Entre a seca e o rio: reminiscências de uma lavadeira (2022)
Raimunda Maria da Conceição nasceu no dia 2 de fevereiro de 1920, em Caraúbas-RN e chegou a São Gonçalo-PB na década de 1930, no período da construção do açude, quando ainda era bastante jovem, fugindo da casa dos pais, Francisco Soares do Nascimento e Francisca Maria da Conceição. Quiçá tentando se evadir da miséria, talvez indo de encontro à desdita, em terras totalmente ignotas.
Talvez, caprichos dos seus próprios instintos ou um destino previamente definido possam explicar a fuga do seio familiar. Também é provável que tenha se inebriado ao ouvir falar em terras dadivosas do sertão paraibano, todavia não ideava que mil dificuldades a esperavam na nova vida.
Em São Gonçalo, sob o manto do flagelo, teve os seus quatro filhos, que criou com muito zelo e sacrifício, com o ofício de lavadeira, haja vista as enormes dificuldades financeiras e a forte discriminação imposta a uma mãe solteira no interior do Nordeste, nas décadas de 1930 a 1940. O sertão, arrodeado de mandacarus, juremas, aroeiras, xique-xiques, angicos, juazeiros e palmas, aplaudia, visto ser a mais forte testemunha desta pequena guerreira.
Dona Raimunda ainda tivera mais doze gestações. No entanto, sofrera alguns abortos e perdera algumas crianças vitimadas pela mortalidade infantil, que era tão presente no interior do Nordeste naquelas eras de calamidade. Outra criança recém-nascida, do sexo feminino, fora adotada por uma família de Fortaleza. Para o seu imenso desgosto, morreria sem tornar a ver a filha.
Nos períodos de seca forte, em que o governo disponibilizava as frentes de emergência nos sertões, aproveitava para ganhar um dinheiro extra com a venda de lanches para os sofridos cassacos sertanejos, junto com a velha amiga, Dona Maria Rosa. Aqueles eram tempos extremamente difíceis.
Importa destacar que nos saudosos tempos das décadas de 1930 a 1970, sobressaía-se uma classe de trabalhadoras sofridas, aguerridas, que laboravam o dia todo, desde o nascedouro do sol até a sua partida rumo ao horizonte. A imensa trouxa na cabeça e o sabão na mão, mulheres simples, maltrapilhas, percebendo uma mísera remuneração e sem nenhum direito trabalhista, as lavadeiras de roupas exerciam felizes e cantantes o seu árduo ofício no majestoso Rio Piranhas.
Em São Gonçalo, havia dois pontos clássicos no rio que eram utilizados pelas lavadeiras, estando um localizado entre as antigas pontes de ferro e de cimento e outro um pouco abaixo da ponte de tábua. Os bancos de areia grossa, as rochas e os pequenos arbustos das redondezas serviam de varal. Eram o quaradouro. O tempo era breve para tanto trabalho, desta feita o simples almoço era servido no próprio local, em pequenas sombras às margens do rio.
O seu escritório era o dorso do Rio Piranhas. A sua mesa de trabalho eram as rochas, os bancos de areia, as plantas, os pequenos arbustos ressequidos. O ambiente era climatizado por um escaldante sol de 40 graus. Com a inexorável cumplicidade da natureza, eram perfeccionistas: tinham mania de limpeza.
Os pequenos peixes e os jovens camarões, que escapavam do açude, não gostavam delas. Denunciaram ao chefe do perímetro que elas trocavam sabão por oxigênio. O pior é que era verdade. Para amenizar a situação, o chefe mandou instalar um cano de água ao lado do sangradouro, para levar um pouco de água e oxigenação do açude aos poços do rio. No entanto, quando a recarga do açude era superior a sua capacidade, não tinha problema, pois a água excedente levava o sabão do Piranhas direto para o Atlântico.
De cima das pontes, a vida em movimento assistia e apreciava a encantadora lida das lavadeiras desceletizadas. Mas que pena. Aos poucos, a profissão foi sendo extinta do sertão, tragada pela mão perversa da tecnologia, pelo desencanto da modernidade.
Entre uma lavagem de roupa e outra, de sol a sol, Dona Raimunda ia conduzindo a sua vida, às vezes, sendo conduzido por ela. A pobreza era a sua companhia mais fiel. A fome era uma visitante ingrata, mas insistente e perspicaz, detentora de uma assiduidade familiar.
No entanto, as amarguras e os infortúnios que se abateram sobre a sua vida, aos poucos, seriam apagados por atitudes, acontecimentos e sentimentos compassivos. De vez em quando, via o desabrochar de novos seres de suas entranhas. Pressentia a desesperança, aos poucos, sendo dissipada...
Acreditava que o acaso, que tinha a fatalidade como aliada, seria modificado. Nos poços de água do leito, muitas vezes seco, do Rio Piranhas, onde exercia o honrado ofício, os ventos sussurravam em seus ouvidos dias melhores para a família. E a esta brava filha biológica do sertão potiguar, cria adotiva do oeste paraibano, não restou alternativa, senão acreditar.
E assim, a fé e a esperança se tornaram os senhores de sua vida...
