Caminhando de Costas (2)

Caminhando de Costas.

* Início da estrada.

Era uma madrugada diferente; se possível existir fosse… Mas foi por ela que me senti caminhando em uma estrada reta, mas comprida e sem fim. Não se via seu término; eu sentia que quanto mais caminhasse, mais teria que andar. Parecia-me sombria, não por ser noite e sim por pressentir que por ela eu já havia caminhado sem poder entender quando ou como. Não havia indecisão, havia sim um vazio enorme, uma espera constante que alguém aparecesse como forma de resposta a aquele momento. Deparei-me então com um senhor escuro e forte e para espanto meu chegou dizendo: Como vai amigo... Assustei-me e esperei que ele continuasse. Não se lembra de mim ne´... E sem que eu respondesse foi dizendo: Como é, tornou-se jogador de futebol? Pelo menos sei que faltas você aprendeu bem a cobrar. Nada eu entendia, mas atarantado apenas escutava. Aquele sujeito me transmitia segurança, devia conhecê-lo, mas não me lembrava de onde. Uma vaga e distante lembrança... Como chegou se foi, deixando-me a fermentar os miolos.

Continuei meu caminho, às vezes olhando para trás (ou para frente, acho.), e de súbito lembrei-me quem aquele sujeito era. Assustado, voltei no tempo. Era um amigo de infância, mais ou menos tínhamos na época uns doze anos e ele ficava me ensinando a chutar bolas ao gol no campo de futebol do “Alvorada”, quando morávamos no bairro Vila Oeste em Belo Horizonte. Nos dias de jogos sentávamos (aproximadamente uns 20 moleques) nos trilhos do trem que passava ao lado e ficávamos batendo pedras num barulho ensurdecedor, e nos dias de semana ficávamos quase todo o dia (quantas palmadas levei de minha mãe por não ter ido almoçar) no campo e fazíamos um montinho de terra, colocávamos a bola encima e ele me explicava exaustivamente como eu deveria chutá-la. Meus pés ardiam devido à areia, mas, conforme o toque na bola conseguia fazê-la ir aonde queria. Com o progresso acabaram-se os campos de futebol amador, surgiram quadras poliesportivas e dos montinhos de terra ficou apenas a lembrança e o aprendizado da determinação e disciplina. Rememorei aquele tempo tão importante para minha formação pessoal. As trocas de revistas na porta do Mandiocal (Mandiocal era o nome que se dava ao cineminha do bairro), o pé de ameixas no fundo do quintal de nossa casa, os primeiros flertes com as meninas do local, a lembrança das dificuldades em que se encontrava meu pai numa falência eminente de sua empresa.

Lembrei-me das furrecas (carros velhos) que papai passou a dirigir, da cachorra Bebela que mataram tão covardemente, da cisterna e seu maçarico chorão, do quarto com chão de tábua, do porão, do inesquecível chafariz de onde buscávamos água para mamãe. Em nossa casa havia uma sala de visitas em piso de cimento vermelho que minha mãe conservava brilhando passando um escovão (mais tarde inventaram a enceradeira), uma cristaleira linda e uma porta de entrada horrível que abria para os dois lados. Tinha um relógio despertador barulhento, onde meu pai deixava uns trocados para as despesas do dia e ao lado da casa uma vendinha dos “fazendeiros” por quem todos tinham medo. Pouco a baixo o bar do “Seu Edson” e a Escola Municipal. Parecia ontem... Lembrei-me do tombo ao tentar entrar no ônibus em andamento, dia em que fui sozinho ao cinema (Cine Amazonas), assistir Grande Otelo e Oscarito, recordei-me com melancolia de quando morávamos ainda no bairro Alto Barroca e roguei a Deus para voltarmos a morar na casa que ainda tínhamos lá, voltar a conviver com amigos com quem passei anos juntos. Imaginei-me novamente jogando bolinhas de gude, finca, bente-altas, brincando de Tico-Tico Fuzilado, bebendo água da mina, matando Tiziu no pulo, pegando Bico de Lacre com visgo, ou mesmo indo caçar Tatu com Zeca e seu cachorro, um vira-lata preto e pequeno que se chamava Tiuzinho. À noite brincávamos com as meninas de Passar Anel e Pera, Uva ou Maçã. Brincar de roda era coisa de meninas, meninos jogavam tapão, colecionavam gibis, faziam armadilhas e construíam cabanas no mato. Havia o Clube do Bolinha, existia Luluzinha... Lembrei de Roy Roger´s, Rin-tin-Tin, Cavaleiro Negro, Capitão Marvel, Nacional Kid, dos bonequinhos plásticos de Mickey, Minie, Pato Donald, Margarida, Pateta, Huguinho, Zezinho e Luizinho. Recordei-me com sorriso aberto do caminhão que trazia pintado em suas laterais corpos de Jacarés; vendia querosene, líquido que se usava em pequenas lamparinas quando a energia elétrica acabava; e então com uma labareda preta que saia, ficávamos desenhando no teto da casa macabros seres, tudo conforme nossa própria imaginação. Tinha também o que vendia leite, chamávamos de “Vaquinha”. Podia se levar a vasilha para encher no local ou comprar o litro que era um vidro largo e grosso retirado da grade de ferro.

* Primeira parada.

