dizer sobre mim: sou de carne e osso. Com limites, com conflitos, com dificuldades, com esperanças, com sonhos, com desejos, vulnerabilidades, fragilidades, traumas, dores, lutos, vitórias e fracassos, erros e acertos. Eu sou humana.
Não sei quem eu sou, mas sei que sinto. Finalmente, como nunca senti antes. Sinto e me permito agir baseada no que sinto, o que é uma grande vitória considerando o quanto eu me reprimi durante muito tempo tentando ser perfeita ou apaziguar as coisas - para os outros.
Não sei quem sou, mas sei que penso. Penso por mim, e encontro minhas respostas, que estão sempre mudando… E isso é outra vitória, afinal por muito tempo eu fui obrigada a concordar com o que os outros pensavam que era bom para mim e tive que pensar como eles. Ainda hoje algumas opiniões me afetam, aquelas mais viscerais, da mãe, do pai, e dos irmãos, daqueles que já me perderam, porque as suas escolhas também me mostraram quem eles são.
Por que estou sentindo TANTA dor na garganta ao escrever isso?
Pois essa pergunta - e a busca dessa resposta - é o tema central do meu conflito dos últimos dois exaustivos anos.
Quando eu me deparei com o caos de tudo o que eu acreditei que era bom e que era amor desmoronar aos poucos e me vi tremendamente sozinha tentando superar o trauma de crescer sob violência, negligências, mentiras e traições que foram descritas como “amor”, como “as únicas pessoas que me amarão de verdade na vida”, que aquilo era amor, e que eu deveria ser grata e devolver o que me deram e decidi me afastar, algo curioso começou a acontecer: amigos também se afastaram de mim. Eu vi amigas me elogiando pela coragem, dizendo o quanto também gostariam de se afastar de seus familiares tóxicos, e ao mesmo tempo se afastando de mim. Outros amigos nem esperavam eu terminar de contar o que eu estava passando e já vinham se explicando de porquê de não fazerem o mesmo com seus pais abusivos e assediadores… Será que eles se sentiam culpados ou com medo de que eu os julgassem? Pior que até então eu nem sabia os conflitos que passavam na família, eu só estava focada em me afastar do que não me fazia bem e buscar com todas as forças superar as decepções de finalmente enxergar com quem eu convivi minha vida inteira e fortalecer essa visão, aprender a confiar no meu discernimento que, por toda a minha vida, foi invalidado e considerado loucura. Então, nesse processo de emancipação e cura, tive duplas decepções.
Enxergar, na verdade, não foi uma decepção. Foi, sim, o que eu enxerguei.
Que aqueles que me julgavam de arrogante no fundo odiavam minha coragem de fazer o que tem que ser feito e enfrentar as próprias dores e se responsabilizar pelo que querem para si.
Que aqueles que me julgavam de ingrata no fundo não conseguiam suportar minha capacidade de dar limites para o que me fere e buscar algo melhor e mais saudável, mostrando assim que suas atitudes não contribuem para a vida.
Que aqueles que me julgavam de “egoísta que só vivia para mim” no fundo se frustravam por não terem dedicado seu tempo em mais independência e auto aprimoramento.
Que aqueles que me julgavam de controladora na verdade não sabiam ou nem queriam andar em conjunto, como um time, com comunicação clara e honesta, porque no fundo não queriam crescer em comunhão.
E quem dizia que eu estava pesando ou “sugando” no fundo não conseguia acolher o próprio peso que sentia das suas dores, insatisfações, vazios; não queria ver, só queria fugir, colocar um sorriso no rosto, trair quem não lhe agrada e fingir que tem uma vida perfeita.
Essas pessoas me abandonaram.
E por essas pessoas eu sofri.
Eu quis o amor e a admiração dessas pessoas.
Mas essas pessoas nunca poderiam me amar do jeito que eu sou porque, para elas, eu sou um monstro. Eu sou tudo o que elas mais temem e tudo o que nunca quiseram encarar.
E agora… eu estou só.