Em 1936, nascera o seu filho mais velho, Antonio Soares. Por volta do ano de 1956, Antonio viaja em busca de trabalho na cidade de Recife e depois ao Rio de Janeiro, onde trabalhou na Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro, nas décadas de 1960 a 1990. Antonio retornou apenas duas vezes a São Gonçalo, ou seja, nos anos de 1972 e 1975. No primeiro ano, a emoção foi tão grande, que a sua mãe chegou a desmaiar, tamanho fora o choque, ao rever o filho depois de mais de quinze anos sem contato.
Em 1939, vinha ao mundo a filha Maria de Lourdes dos Santos. Em 1967, Lourdes casou-se com o Senhor Júlio Emídio dos Santos, conhecido como Chimarrão, apelido do palhaço que ele representava, quando era artista circense, entre 1956 e 1980.
No dia 11 de outubro de 1942, nasceria, no Sítio Barro Vermelho, em São Gonçalo-PB, o seu terceiro filho, conhecido como Zé Tarzan, que trabalharia no DNOCS entre os anos de 1962 e 1995.
O filho mais jovem de Dona Raimunda é o Senhor José Braz (Zezinho), cujo pai é o Senhor Manoel Braz, seleiro do DNOCS. Nascido no dia 19 de março de 1947, Zezinho foi casado com várias mulheres, de vários estados do Nordeste, com quem teve mais de vinte filhos. Atualmente, reside em uma casa simples em Juazeiro-BA.
No dia 21 de janeiro de 1950, Dona Raimunda se casa com o senhor Antonio Vitorino dos Santos, com quem viveria até o falecimento do marido, em 29 de junho de 1988.
No ano de 1972, devido à implantação do PISG, o DNOCS determina a expulsão dos moradores e a desativação da Rua da Medidora e parte da Rua da Baixa. Desta feita, com muita tristeza, Dona Raimunda deixa São Gonçalo depois de quarenta anos e vai morar em Marizópolis com o Senhor Antonio, que se tornaria o destino de muitos são-gonçalenses, deserdados compulsoriamente de suas origens. Em Marizópolis, Dona Raimunda moraria nas ruas Erminio Vale e Rita de Abreu.
Entretanto, todas as quartas-feiras, religiosamente, Dona Raimunda e Seu Antonio saíam de Marizópolis a pé, ao raiar do sol, com destino a São Gonçalo, onde passavam o dia na casa do filho Zé Tarzan. No dia seguinte, à tardinha, retornavam para sua casa, de ônibus, na viação Santa Cruz ou viação São José. Algumas vezes, Zé Tarzan levava sua mãe de volta no seu veículo, sob a alegre companhia dos filhos. Estas visitas perdurariam até o falecimento de Seu Antonio, no ano de 1988.
Em 1975, em sua segunda e última visita à Paraíba, Antonio levou a mãe para conhecer a cidade maravilhosa. Em seguida, Zé Tarzan viajou à capital fluminense para trazer a mãe de volta à Paraíba. Na viagem, Zé Tarzan aproveitou para conhecer as belezas da cidade fluminense, bem como a imponência da capital paulista.
No ano de 1988, após a morte do marido, Dona Raimunda vai morar em Juazeiro da Bahia, com a filha Lourdes, o genro Júlio e a neta Selma.
Vivendo na Bahia, Dona Raimunda não conseguia disfarçar a bucólica melancolia. O seu analfabetismo era limitado. A imaginação, não. A desfamiliarização com as letras a impedia de escrever como os poetas dos sertões, mas não a impossibilitava de sonhar como eles.
Vez por outra, era flagrada pela família em estado de meditação profunda. Um longa-metragem de pensamentos invade a sua mente, quando se depara em épocas pretéritas. Embriaga-se saudosamente em cenas realescas exibidas em preto e branco. Passava sua vida a limpo. Algumas vezes, em delírios incompreensíveis, chegava a assentar até mesmo os sertões no banco dos réus. Mas, como era uma mulher justa, apesar das agruras que vivera, conduzia um julgamento digno, respeitável. Ao final, todos eram legitimamente absolvidos. Até mesmo o tempo, implacável senhor da vida e da morte. Detentor de uma irreversibilidade mórbida e escancarada, o tempo nunca se arrependera do que fizera, pois jamais voltara atrás nos seus atos.
Nos versos dos poetas, o tempo geralmente assume papéis antagônicos: às vezes, herói; às vezes, vilão. Sem, no entanto, jamais abrir mão do protagonismo. É sempre dúbio com o sertanejo: oferta sabedoria, mas deduz os dias úteis do seu calendário da vida.
Nos primeiros meses de 1995, Dona Raimunda adoece gravemente. Sem querer dar razão aos seus pressentimentos, recebe as juras e ameaças da morte (HÉLIAS, 2015). É avisada que seus derradeiros dias de vida haviam chegado. Não conseguia disfarçar o seu sentir, a sua inquietação.
Pouco depois, no dia 10 de março de 1995, falece na casa da filha Lourdes, em Juazeiro da Bahia, aos 75 anos de idade, levando para o túmulo um pouco da história, cultura e nostalgia do Nordeste rural brasileiro. Desde jovem, trazia no olhar profundo e nas mãos ressecadas pelo sabão as indeléveis marcas de uma vida fatigante, adversa...