Perdido em minhas recordações nem notei alguém me tocando e perguntando como vai a Dedé... Dedé foi minha primeira namorada, morava na mesma rua. Filha de Ruth, minha querida sogra e neta de Tia Nair e Sô Antonio Guarda, Policial Civil número cinco. Ele costumava esbravejar com orgulho que já havia pegado muito Inhambu na Praça Sete. Bebia muito e gritava como se dono do mundo fosse: Naiiir!... e lá ia a coitada da Amélia, digo, Tia Nair saber o que ele precisava. Era hilário, mas muito interessante. Casei-me com Dedé. Hoje após mais de quarenta anos de convivência continuo amando-a como no início. Trouxe-me filhos e deles consequentemente lindos netos. Mulher de uma fé inabalável, lutou bravamente pelo direito de viver, transpondo várias dificuldades de saúde. Quando do nascimento de nosso primeiro filho, na maternidade dei à recepcionista um tablete de chocolate (Toblerone) e ela manifestou tanta alegria que parecia ser ela quem estava se tornando mãe, fato que guardei comigo, pois esta moça fez parte de um dos mais felizes momentos de minha vida.

Respondi: Waldete vai bem, com saúde. E você como está?... Era Tonho Inácio. Amigo de infância bom de bola, bom de briga, determinado, bom companheiro. Relembramos nossas travessuras e muito efusivamente as partidas do Apolo, time de futebol que fundamos e que levava o nome do barzinho que meu pai montara na saudosa Rua Contendas, dos cigarros de talo de chuchu que acendíamos, das primeiras pingas (Ferreira, Século XX, Caribé), dos cigarros sem filtro que fumávamos no meio de semana (Continental, Saratoga, Tabaco Douradinho,Elmo) e aos fins de semana para influenciarmos as meninas, comprávamos Minister, Cônsul, Negritos ou Hollywood com filtro. Lembramo-nos das peladinhas (futebol), no campinho com traves de bambu que nós mesmos construíamos, valendo litro de Coca-Cola, das manivelas para empinar papagaios, do cine-gratis que passava na Rua Amparo e até da chegada da televisão; primeira do bairro comprada por meu querido pai e pela qual assistia-se Reporter Esso e Irmãos Coragem. Recordamos o indiozinho que representava a extinta TV Itacolomy e a musiquinha: “TV Itacolomy, sempre na liderança; canal quatro, Belo Horizonte, Minas Gerais”... E as guerras de mamona ou esterco de cavalo?… Nossas coleções de figurinhas, o campinho ao lado da casa do temido Sr. Silvio, pai de Lilinho e Eliane. Aquela incompreensível vontade de crescer, “virar homem”, como comentávamos. Nosso primeiro troféu no futebol amador, a galante apresentação para início da famosa Copa Arizona( marca de cigarro sem filtro e o mais barato da época). Formamos um grupo de samba que depois se tornou a charanga do time e após as partidas tomávamos cervejas, tocávamos samba e ao final escutávamos o violão do Sr. Geraldo (meu pai). Após as partidas cantávamos em coro: Apolo, Apolo, e é por isso que eu te adoro. E o Granada (time adversário) com o “Pé de Ferro”, nós fomos lá e metemos o ferro... Música e letra de Ademir Fuca, irmão de Nini, que suicidou-se. Lembramo-nos do dia em que Neil Armstrong e Edwin Aldrim, os primeiros homens que pisaram na lua e desconfiados assistimos pela televisão, e agradecemos a Deus por termos tido uma infância tão pura e saudável. Existia pureza, amor e transparência no viver. Muito tínhamos ainda para recordar, mas à minha frente estava Carlos, pedindo-me a chave do Itamarati 66 de meu pai e ao me entreter Inácio havia sumido do nada, talvez a chamado de Chú ou Zeca. Carlos foi o parceiro da primeira boate, das primeiras viagens, das primeiras namoradas. Falamos de vários momentos, passagens conjuntas, de amigos e amigas (fomos grandes parceiros!...), da cidade de Caratinga, das namoradinhas que conquistamos, dos lugares que frequentamos, de nossos primeiros veículos motorizados. Certa época ele comprou um Karman Ghia TC, vermelho, lindo. Visualizei ali sua casa, sua mãe Dª. Dimira, sempre muito carinhosa, "Seu Zico", um homem carrancudo e de poucas palavras e dos pássaros que Carlos tinha como obrigação de cuidar.

Estava desnorteado, pensando na Marta Rocha (...não a miss, mas aquele lanche gostoso que eu degustava no recreio), lembrando daquele magricelo que me bateu na saída da escola. (também eu batia em todo mundo, um dia teria que apanhar mesmo, só não podia imaginar que justo do mais fraquinho da turma). Sou grato a ele... Ensinou-me a nunca menosprezar o adversário e que de onde menos se espera é justamente de onde vem. Parece ontem que eu falava na sala de aula: “Me espera lá fora se você for homem”... Que briguinhas mais ingênuas, brigava-se para uma plateia que em círculo incentivava até aparecer um “deixa disso”. Para iniciar, havia sempre um falando: Quem for mais homem cospe aqui, com a mão estendida entre os brigões.

Lembrei-me de você, linda menina… Você que nem do nome lembro, que comigo voltava conversando após a saída da escola até a esquina da rua de sua casa; você que nunca mais vi, mas também nunca me esqueci.

* Segunda parada.