Chove torrencialmente, chove muito, chove demais.
A chuva parece uma corrente nas minhas pernas. Me prendendo da distração, não me permitindo fingir que esse aperto na garganta não existe. Hoje eu não consigo desanuviar com séries e filmes, pelo menos não agora. Hoje eu não consigo escapar. Hoje, ver série é me dar ainda mais solidão, é vazio, e eu cansei de fingir que ele não existe por estar afogada de tantas tarefas e responsabilidades. Hoje me permito chover com a chuva, escorrer lágrimas com as gotas e me abrigar do temporal com os animais, olhando para o meu lado bicho, para minhas dores e meu lado arisco e solitário.
A única coisa que eu tenho e sempre tive comigo são as palavras. Muitas vezes, é com elas que eu atravesso minha própria loucura, mergulho minha dor e encontro lá no fundo de mim, a paz.
Ainda sinto muita dor na garganta, um aperto, uma aflição, e ela não passa.
Eu acho que é o vazio… De ter me dedicado tanto a tantas relações e agora estar esvaziada. De ter entendido que eu era indigna de amor, quando na verdade estava procurando água em uma fonte seca.
Dentro de mim tem uma voz me xingando de arrogante, de perfeita, dizendo “tu nunca erra, nunca tem defeitos pelo visto”, “coitada dela, injustiçada”, “tu não te enxerga”, etc… É a voz dessas pessoas que me odiaram por trazer a verdade. “The loneliest people were the ones who always spoke the truth”, já dizia Kings…
Mas tenho medo de me criticar, pois eu levei muito tempo buscando ser menos crítica comigo e mais compassiva. Tenho medo de começar a ser carrasco de novo e acabar me ferindo. Não parece, mas eu preciso fazer um esforço para ser justa comigo mesma, compassiva e amorosa. Por dentro estou sempre em alta pressão para fazer tudo da forma correta e melhor para todo mundo. Já até morri por causa disso (literalmente).
A verdade é que eu não consigo visualizar onde que eu errei com essas pessoas. E eu tentei. Tentei por um bom tempo enxergar - sozinha, além das críticas delas, sem sucesso.
E se não consigo, a culpa é delas.
Porque me julgaram e me ofenderam ao invés de me dizer o que eu fiz que não foi positivo ou construtivo. Porque não comunicaram o que estavam precisando, se contentaram em me odiar e projetar em mim suas frustrações.
E de quem disse, só se afastou sem eu dar chance de transformar. E foi assim desde o início dos tempos. Sempre foi assim. As pessoas erram, eu converso uma, duas, mil vezes. Pergunto, tento entender. Eu erro, elas se afastam… E saem me julgando.
Tô cansada.
Tô exausta.
Exausta de ser descartável para os outros.
Então…
Quem sou eu para mim?
Porque quem sou eu para os outros ainda dói para caramba. Dói demais…
Acho que o melhor que eu consigo definir para mim, sobre mim, hoje, vindo de mim, é a realidade, nua e crua:
nesse momento
nesses últimos dois anos
eu sou um projeto
eu sou uma ideia
eu sou o processo de purificação
eu sou um ser em libertação
para a doença eu sou o tratamento e a medicação
eu sou ruínas em desmoronamento
a persistência que ora e espera em meio ao sofrimento
o terreno prestes a ser baldio,
o vazio prestes a ser criação
eu sou uma fruta em decomposição
e a futura semente em germinação
eu sou uma fênix em ebulição
eu sou, nesse momento, o esforço da minha próxima versão
eu sou, nesse momento, minha perseverança e dedicação.
Não é tão bonito.
Não está pleno.
Não está concluído.
Não está pronto.
Não está decorado.
Não é prazeroso.
Não é agradável.
Não é acompanhado.
Não é perfeito.
Tão pouco é feliz e confortável.
Não é gostoso.
É solitário na maioria das vezes, e é incompreendido.
É demonizado e temido.
Mas é o que é,
é o que eu posso ser agora
e é o que pouca gente quer
para ser quem realmente é,
um dia.