EXODO I

Essa é uma fração da história da vida da minha família. Resolvi escrever sobre ela, porque em forma de texto, propõe ao leitor a sua reflexão individual. Então, vamos a ela:

O lado pobre da cidade onde nasci e vivi até cerca de dez anos de idade, era também o mais divertido e alegre, as pessoas se conheciam mais de perto, frequentavam as casas vizinhas, colocavam suas cadeiras na porta ao final da tarde para prosear e ver os transeuntes, pedir um copo de açúcar emprestado, falar sobre suas vidas, em fim, como uma grande família. Nosso pai, era um homem simples e modesto, figura paterna mantenedora um homem duro, mas as vezes carinhoso, transitava entre uma coisa e outra. Nossa mãe, (em memoria) e seu incondicional amor, pelos filhos mantinha o equilíbrio e fraternidade entre os irmãos e irmãs.

Nossa vida era muito simples, a modesta casa onde morávamos próximo a casa do meu avô paterno, foi construída por meu pai, eu até dei uma ajudinha, embora fosse bem pequeno, mas de alguma forma contribui carregando algumas telhas e tijolos. A rua de chão batido na periferia, ficava próxima as pastagens verdes ao sopé das montanhas do leste da cidade.

Quanto a nós crianças, além das brincadeiras contemporâneas, (fura pé, pinhão, esconde esconde, gude e outros), participávamos de uma outra, um tanto séria e desafiadora e perigosa. O movimento de animais naquela parte da cidade era intenso, e a rua era caminho entre as fazendas e o curral de transporte da ferrovia, principalmente as sextas feiras esse movimento se intensificava bastante. As ruidosas boiadas, atravessavam a rua deixando o ar empoeirado com aquele cheiro característico, era nesse momento que entravamos em ação, era nosso desafio. Enquanto a vizinhança fechava suas portas as pressas, eu, e meus dois irmão mais próximos na idade, subíamos no grande cajueiro que havia entre nossa casa e a do nosso avô, e lá de cima trêmulos e plenos, assistíamos o desenrolar o drama, o caos provocado pelos animais. Em uma dessas nossas tresloucadas e repetidas aventuras quase perdemos nosso irmão mais novo dos três, ao invés de subir no cajueiro, ele correu para a varanda do meu avô, porém esta era aberta e o boi bravo percebeu isso, mas nosso pai naquele momento, se transformou em outro animal, se agigantou, competiu com o outro salvando o pequeno.

Assim era o nosso bairro, nossa rua, nossa infância, humilde, mas fantástica.

Meus avós maternos e minhas tias mais jovens, moravam do outro lado da cidade, em um bairro um pouco mais sofisticado, a casa era clássica, toda avarandada com lindo pinheiral ao lado, além das saborosas pinhas, onde os pássaros faziam seu ninhos e criavam seus filhotes com a sabia ajuda da minha adorada "Voinha".

Não obstante, um tal sujeito chamado "destino", em segundos mudou os planos de todos nós, e assim em um dia qualquer, este senhor, nos trouxe uma infame tragédia, algo inenarrável abalando toda a família, o falecimento do meu tio mais velho na queda de um avião, arrebatou uma serie de situações que eu não entendia, e levou meus avós maternos deixarem a nossa cidade natal pouco tempo depois.

Meus avós e minhas tias mais jovens, partiram, foram embora para a cidade grande, a sua falta prostrou um imenso vazio no meu infante coração, eu tinha apenas nove anos, me senti órfão. No dia da sua partida, meus olhos embotaram, meu rosto ficou manchado de lagrimas e poeira, só restava esperar o tempo passar... uma eternidade.

Eis que um dia notícias chegaram da cidade grande e eram animadoras, iriamos encontra-los, mudaríamos também pra lá, ficaríamos juntos novamente. Misto de alegria ansiedade e medo do desconhecido brotavam do meu peito, não obstante, em meus pais, o peso dessa mudança com a numerosa família era algo temeroso, não é o bastante ser forte nestas hora decisivas da vida, com certeza eles devem ter consumido muitas horas de sono para tomar a decisão correta, estava em jogo o futuro de toda a família. Era como caminhar sobre um cais de pedras açoitado pelos fortes ventos, e aguas turbulentas, em direção a um porto.

Então, é chegado o dia da incerta, mas sonhada partida.

A viagem até a capital fora feita de trem, essa lembrança é marca indelével na minha alma, coisas que jamais esquecerei, pois antes de embarcar nessa aventura, por todos os dias pensava, como seria nossa caminhada por terras estranhas e tão distantes, nunca havia me afastado além das montanhas da cidade, mesmo assim na companhia do meu avô que era um exímio caçador.

Não tínhamos muita coisa para levar, nossos pertences cabiam em duas ou três malas, não sei precisar o dia da semana, mas sei que o nosso embarque fora a noite.

Já estava escuro quando deixamos nossa humilde casinha e caminhamos carregando nossas malas, pesadas de incertezas e esperanças, em direção a estação ferroviária. Assim que subimos na rampa de embarque, meu pai checou os bilhetes e nos encaminhou até o vagão leito, o pequeno espaço dentro desse vagão acomodou toda a família, éramos em oito irmãos, duas meninas e seis meninos. Lembro que de um lado haviam dois beliches, do outro uma espécie de poltrona, que se parecia com um pequeno sofá. Eu não conseguia encontrar o sono para dormir, tudo aquilo era uma grande aventura rumo ao desconhecido, a tensão era fervilhante.

O frio que desce das montanhas envolve a estação ferroviária, os vagões alinhados sobre os trilhos, locomotiva rosna como um cão preso as suas correntes, o cheiro de óleo queimado, enchiam o ar de nostalgia e saudade. As fracas luzes dos postes da estação, mostravam apenas as silhuetas das pessoas que entravam e saiam dos vagões, pessoas como nós, com historias diferentes, mas em comum...malas carregadas de sonhos e incertezas. De repente ouço um longo apito, era o aviso da partida, um solavanco põem todo o comboio em movimento, era chegada esperada hora. Naquele exato momento, teve início a grande jornada, me sentia como se fosse a outro planeta.

O trem avança lentamente na escuridão da caatinga sertaneja, não saio da janela, a medida em que o trem ganha velocidade, as luzes amareladas e fracas das casas, parecem ganhar vida, vão ficando borradas com formas indefinidas, e lampejam em meio a escuridão da mata.

Olhei pela última vez, buscando encontrar entre aquelas formas a pequena casinha onde há pouco era nosso ninho, nosso porto seguro, mas tudo tudo que conseguia ver no abismo negro, eram os lampejos disformes, dos candeeiros das modestas casas feitas de barro e varas. Mais um pouco, e tudo se resume ao ranger do ferro com o ferro, rodas e trilhos entoam um lamento saudoso, talvez lembrando que nada seria mais como antes. Quando o trem passou entre os eucaliptos, senti o cheiro do perfume fresco das suas folhas, o cheiro do sertão, por ali passei diversas vezes, com meus dois inseparáveis irmãos, talvez fosse a saudade, no meu coração de menino.

Lá vamos nós noite adentro, sobre os frios trilhos de aço, serpenteando através das planícies e serras, rumo a terras desconhecidas. As horas se passam, eu continuo firme na janela, tentando me manter acordado, não queria me desconectar do passado. A batalha travada entre mim e o sono, teve um derrotado, capitulei ... Quando acordei era outro dia, outras terras, outras formas totalmente desconhecidas e estranhas. Outros cheiros, outras imagens. Novamente corri para a janela, estávamos chegando a grande cidade.