Continuei minha ida (ou volta?), pelo caminho da imaginação e defrontei-me com o medo dentro de mim. Medo do futuro, medo do que estaria por vir neste mundo de hoje tão estranho e louco. Aprofundei-me em meu íntimo para cobrar-me responsabilidades. O que deveria fazer para melhorar a condição de vida de meus semelhantes, precisava ajudar, compartilhar, participar. Mas sentia-me incapaz, preso em meu passado, querendo ir para frente e sentindo caminhar de costas. Tornou-se noite naquela minha madrugada diferente. Ouvi acordes de um violão e uma melodiosa voz a acompanhá-lo. Lágrimas sem minha permissão percorreram minha face e meu coração contraía-se me sufocando e fazendo-me refém de um sentimento mórbido e uma sensação de vazio enorme. Era meu pai a dedilhar as cordas de seu violão incentivando-nos a cantarolar as canções á beira da janela de alguma moçoila. Cantávamos: "Boa noite, ela está dormindo, vejam como é linda, sua majestade... aí, citávamos o nome da moça. Acendia-se e apagava-se a lâmpada do quarto como sinal que estava a escutar, simultaneamente iniciávamos a serenata e ao final o agradecimento com novo sinal nas luzes de fora da casa. Ali deixávamos rosas roubadas em terrenos alheios... Saudade de meu pai, da beleza destes momentos; saudade das madrugadas frias que nos faziam felizes e cheios de amor. Invadiu-me uma vontade enorme de ir até o final daquela estrada nebulosa e intrigante, descobrir como estão aqueles que já a percorreram até seu término, mas, por mais que me esforçasse continuava a andar pra frente, sentindo-me caminhar de costas. Era o passado se apresentando no meu presente e me ensinando que o futuro só a Deus pertence e que a estrada da vida é longa e imprecisa, que sinuosa ou reta nunca descobrimos o final dela.

*Terceira parada.

Passou um carrinho feito de madeira. Era o primeiro que transitava por aquela estrada. Só cabia uma criança dentro, e era eu quem estava a dirigir.

Lembro; meu pai quem os fazia para mim. Tinha volante de madeira, rodas de pau revestidas de tiras de borracha, freios com couro de boi e capota de plástico. Todos os meninos me invejavam por causa daquele meu carrinho. Obrigado meu pai, você me ensinou assim a fazer tudo para que meus filhos sintam por mim o mesmo orgulho que eu tinha pelo senhor. Mas bom também eram os chamados “Carrinhos de Guia”; com rodinhas de rolimãs freava-se com os pés no chão, estourando os calcanhares num prazer ilógico. Como se estivesse acordando, (era tudo tão real que me recusava a achar que poderia ser um sonho) ouvi uma melodia dos Beatles, (não sabia se era Help ou A hard day`s night). Visualizei-me em calça listrada de cós baixo (Saint-Tropez), com vinte e dois centímetros de boca (diâmetro das pernas da calça na parte de baixo), camisa manga comprida aberta no peito, cigarro de lado na boca, topete tipo Elvis Presley na testa, (a gente dormia com o cabelo enrolado em uma meia-calça de mulher, para alisar os cabelos. (quem disse que homem não fazia pranchinha?...). Calçava botas de salto alto com zíper de lado. Hoje escuto Bievenido Granda, Nat Kig Cole, La Paloma, Billy Vaughn ou mesmo Lupicinio Rodrigues, Adoniram Barbosa, Nelson Gonçalves, Ângela Maria e Cauby Peixoto; músicos que meu pai tanto gostava. Mas o grande barato do momento eram os revolucionários meninos de Liverpool. Ringo Starr, Paul McCartney, John Lennon e George Harrisom; “Os Besouros”... Veio à revolução musical brasileira; Roberto e Erasmo Carlos, Os Vip´s, Golden Boys, Ronie Von, Vanderlei Cardoso, Wanderléia, Martinha, (...uma brasa, mora), entre tantos que inesquecíveis se tornaram como João Gilberto, Baden Powel, Vinícius de Moraes, Chico, Caetano, Elis, Tom e outros. Prossegui em minha instigante e intrigante caminhada por aquela estrada de sonhos e recordações, inspirado pela clara beleza daquela escura madrugada.

Sentia-me atônito, hipnotizado e estranhamente atrapalhado, descobrindo a realidade dos acontecidos fatos, apesar da irreal verdade dos sonhos e totalmente absorto nos sentimentos que em mim se manifestavam num misto de melancolia, alegria, tristeza e saudade. Muita saudade !...

* Quarta parada.

Alguém gritou: Corre menino que se te pegarem ocê tá frito.

Eu havia sido descoberto… Como meus pais agiriam se me pegam pichando muros?... Como eu explicaria que aquela era minha iniciação política se nem mesmo eu sabia da importância daquele meu insensato, mas corajoso gesto?... Ao dia, entre engraxar sapatos enfrente a farmácia Santa Marta e vender limões na praça Raul Soares, saía com um pedaço de carvão escrevendo em paredes o nome de Brizola.

Sonhava ser como ele: Brigão por suas ideias e ideais, corajoso, valente, bravo defensor das causas populares.

Tudo politicamente correto!...

Leonel de Moura Brizola. Um gaúcho porreta que fincou pé na cidade maravilhosa e muito trabalho deu para os comandantes da época. Fez o Palácio do Catete fervilhar. Adorava aquela minha travessura. Brizola!... Brizola!... Brizola!… Escrevia e com o coração quase saindo pela boca repetia baixinho euforicamente. Naquela idade e eu já me postando como um militante de esquerda radical, um comunista de fazer inveja a Luiz Carlos Prestes, “O Cavaleiro da Esperança” como era chamado. Tudo politicamente correto!...

Estudava no Grupo Escolar Olegário Maciel. Sim... era “Grupo Escolar”. Professora era “fessôra” e não “tia” como hoje se intitula. Fazia-se a chamada colocando um pontinho à frente do nome do aluno. Presente, respondia-se...

