"Somos quem podemos ser". Cap. II
Capítulo - II
A menina mãe.
Confesso que fico tentando entender o que pode ter ocorrido após mamãe ter sido molestada pelo filho da dona do cortiço.
Será que alguém a socorreu?
Por ventura ouviu seus gritos?
Ela teve forças para gritar?
A violência sofrida em corpo, alma e mente é algo insuportável, inaceitável e muitas vezes insuperável.
Entretanto, alguma coisa mudou em sua vida na pobreza das vielas do cortiço mesmo não tendo feito denúncia formal contra aquele cão maldito.
O caso é que a família do sujeito decidiu dar a pobre criança alguma assistência.
Ela era apenas uma menina que morava ali como outras.
Uma entre tantas.
Mas, de repente aos olhos de todos e inclusive de seus vizinhos sua barriga começou a crescer e todos a olhavam com acusações veladas como se sua vida houvesse acabado, ali jaz uma menina mãe solteira.
Nossa, um horror!
Que escândalo!
Pior que sua própria mãe que anos antes foi abandonada pelo marido em uma tarde qualquer.
Não sei que força divina ou demoníaca quem sabe deu forças para mamãe passar por tamanha provação sem enlouquecer já que dizem que maturidade vêm com idade e experiência de vida e ela, coitada, so sabia cuidar da casa, cozinhar, cuidar dos seus irmaos, lavar roupa.
Porque será que ela não renegou o bebê que crescia em seu ventre já que ele só a fazia recordar daquele dia em que seus gritos soaram como ecos surdos aos ouvidos alheios?
Existem pontos sobre mamãe que jamais ei de entender e desisti faz tempo, apenas respeito e aceito.
E como a contradizer o mundo que pedia para que ele desistisse e pulasse da roda gigante, ela optou por cuidar e acolher.
Para esse filho sempre houve uma super proteção fora do comum.
Como filha que sou, eu sempre ficava tentando imaginar o porque, só compreendi isso depois que parei de ver os acontecimentos ao nosso redor como sendo algo perfeitamente normal.
Rotina de família talvez.
Notei que mamãe fazia o possível e o impossível para que meu irmão não virasse nem sombra do que o pai dele era ou foi.
Senti que esse era seu maior medo.
Criar alguém capaz de fazer o mal.
Será que o mal pode ser genético?
Imaginem o conflito interno sofrível dessa mãe durante toda sua vida.
Que vida dura.
Dizem que filho de peixe peixinho é, e este ditado mais velho que o tempo devia martelar em sua mente dia após dia.
Acreditando estar tomando a decisão correta mamãe foi obrigada a fazer algo diferente de apenas cuidar dos irmãos.
Afinal, agora a situação era outra e junto com o filho inesperado vinha à responsabilidade de lhe dar oportunidades melhores do que as que ela mesma desfrutou.
Corajosa demais para uma criança já sofrida saiu em busca de um emprego.
Esse momento de nossa história fica um tanto quanto nebulosa já que se faz difícil dizer ao certo a reação de minha avó sobre a gravidez e as conseqüências de tal fato na rotina daquela casa.
Minha avó dependia de mamãe.
Recordo que ao contar-me sobre o ocorrido mamãe carregava em seu semblante olhos vagos como se puxasse na memória mais do que as consequências das ações, mas as reações das pessoas, e a da minha avó não foi das melhores, e em seus olhos pude ver a sombra de sua mágoa.
O que sei é o pouco que me foi dito e é o que escrevo agora neste que parece ser um segundo capítulo.
Mamãe saiu de casa para trabalhar como doméstica e assim conseguiu montar o enxoval do bebê e ir levando a vida, morava na casa onde trabalhava e pelo que sei seguia tranquila.
A palavra tranquila é tão linda.
Linda de ler e escrever.
Seria ainda mais perfeita se durasse na profusão entre tempo e destino.
Dizem que pode ser Karma.
Vocês acreditam nisso?
Não respondam, pensem apenas e tirem conclusões depois.
Quem sabe ao ler até o final esses escritos que se prolongaram por muito, muito, tempo.
A tranquilidade permaneceu, isso até mamãe conhecer meu pai.
Por coincidência ou não, mamãe casou-se com um dos sobrinhos de seu agressor.
Entrou para a família daquele que a violou.
Sou tacanha demais e acontecimentos como esse nunca entrarão em minha mente.
Juro que tento entender.
Aceitar como sendo algo da vida.
Dizem que o mundo é pequeno, que ele gira e sempre paramos no mesmo lugar.
Não sei.
Eu acredito que cada qual faz suas próprias escolhas.
Geralmente escolhe o seu caminho da forma como acredita ser correto e foi o que mamãe fez.
Nada sobre a época do namoro dos dois me foi dito, nem sei se houve um namoro de verdade antes de se casarem.
Uma de minhas irmãs recentemente me disse que houve sim.
Como tais fatos não fazem parte de minhas próprias lembranças vou ultrapassá-los para não correr o risco de estar aqui escrevendo acontecimentos inverídicos.
Em momento algum de toda essa loucura de escrever passou pela minha cabeça relatar algo além do que realmente se passou.
Nada de aumentar ou deixar tudo mais interessante.
Aliás, se pudesse deixar de lado essa minha persistente mania de ser objetiva e sincera, nunca conseguiria inventar tanto.
Creio eu que nem a imaginação mais fértil do mundo faria algo assim.
Por mais incrível que possa parecer a quem um dia ler isso, passei por tantas coisas no decorrer desses meus meros trinta e nove anos de vida que talvez alguém com mais idade jamais tenha vivenciado algo parecido.
Vivi e ouvi coisas que tento a todo custo fazer com que permaneçam vivas em minhas lembranças.
Passei por tantas outras coisas que tento a todo instante esquecer, para que assim eu possa levar minha vida adiante e valorizar aquilo que possuo hoje.
As vezes tento apenas pensar que simplesmente estou viva.
Não estou aqui dizendo que sou diferente de todo mundo.
Todos passam por momentos felizes e tristes.
Eu não fui e nunca serei uma exceção a essa regra.
Apenas sinto que se um dia houve em nossas vidas alguém que realmente olhava por nós, alguém que nos guiava e confortava nos momentos em que mais precisávamos, este alguém queria que seguíssemos o caminho mais tortuoso.
Confesso que não sou uma pessoa de todo religiosa, nunca esperei a salvação e em momento algum estive em sua procura.
Aprendi que a força divina não vêm de um lugar ou de alguém.
Ela está dentro de nós e ao nosso redor.
Está em tudo e está no nada.
E por mais que clamemos pela ajuda do Divino, as únicas pessoas que podem verdadeiramente mudar algo em nossas vidas e destinos somos nós.
Pena eu ter adquirido tal maturidade um tanto tarde.
Gostaria de ter enxergado boa parte de minha vida com olhos diferentes daqueles que ficavam a espera de dias melhores, ao invés de ir em busca deles.
Mas, quem pode me culpar?
Era apenas uma criança.
Ingênua e carente demais para tomar decisões por si própria.