Vida do Padre António Vieira - de João Francisco Lisboa
Chegou-me às mãos, por vias acidentais, e foi o acidente agradável, um exemplar - razoavelmente bem escangalhado, mal-ajambrado, mal cuidado, a cair aos pedaços, do miolo destacada a capa, que é dura - de uma edição antiga, cuja data de publicação desconheço - talvez ela esteja impressa na folha, que se perdeu, e cujo paradeiro, caso, o que é improvável, ela ainda exista, eu não tenho idéia de qual seja -, da obra Vida do Padre António Vieira, de João Francisco Lisboa - escritor respeitado na época do Imperador, lido e relido pelos maiores de seu tempo, e hoje praticamente de todos desconhecido, e não apenas dos iletrados -, publicado, pela W. M. Jackson Inc. Editores, à coleção Clássicos Jackson, sendo, dela, o volume XIX, e contando com prefácio de Peregrino Júnior, que, nas poucas palavras que para a edição escreveu, inforna que é o livro obra póstuma e inacabada, e dá notícia, em rápidas pinceladas, de episódios, alguns pitorescos, da biografia do autor, de sua atividade política, forense, e jornalística à frente de O Brasileiro, de O Farol Maranhense, do Eco do Norte, do Crônica Maranhense, do Publicador Maranhense, e do mais famoso e bem reputado de seus trabalhos jornalísticos, o Jornal de Timon, do qual extraiu um trecho, o que conta a vida do biografado, trecho que corresponde à segunda parte deste volume, e que está sob o título "Vida do Padre António Vieira (Jornal de Timon) - no Brasil", enquanto está a primeira parte, a mais extensa das duas, sob o título "Vida do Padre António Vieira (Na Europa)". Não precisa o leitor ler que seja dez páginas do livro para confirmar a apreciação que deste faz o prefaciador, que o dá obra de um escritor maduro, talentoso, com o domínio da arte de escrever, e escrever num estilo conciso, límpido, elegante, direto, de frases extensas, e correta exposição dos fatos, desprovido de atavios retóricos desgraciosos. Não deixa Peregrino Júnior de informar que recebeu o Vida do Padre António Vieira avaliação favorável de respeitáveis personalidades da literatura brasileira, dentre elas Gonçalves Dias e Sílvio Romero, para ficar nos mais conhecidos.
À leitura o dedicado leitor vai conhecendo, da vida do Padre António Vieira, as suas atividades, no Brasil, e na Europa, inserida no contexto mental, cultural, político, religioso, histórico, do século XVII, ele às voltas, na capitania do Maranhão, e arredores, com a sua missão de conversão dos índios, à frente da Companhia de Jesus, a deparar-se com adversidades sem conta, na serra de Ibiapaba e no Tapajós e circunvizinhanças, no seu contato com inúmeros povos, tais como os tabajaras, os cambocas, os anaiás, os jurunas, os tapajós, os tricujus, os mapuás, os poquiguaras - e limito-me a mencionar estes com o objetivo exclusivo de dar uma idéia, mesmo que pequena, da infinita quantidade de povos que aqui os portugueses encontraram -, e outros povos, que falavam línguas, que os missionários jesuítas não aprenderam a falar, e de cuja etnia nada sabiam, e devido à tal ignorância, codnominaram-las com um nome genérico, para driblar as insuperáveis dificuldades de conhecê-los: nheengaibas. E ainda no Maranhão teve de se ver com contratempos políticos inescapáveis, afinal pediam-lhe as suas atividades que se imiscuísse em jogos políticos desgastantes, que muitos dissabores lhe trouxeram, ocasionando, inclusive, a sua prisão, o nome dele envolvido num movimento de sublevação popular.
Apreendeu o Padre António Vieira línguas indígenas. E sua missão no Tocantins malogrou. E não raras foram as conversões de índios ao coração de Jesus Cristo retumbantes fracassos, na aparência inúmeros deles a se converterem, e poucos os que não persistiam na prática do canibalismo e de outras atividades culturais que ofendiam as suscetibilidades dos jesuítas, dos portugueses.
Na Europa, não foi a vida do Padre António Vieira um mar de rosas: ele comeu, lá, o pão que o diabo amassou. Foi no tempo do rei D. João IV. Sua atividade política e religiosa, intensas. Proferiu sermões que lhe conquistaram de muitos admiração, e de outros a inveja. São seus sermões famosos o "Sermão Pelo Bom Sucesso Das Armas De Portugal Contra As De Holanda" e o "Sermão A Santo Antonio de Lisboa". Participou, ativamente, da vida política portuguesa, e em outras terras européias defendeu sua terra, a inspirá-lo sentimentos patrióticos autênticos, numa época em que era a Holanda terrível, e invencível, inimigo - e Maurício de Nassau ficou a ponto de tomar a Bahia -, e então via-se em pé-de-guerra a coroa lusitana com a de Castela. E tinha ele de se ver com o ladino, ardiloso cardeal Mazzarino, uma serpente peçonhenta.