Tinha tabuada, caderno de ortografia, caderno de redação, aulas de catecismo, de educação física e matemática era aritmética. Assento circunflexo era chapeuzinho do vovô (^) e o agudo grampinho de vovó (-). Aprendíamos O.S.P.B. (Organização Social e Política Brasileira) e quem não fosse aprovado ao final do ano se tornava repetente. Aluno indisciplinado podia ser expulso, impunham-se castigos como ficar em pé atrás da porta da sala de aula, ou repetir a lição várias vezes. Ah!...Tinha “Para Casa” e ninguém sentia vergonha da pasta preta e merendeira a tiracolo. Ao terminar o primário, estudava-se mais um ano para entrar no colégio; chamavam de “Admissão”, e ao final do ginásio (ou colégio) podia se escolher entre fazer escola técnica ou científico. Minha orelha direita começou então a arder. Lembrei-me de Dª. Cesarina. Ela quase me arrancava as orelhas por estar sempre colocando “Ç“ antes das vogais “E” e “I”. Até hoje fico atento. Gostava de descer pela avenida Olegário Maciel, passar por entre os bancos da praça Raul Soares, conversar com os peixinhos do lago da fonte luminosa e depois apreciar o Cadillac rabo de peixe, cor azul-piscina, com bancos brancos que ficava na agência de veículos chamada Cavalin, ao lado da “Estofados de Luxo”, uma fábrica e loja de móveis estofados de meu pai. Que prazer enorme descer Rua Guajajaras até a sede do Cruzeiro e pular naquela piscina, apresentar a carteirinha para o porteiro que chamávamos de “Para Raio”, frequentar os matinês carnavalescos e ver os concursos de fantasias. Em dias de carnaval papai mandava fechar os vidros do carro com medo de “Lança-perfume...Ficava admirando o edifício JK e entendendo o porquê de Juscelino Kubitschek de Oliveira ser tão querido e respeitado. Era por sua coragem empreendedora, sua arrojada visão futurista, por ser o ídolo de meu pai. (aí me envergonhava de ter escrito ”Brizola” nas paredes). Mais tarde entendi que sem choque de opiniões, nada se constrói democraticamente.

* Quinta parada.

Meu pai promovia muitas festas lá em casa; condição financeira ainda boa, amigos vários, muita abastança. Engradados de refrigerantes marca Crush, sabor laranja, em garrafa escura e Grapete, de uva (a propaganda dizia: Quem bebe Grapete, repete...), bebidas e comidas à vontade. Em um destes encontros aproveitei o descuido dos adultos e tomei um copo de pinga que estava sobre a mesa. Quase morri... Meu pai não me repreendeu, apenas explicou-me que nem tudo que os outros fazem devemos também fazer. Aquela lição, comigo até hoje, ajudou-me em diferentes ocasiões da vida, ensinando-me a respeitar limites e tornando-me ciente da responsabilidade por meus atos e decisões. Meu pai era muito amoroso com todos nós, sempre procurando nos agradar e passando sempre um conceito de amante da vida e de seus entes. Certa vez o vi chegar, pois estava deitado ao lado de minha mãe. Chovia e ao entrar tirou a capa de chuva, o chapéu e as galochas (proteção de borracha que se usava cobrindo os sapatos). Trazia um lindo rádio de madeira clara e pano vermelho na frente, presenteou a mamãe com carinho. Este radinho então veio substituir um outro grande e escuro no qual minha mãe ouvia Jerônimo, o herói do sertão. Só agora entendo porque ele nos pediu tanto para que cuidássemos dela quando sentiu aquele derrame e achou que havia chegado ao extremo de sua estrada. Aquela preocupação foi o ato mais sublime de prova de amor que eu já vivenciei. Revivi naquele momento o cuidado que ele tinha até mesmo na hora de colocar folhas de bálsamo nos cortes que eu arrumava por minhas peraltices, o brilho em seu olhar a me ver jogando futebol, o orgulho que sentia por seus quatro filhos e duas filhas, o carinho constante com mamãe. Distraído, tropecei em algo. Era meu Kichute no meio do caminho de novo. Kichute era um calçado preto, meio tênis, meio chuteira, que exalava um mau cheiro horrível, (pior só os sapatos de plástico “Verlon”), mas muito me servia aos domingos nos campos de terra, quando defendendo os times do bairro. Nas peladas jogávamos descalços, e o dedão do pé nem unha tinha mais de tanto chutar o chão e mesmo sangrando, continuava jogando.

Eu era um ótimo marcador; camisa cinco, cabeça de área.

Pegava tiras de couro na fabriqueta de meu pai e vendia para os meninos colocarem em seus bodoques. (depois passou a chamar-se estilingue), ou trocava por forquilhas de madeira para fazer os estilingues (ou bodoques) e vender. Minhas manivelas de empinar papagaios (havia diferença de “Pipas”), tinham oito cruzetas que batiam de lado fazendo barulho e linha eu só usava marca “Urso”. Vibrava quando papai nos levava a passear e na estrada perguntava-nos se queríamos ir para o “SESC” ou Vale Verde. O carro era um Plimouty preto, arrojado, lindo. Éramos uma família feliz e assim aprendi o valor dos vínculos familiares, a importância de procurarmos valorizar essa instituição hoje quase falida.

* Sexta parada.

Ah!... E o pé de figos?... Enjoei de tanto comê-los ainda verdes. Verdes como eram as águas do riacho que cortava nos fundos da fazenda do “Sô Santos” em Serra do Cipó.

