Travessia

Um pedaço de minha vida vivi transitando por lanchas ou barcas mais lentas pelos mares até chegar em ilhas ou penínsulas. Meu primeiro aprendizado foi a confiar na travessia naquela imensidão de mar aberto. Meu segundo aprendizado foi a confiar e respeitar a natureza e o terceiro o aprendizado com as pessoas e locais em que era "estrangeira". A rotina era bem árdua, estávamos na temporada de verão, começava os trabalhos com o nascer do Sol, nos revezávamos na hora do almoço ou jantar até o fechar do restaurante adentrando a madrugada. Aprendi a testar e dessensibilizar alguns dos meus medos: conviver com animais que me causavam desconforto; aprendi a respeitar o tempo da subida e da descida das mares para que pudesse ir e vir; aprendi com os conhecimentos das pessoas que eram nativas daquele local l onde a natureza era a dona e nós somente " os convidados". Em cada tempo, com cada pessoa, no ir e vir de novos e antigos clientes sempre ficava uma palavra: Acolhimento. Quando pensava que não fosse suportar mesmo com tanta beleza ao redor sempre me vinham presentes: a força da lua - nas noites de lua cheia ; a visita da família de macaquinhos com sua alegria; um café que chegava com palavras amorosas e cada pessoa com suas histórias e agradecimento aos cuidados e ao alimento ofertado. SEMPRE SEMPRE SEMPRE me reabasteciam. Ma, houveram três eventos dessa trajetória de quase 2 anos que me marcaram e são até hoje o meu norte quando algo está bem desafiador. O primeiro foi o contato com alguns colaboradores que lá já estavam mas que viviam em condições quase que sub-humanas, Para mim foi uma dor e um choque tão grande que só de me lembrar me emociono. Esses colaboradores serviam as mesas e após tirá-las, voltavam à cozinha se alimentando com o que sobrava das mesas.

Quando vi aquilo eu simplesmente parei e conversei com eles, precisava ouvir o que acontecia e tentar de uma forma melhor ajudá-los. Eles me falaram que estavam ali porque não tinham mais nada, era lhes dado o lugar pra viver e só se alimentavam com mistura de farinha de mandioca com borra coada de café e açúcar.

Foi o meu primeiro impacto como um lugar com tanto luxo em volta não podia simplesmente compartilhar e cuidar um pouco melhor das pessoas que moviam aquele lugar . A partir daquele momento, começamos a fazer as refeições mais balanceadas para os funcionários; motivá-los, registrá-los devidamente e tratá-los com todo respeito, atenção e carinho. O segundo evento foi com o cuidado e proteção que me demonstraram quando fui picada pelos maruins ( uns mosquitinhos locais) que perfuravam praticamente sua roupa e, no meu caso, como tinha alergia, me causaram infecção e feridas nas pernas que me impossibilitaram de andar por uma semana. Em nenhum momento eles me desampararam, me levaram ao médico local; me visitaram, cuidaram e mantinham o restaurante funcionando nessa minha forçada parada. O terceiro e último evento foi a minha despedida do local. Cada um falava uma palavra e com os olhos cheios de lágrima agradeciam. Um deles, o qual tinha um contato mais direto na cozinha, tinha um sonho: ter um edredom e um chinelo novo. O presenteei de uma forma muito singela mais muito amorosa com um edredom cor de rosa (que era sua cor favorita) e um chinelo branco com algumas palmeiras. Era como se tivesse ganhado algo muito muito grande, não pelo valor, mais pelo que sentiu, o se sentir importante e muito querido. Em cada um desses relatos houve o romper de dores e desconfortos para ir além no mar de compreensão, empatia, acolhimento, atenção .

Dricaa Barsanetti
Enviado por Dricaa Barsanetti em 07/02/2023
Código do texto: T7713638
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