Foi a sua vida cheia de altos e baixos. Dentre os apuros em que se viu, não raros os que resultaram de sua personalidade vaidosa, e orgulhosa, e de sua credulidade: ele acreditava, piamente, ousarei dizer, em prodígios naturais e sobrenaturais - era sua credulidade inexplicável: para fenômenos fantásticos, ele, tão sugestionável, tão crédulo, buscava, em vão, explicações racionais, tendo-os na conta de presságios agourentos, que apontavam, infalivelmente, para tragédias, desastres, mortes, violentas ou não, de reis e príncipes. Outros dissabores ele enfrentou porque não poucos eram os agentes históricos que por ele se viam ameaçados.
Um dos capítulos mais vergonhosos da sua biografia está centrada na sua capitulação diante da poderosa Holanda, capitulação que feria Portugal de morte, após calcular, e mal, o poder holandês, superestimando-o, e o português, subestimando-o, o que o levou a defender concessões que iam em prejuízo de Portugal, prejuízo que Portugal evitaria se D. João IV não lhe desse ouvidos. O Padre António Vieira fez mal, e muito mal, e jamais reconheceu seu erro, que quase pôs a pique o reino português além-mar, e, por consequência, Portugal. E colonos e portugueses, no Brasil, voltam as suas armas contra a Holanda; e dentre eles, em Pernambuco, destaca-se o nome de João Fernandes Vieira, que para o autor da biografia é um herói brasileiro, que ousou desobedecer às ordens do rei, assim livrando Portugal de naufragar nas águas do Atlântico. Em palavras chãs, comuns hoje em dia, peço ao leitor licença para assim me expressar, o rei, sob a influência do Padre António Vieira, fez uma grande burrada, que quase lhe derreteu a coroa. Que amigo-da-onça saiu-se o famoso jesuíta!
Reproduz o livro extensos trechos dos sermões do Padre Antônio Vieira e de livros dele. Lê-se, de História do Futuro, trechos significativos. E, também, de outras obras: Chave dos Profetas, Papel Forte, Palavra de Deus Desempenhada, Palavra do Pregador Empenhada e Defendida. E das cartas. É o epistolário do Padre António Vieira um tesouro inesgotável.
Nesta resenha, poucas palavras, que acredito ilustrativas, da monumental Vida do Padre António Vieira, de João Fransisco Lisboa, um herói das letras nacionais, cuja inteligência, rara, admirável, é bem-sucedida em captar a sofisticada personalidade de seu herói, simultaneamente simples e complexa, paradoxal, capaz de sublimes elucubrações filosóficas e teológicas, de ações de corajosa abnegação, de sacrifícios que reduziriam outros homens a pó, de amor inesgotável pela sua pátria, pela sua religião, pelos povos nativos do Brasil, e de pensamentos mesquinhos, e de ações reprováveis.
Para encerrar esta resenha, que é pobre em informações, e não chega aos pés do livro resenhado, dele dando um inequívoco esboço mal e mal acabado, que não lhe faz justiça à grandiosidade, digo: dá o livro, em poucas palavras, da infância e juventude do Padre António Vieira, e duas outras notícias, uma, pitoresca, a outra, dir-se-ia, épica, que por um milagre não se converteu em uma tragédia: a pitoresca tem seu protagonista o desembargador Seabra da Silva, que decidiu imputar ao Padre António Vieira a autoria das trovas, que o povo considerava proféticas, cujo verdadeiro autor, que andara pelas terras lusitanas um século antes, era, ninguém mais, ninguém menos, do que Gonçalo Anes Bandarra, um humilde sapateiro, obra, esta, que deu origem ao Sebastianismo, que até hoje agita corações de portugueses e brasileiros - e o Padre António Vieira se viu em maus lençóis, contra a sua vontade envolvendo-se em caso tão escabroso, inusitado; a segunda notícia, que por obra de um milagre não se fez tragédia, conta uma aventura digna de As Mil e Uma Noites: em viagem, a bordo de um navio, do Brasil para Portugal, atacaram o navio piratas - provavelmente, inclino-me a acreditar, de perna de pau, olho de vidro e cara de mau; e o navio esteve a ponto de soçobrar durante um temporal; e corsários holandeses abordaram-lo, dominaram-lo, e despojaram das vestes seus tripulantes e passageiros, dentre eles o Padre António Vieira, e os abandonaram, a cobrir-lhes as vergonhas quase nenhuma veste, nas areias de uma praia qualquer da Ilha Graciosa. Robinson Crusoé se divertiria com tal história, digna de figurar no cânone da literatura de aventuras.
Há, no livro de João Francisco Lisboa, muito mais do que aqui, nesta pobre resenha, eu conto. Muito, muito mais. Aqui, penso, soneguei ao leitor informações importantes que o livro dá a conhecer; se o fiz, e sei que o fiz, peço ao leitor que me desculpe.
Toda pessoa que, além de admirar o Padre António Vieira, e João Francisco Lisboa, admira, e cultiva, a Língua Portuguesa, tem de ler esta obra magnífica, escrita por um escritor magnífico, que nela conta a vida de um homem magnífico.