Dizem que era meu avô... Nunca entendi bem esta história... Falavam que minha avó se chamava Eugênia ou Efigênia e era descendente de escravos. Meus tios por parte de pai eram todos mulatos, diferentes de papai que era claro. Até hoje adoro o cheiro de manga Ubá, lembra-me a fazenda, havia lá muitos pés; a cama de palha, um anão a quem chamavam de Dorico, e uma vaca malhada de cara fechada que diziam não gostar de crianças.

Havia um fogão de lenha enorme, uma varanda em madeira com várias cadeiras de balançar e sempre uma lua grande onde eu ficava vendo dentro dela São Jorge montado em seu cavalo. Os quartos eram grandes e muitos, com janelas e portas enormes e tramelas para se fecharem, e as tábuas no piso rangiam conforme o peso de quem passava. Nas histórias de fim de tarde, contavam-nos sobre Mula sem Cabeça, Saci Pererê e outros menos assombrosos que não me tiravam o sono, e sim me fazia duvidar dos adultos que narravam os contos demonstrando mais medo que nós crianças. Acordávamos bem cedo, principalmente pelo forte e alto mugido da vaca malhada chamando por seus bezerros. Eu ficava matutando: Como ela não gostava de crianças se tratava com tanto carinho os seus bezerrinhos?... Tinha um mais franzino que lhe puxava as tetas com tamanha violência que parecia que queria arrancá-las. Ela abanava a cauda tentando espantar uns chatos mosquitos que lhe incomodavam e soltava uma espuma branca pela boca sem parar. Existiam umas galinhas D’angola que corríamos atrás delas só para vê-las gritando; tô fraco, tô fraco, tô fraco.

* Sétima parada.

Senti então um calafrio indecifrável. Uma sensação de impotência, uma tristeza enorme. Podia jurar ter visto minha irmã passando correndo, e eu tentando vê-la, tocar-lhe, dizer-lhe de nosso amor por ela, da falta que até hoje ela nos faz, da dor que sentimos por perdê-la tão precocemente. Falar-lhe o quanto sou grato por tudo que fez por nós, contar-lhe tudo que aconteceu aqui depois de sua ida para o céu, perguntar-lhe se está feliz e como é ser chamado por Deus deixando tanta saudade. Queria saber se encontrou com papai, como ele está, como é a vida após a morte. Existe?...

Uma tenebrosa chuva fina e fria misturou-se às minhas quentes lágrimas. Edna foi a filha amada, a irmã querida, a amiga sempre presente. Segunda da linhagem dos “Margaridas”, dois anos mais nova que Eulinda e dois anos mais velha que eu. Trágica e subitamente nos deixou, atropelada. Ela tinha cabelos longos, pretos e muito lisos; pintas no rosto (sardinhas), olhos pretos que lembravam jabuticabas e uma satisfação em viver contagiante. Comunicativa cultivou muitas amizades em seus trinta e sete anos de vida terrestre. Sempre sorrindo, divertia-se com a vida, zombando dela com a certeza que cada minuto deveria ser vivido com amplitude e prazer. Interessante!... Dava a impressão que ela sabia que iria subir para o plano superior mais cedo, tamanha sua intensidade de vida, sua constante preocupação em ajudar, fazer os outros felizes e também ser. Recordo-me que no dia da tragédia, cheguei ao hospital onde ela se encontrava e poderoso me dirigi ao chefe de plantão, apresentando-me como o irmão da moça ali hospitalizada, colocando minhas possibilidades financeiras à disposição. Eu estava financeiramente controlado, em condições de arcar qualquer despesa. Dirigi-me então para um senhor calvo, baixo, meio barrigudinho que denotava muita tranquilidade e disse-lhe já com talão de cheques em aberto: Doutor, o que é necessário para o tratamento desta paciente? Deslocarmos para um hospital com melhores possibilidades de atendimento? Aquisição de algum aparelho? Profissionais gabaritados? Circunspeto, mas direto e positivo respondeu-me interrogando-me: O senhor tem pais vivos?... Irmãos?... Em minha resposta afirmativa, finalizou. Cuide deles, no momento precisam muito de você, por ela nada se pode mais fazer, faça por quem está em vida. Compreendi naquele momento que dinheiro nenhum do mundo compraria a vida, que toda minha condição de nada valia naquele momento, que minha querida irmã estava morta e meus pais e irmãos precisavam de mim. Aprendi que devemos valorizar a vida e aos que compartilham dela, pois a morte é abrupta, frígida, inconsequente irresponsável. Mamãe sofria muito; citava sua dor como se houvessem lhe arrancado parte de seu corpo. Senti-me envergonhado de meu sofrimento, tamanha a dor que mamãe estava sentindo. Queria sofrer por ela, mas esse direito Deus não deu a ninguém, cada um sofre sua parte.

* Oitava parada.

Mamãe; mulher forte, resoluta e amável. Sobressaiu-se sempre nas horas difíceis ensinando-nos a superar sempre. Criou-nos com dignidade, sendo sempre a mesma em todos os momentos. Educou-nos com afeto e com a necessária disciplina. Foi a esposa companheira, altiva e vigorosa, fiel aos princípios deixados por vovô, um negro alto e sisudo e vovó, uma senhora delicada de olhos incrivelmente claros. O arroz que vovó fazia era branquinho como um véu de noiva, seu sorriso largo e de uma beleza inesquecível, sua fala cadenciada e franca. Morou conosco e lembro-me que mamãe ficou mais de quarenta dias acompanhando-a no hospital.

Oh minha mãe. Hoje lemos nas linhas de seu rosto uma história de vida digna, transcreve-se em sua face o conhecimento, a vitória, o exemplo perpetuando para as novas gerações. Sua trajetória de vida servirá como modelo a seguir, seus filhos orgulhosamente citarão seu modo único e sua passagem por este mundo de Deus está eternizada. Você ensinou que não importa onde paramos ou em que momento da vida nos cansamos, pois sempre é possível e necessário recomeçar. Recomeçar dando uma nova chance a nós mesmos, renovando esperanças na vida e o mais importante, acreditando novamente. Orientou que sofrimento é aprendizado, que chorando estamos fazendo limpeza da alma, que não se deve chorar por algo terminado e sim sorrir por ter existido, que se sentirmo-nos sós é porque fechamo-nos até para os anjos e acreditando que tudo está perdido é com certeza o início da melhora.

* Nona parada.

Um calor insuportável iniciou!...

Que tempo louco em apenas uma madrugada. Mas era a minha madrugada, e nela podia acontecer de tudo. Uma madrugada que só aconteceria naquela estrada, uma estrada que eu percorria pensando seguir em frente, mas sentindo andar para trás; de costas. Nesta madrugada até mesmo aparecia o Sol, Sol como aquele das praias de Copacabana, Leblon, Ipanema ou da Barra da Tijuca. Sol carioca, de Maracanã em domingo de Fla-Flu, sol fluminense. Fluminense de Rivelino, de pó de arroz jogado para o alto, das Laranjeiras. Sol de Jardim Botânico, Cristo Redentor, Pão de Açúcar. Quando ao Rio de Janeiro cheguei descobri o paraíso. Uma cidade linda, alegre, festiva. Pessoas sempre de bom humor e de uma irresponsabilidade gritante. Carioca é trabalhador, mas não sofredor. Para eles tudo é festa, alegria. Bons companheiros, gozadores, diferentes. Amei a cidade. No início enfrentei dificuldades por necessitar me sustentar e me adaptar, mas fui me ajeitando como bom mineirinho que sou. Subi minhas escadinhas devagar. De carregador me tornei um dos mais requisitados vendedores de livros do antigo Estado da Guanabara. Atendia figurões como Flávio Cavalcanti, que sempre ao entrar na livraria com seu dedo indicador para o alto e como se estivesse na Tv Bandeirantes ou na Tupi dizia : “Nossos comerciais, por favor!”, e Sargentelli acompanhado de um dos seus vinte e um filhos, sempre alegre e expansivo, mas com um tom de voz ameaçador como em seu programa “Advogado do Diabo”, entre outros. Permiti-me com prepotência, ler “Admirável Mundo Novo” do revolucionário Aldous Huxley, “Eram os Deuses Astronautas” de Erich Von Daniken, que, como eu, acreditava na tese de que a terra foi visitada por seres extraterrestres, me deliciava com a possibilidade de interpretar as confusas “Profecias de Nostradamus”, sem me esquecer das repetidas vezes em que li Papillon de Henri Charriere. Definitivamente senti saudade de “O Pequeno Príncipe”, e sei, estas leituras em muito aumentaram meus conhecimentos e me ajudaram na lida com s semelhantes. Do aterro do Flamengo passei a frequentar avenida Nossa Senhora de Copacabana e Barata Ribeiro, me tornei assíduo nas rodas de bamba, estava no auge do engano, da irrelevante satisfação ao ego.

* Décima parada.

Após certo tempo recebi a visita de meu pai. Como se fosse ele a criança, rolou brincando comigo na areia da praia. As mesmas lágrimas que ele derramou quando eu, um rapazinho metido a sabichão que resolveu deixar família e tentar a vida como se sentimentos nada valessem, fora as mesmas que derramei quando meu pai retornou. Sabe pai, se eu soubesse que tão cedo partirias, teria lhe dado um beijo mais longo, teria lhe dado um abraço mais demorado e o chamaria para dar outro e outro, e outro. Se eu soubesse que não mais ouviria sua voz, teria filmado cada movimento de seus lábios e gravado cada palavra, para revê-los depois todos os dias, teria compartilhado com você os últimos segundos, procurando senti-lo com mais intensidade e nunca deixá-lo simplesmente passar, ficando ao seu lado e te pedindo desculpas por minha ausência. Se eu soubesse que você faria tanta falta, teria convivido mais, te amado mais, aprendido mais. Teria lhe dito “amo você”, em vez de deixar que se fosse desejando minhas palavras. Com o senhor aprendi que se institui família com amor e devemos governá-la com bondosa energia. O senhor foi pródigo nos ensinamentos, zeloso mantendo a autoridade paterna, cauteloso nas decisões, mas firme no que decidir.

Obrigado meu pai; perdoe-me, te amo…

* Décima primeira parada.

A maturidade estava me atingindo, já aceitava a saudade de meus amigos, de minha mãe e irmãos. Em conformidade ao meu modo de sempre agir pelo que dita o coração, pensando nos meus resolvi voltar, retornar para o mundo real e deixar de lado a utopia. Hoje vendo minha filha Ana Carolina tão longe, já há tantos anos sem vê-la, fico rogando a Deus por sua volta. Que ela entenda, como eu entendi, que a dor que se sente em ter um filho distante é cruel e inaceitável, que a distância entre os que se amam é um abismo intransponível que fere a alma, que o tempo perdido nunca se recupera e não devemos viver apenas para nós mesmos, pois mil fibras nos conectam com outras pessoas, e por essas fibras nossas ações vão como causas e voltam para nós como efeitos.

* Décima segunda parada.

Sentei-me em uma pedra à beira de minha estrada, podendo visualizar com clareza, apesar da escuridão de minhas ideias, ou melhor, de minha madrugada, um taboal lindo. Todo marrom e verde. (Taboa é uma planta de talo verde e com sua parte superior parecendo feltro em cor marrom). Adorava juntar taboas. Com o tempo passaram a utilizá-la como decoração e há muito não vejo esta planta que brotava em abundância em um enorme charco que havia na hoje avenida Silva Lobo. Atravessávamos pela lateral do brejo e caminhávamos pela avenida Amazonas indo até a escola estadual ou seguíamos para o campo de futebol do Cruzeiro do Sul. Havia três campos juntos: Cruzeiro do Sul, Paulistano e Santa Edwiges. Atravessando-os ia-se para a vila dos Marmiteiros, um aglomerado extenso, em sua maioria de barracos em madeira e lata, espaço este que deu lugar a avenida expressa que engoliu posteriormente os campos, inclusive do Alvorada e do Reunidos. Eu e meu irmão mais novo frequentávamos os bailes que aconteciam em um clube no interior da favela e por diversas vezes enfrentamos os rapazes do local em brigas homéricas. Éramos bons de briga e no entusiasmo da idade, irresponsáveis o suficiente para não calcularmos riscos. Ele se tornou um rapaz pomposo e apesar de mais novo que eu, mais forte e mais alto. Nunca foi bom de bola, mas ótimo no trato com as mulheres. Teve muitas e sua história só ele sabe contar. Que bom se ele entendesse que ninguém pode nos tirar a graça de nos sentirmos queridos, a alegria de se desejar o bem, a delícia da fé no amor, a sensação de ser bom. Que ótimo se compreendesse que ninguém pode nos tirar à vontade de transformação, a esperança de realizarmos nossos sonhos, a liberdade de mudarmos de ideia e que devemos ter humildade de descobrirmos nossas imperfeições. Ninguém nos tira o regozijo pela vitória de ter resistido a uma tentação, a satisfação pela coragem de ser simplesmente você, o prazer de se sentir honesto ao assumir próprios erros, disponibilizando-se a tentar de novo. Ninguém pode nos tirar à vontade de enfrentar desafios, a sensação do dever bem cumprido, a certeza de que a vida sempre vale a pena, pois só existe a certeza do amanhã pela vontade de viver através da beleza dos sonhos e a fé nas vitórias. Meu irmão, ninguém pode tirar de você a esperança, a perseverança, a lealdade e o amor pela vida. “Mais real do que fazer da vida um sonho, é fazer do sonho uma vida, porque nem sempre temos a vida que sonhamos, mas sempre temos sonhos para nossa vida.”

* Décima terceira parada.

Ali sentados, ficamos por horas a fio; num silêncio profundo e esperando respostas, como se fosse ele, o silêncio, quem tivesse a obrigação de nos dizer sobre tudo; responder as dúvidas, decifrar enigmas e esclarecer tantas indecisões. As pedras, onde confortavelmente estávamos assentados, nos estimulavam a percorrer o vasto mundo da mente por caminhos escuros, escuros como aquela minha estrada, como aquela minha desigual madrugada. Impressionava-me era sentir a face tão lisa e jovem, mesmo sentindo o peso pelo caminho já percorrido, no qual devo ter me perdido várias vezes, pelo qual com muitos me indispus e a muitos amei. Entendi que houve os que levaram muito, mas não houve os que nada deixaram, que a maior responsabilidade de nossa vida é a prova evidente de que duas almas não se encontram por acaso. A vida é como uma locomotiva em movimento, que ao parar nas estações permite que desçam alguns que outros embarquem e uns poucos continuem. Os que desceram finalizaram sua viagem, os que embarcaram a iniciaram e os que continuaram por mais uma parada passaram, por mais uma etapa ultrapassaram, até que cheque sua estação de inevitável desembarque.

* Décima quarta parada.

Notei estacionado à beira da estrada um caminhão bicudo e feio. Muito feio... Era verde-escuro, com portas pretas que fechavam a cabine pela metade, suas janelas se fechavam puxando um plástico transparente para baixo, a carroceria de madeira comprida trazia restos de móveis e muitos retalhos de panos e plásticos; seus faróis eram redondos, gigantes, desajeitados, o para-brisa meio aberto para frente, tinha estribo largo e apenas um banco conjugado. O condutor portava uma espécie de manivela de ferro que enfiava na frente do calhambeque e rodava com força. Divertindo-me entendi que se fazia o motor funcionar introduzindo aquela geringonça no motor. Com o passar do tempo inventaram o botão de partida, posteriormente a injeção eletrônica, mas até hoje se empurra carro na intenção de fazê-lo funcionar. (“Pegar no tranco”). Assim que o caminhãozinho funcionou, o cidadão cumprimentou-nos apressadamente com um aceno de mão e disse-nos que devolveria o veículo ao seu dono, um tal de “Sô Margarida” (se é que se podia chamar aquilo de “veículo”). Lembrei então daquela furreca; era de meu pai... Os postes de luz (energia elétrica) eram de madeira, as lâmpadas colocadas neles eram de sessenta velas, e me lembro pedindo ao meu pai para votar em “Nelson Thibau”. (Thibau eleito, povo satisfeito, Thibau na prefeitura, água com fartura), dizia a propaganda. Lembrei-me das procissões que acompanhávamos no bairro Padre Eustáquio, e não compreendia porque as pessoas carregavam pedras na cabeça, se mutilavam caminhando com os joelhos ou mesmo colocando coroas de espinhos, alguns carregavam cruzes, como se “Jesus” fossem... Todos com velas na mão e à frente a estátua de “Nossa Senhora”.

Ave, Ave, Ave-Maria, Ave, Ave, Ave-Maria... As velas, parecendo chorar, derretiam lágrimas quentes em nossas mãos, mas como se estivessem arrependidas, esfriavam rapidamente, deixando uma crosta de cera que arrancávamos e jogávamos ao chão. Caminhava-se em duas filas indianas: de um lado homens e do outro, mulheres. Incomodava-me apenas porque a fila não era como no tempo do grupo escolar. Na escola a fila era feita por ordem de tamanho; os menores no início, e lembro-me, sempre era eu o primeiro. O cabelo era cortado à moda “Príncipe Danilo” (raspado ao lado) ou o “Topetinho”, estilo novamente lançado pelo jogador Ronaldo Fenômeno. Eu simplesmente detestava esse corte de cabelo, mas era mamãe quem resolvia, e por certo deveria achar que seus filhinhos ficavam lindos. Usávamos uma espécie de terno, mas, com calças curtas e a primeira comunhão foi inesquecível. No bolso sempre havia uns trocados, pois papai dizia que “Homem” tinha que andar sempre com dinheiro. Eu os gastava comprando um chocolate tipo garrafinha, embrulhado em papéis azuis ou verdes com licor por dentro. Uma preciosidade de sabor. E tinha as bombinhas: “Traque” e “Garrafinha”. Traque era fraquinha, segurava-se na mão e Garrafinha havia de vários tamanhos. As maiores, acendíamos, colocávamos dentro da caixa de correio, e corríamos a nos esconder para de longe escutar a dona da casa xingar. Pior era quando colávamos esparadrapo na campainha... Quando me descobriram, reclamaram com papai e tomei uma surra memorável, mas valeu as emoções anteriores. Bom também era quando chegava à quaresma. A gente arrumava abóbora na venda do Turquinho, fazia nela três buracos e ao anoitecer colocávamos uma vela acessa no seu interior. Escondidos, quando alguém passava balançávamos a moita tentando amedrontar; não satisfeitos, pegávamos grãos de milho ou feijão e aos punhados arremessávamos nos telhados.

* Décima quinta parada.

Mas o tempo passou e rapidamente já estava eu, usando cuecas (samba-canção), camiseta branca por baixo da camisa e até indo sozinho ao Parque Municipal passear de barco alugado na lagoa central. Normalmente um remava e o outro ficava tirando com uma latinha a água que entrava pelos inúmeros furos do barco. Veio às calças “Pantalonas”, as “Toureiro”, que tinham botões revestidos e ficavam acima do umbigo. As braguilhas eram de botões revestidos, depois começaram a confeccionar com fecho-éclair (zíper). Como era gratificante receber o dinheiro pelo trabalho de estofador na sexta-feira, comprar pano para mandar fazer as roupas, tênis marca Bamba cano alto e levar algo como agrado para mamãe. Tempos simples, mas altamente valorizados pela pureza existente.

* Décima sexta parada.

Iniciou-se uma leve garoa, que me incitou a novamente tentar descobrir algo sobre aquele momento, sobre aquela madrugada, sobre aquela estrada sinistra. Ao longo do percurso, no qual não distinguia se estava a ir ou a voltar, caminhando pensando ser pra frente, sentindo voltar, regressando no tempo, no tempo da vida. A brisa fria misturava-se ao meu suor, às minhas lágrimas, e sentia-me impossibilitado para decidir em acordar, (... pois só poderia ser um sonho), prosseguir, (... assim enfrentando as surpresas que poderiam ser tristes ou não), ou apenas aceitar a máxima que recordar é viver novamente. Deparei-me com uma cidadezinha à beira da rodovia. Acolhedora, nela me instalei. Uma casinha humilde, uns poucos moradores, mas, simpáticos, hospitaleiros. Assim que cheguei, notei um rapaz na esquina oferecendo casas pra vender. Podia se escolher... Havia um boteco, uma pequenina vendinha, e muita esperança em todos de ali serem felizes. Após me abrigar, minha primeira amizade foi justamente com este rapaz (Marquinho Copasa), que oferecia moradias junto com seu pai (Sr. Altino). Criamos laços sinceros de respeito e junto ao falecido Moisés, promovemos para a comunidade local vários entretenimentos, procurando suavizar as dificuldades que ali eram constantes do dia a dia. Descobri então que tudo se renova, nada se acaba, e minha caminhada, a cada instante, a cada passo, estaria sim era motivando novos conhecimentos e perpetuando a existência de um ser maior que a cada segundo nos diz da necessidade de valorização da vida.

* Décima sétima parada.

Cresci internamente, conheci pessoas diferentes, fui participativo na sociedade local, suplente de vereador com votação expressiva (mais votado que cinco vereadores eleitos), tornei-me conhecido e até respeitado. Inúmeros ajudei, por muitos fui ajudado. Hoje, no balanço de minha caminhada ainda inacabada, orgulho-me de certos atos, envergonho-me de outros tantos, arrependo-me pelos perdões que não pedi e muito dos que não soube dar. Sei que ainda errarei, acertarei, perdoarei e serei perdoado, mas principalmente, sei que quero caminhar pra frente e nunca caminhar de costas…

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Eber Emanoel (Ebinho) em 15/01/2010 / Reeditado em 16/02/2012 / Recanto das Letras

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Eber Emanoel
Enviado por Eber Emanoel em 08/01/2024
Reeditado em 08/01/2024
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