HOSPITALIDADE GAÚCHA

Este texto é seqüência do texto A LUZ MISTERIOSA

Ao abrir os olhos vi o tremendo focinho gelado de um grande cachorro que me lambia o rosto. Deitado ainda, da imensa parada de ônibus avistei o bar do outro lado da rodovia (se é que assim se pode dizer desse pequeno comércio e feira à beira da estrada) que usei como referência para parar na noite anterior. Trata-se de um pequeno paradouro, misto de residência e comércio, onde se pode tomar um refrigerante ou café, fazer um lanche, comprar frutas da estação, queijo e muitos outros produtos coloniais. Já o tinha visto na passagem de ida, observando estar muito distante de qualquer outra construção, no alto do vale que leva à divisa com o Estado do Rio Grande do Sul. Aquela casa tinha me parecido confiável, mas não havia nela uma aba de telhado onde eu pudesse dormir, por isto aproveitei o generoso abrigo da parada de ônibus, fechado com paredes de pedras por três lados. Ao despertar, logo lembrei que aquele seria o último dia de jornada no Estado de Santa Catarina, calculando que até ao meio-dia deveria cruzar o rio Pelotas, entrando finalmente no Rio Grande do Sul.

Após comer algo que pedi no bar, segui caminho em direção ao sul, seguido pelo imenso cachorro, que ia de um lado ao outro da rodovia a procura do que comer. Sobre nós ardia o sol que ia se tornando gradativamente escaldante. Preocupava-me que numa dessas travessias despreocupadas o cachorro poderia ser atropelado por algum carro. De fato, muitos já haviam buzinado e mesmo freado de forma brusca para não atingi-lo. Seguidamente eu o chamava, tentando evitar que cruzasse a via. Ele, porém, me olhava, sorria com a cauda e seguia inconteste suas intenções. Quando ele já estava do outro lado da rodovia e eu percebia a aproximação de algum veículo, tinha cuidado em cessar o chamado, pois me atendendo poderia se acidentar.

Mas era muito descuidado e eu nem acreditava que chegaria a algum destino comigo. À altura da metade do percurso do vale do rio Pelotas, numa das muitas curvas restantes até a ponte, percebi uma carreta Ford amarela de um eixo contornando a curva rápida atrás de mim. À frente, o cachorro iniciava cruzar novamente a rodovia, estando ainda no meio da mão direita, por onde a carreta passaria. Não o chamei, permitindo que terminasse de cruzar, estando a salvo do outro lado. Do contrário, até que me atendesse, seria atropelado. Todavia, estando já para sair do outro lado da mão, ouvindo o ruído do caminhão, retornou e, percebendo ser tarde para retornar, tentou seguir para o outro lado, mas, em vez de fazê-lo, postou-se indeciso, ficando estasiado diante do caminhão, que avançou indiferente sobre ele, abalroado-o sob as pancadas dos eixos e tambores de freio das rodas traseiras. Vi mechas de seu pêlo caramelo serem arrancados, indo presos nas ferragens do caminhão, enquanto ele era embolado para ficar inerte sobre o asfalto quente após a passagem do veículo. Transtornado pela morte de meu novo amigo e sem ter o que fazer, ocorreu-me que outros carros logo poderiam passar por sobre ele projetando suas víceras para todos os lados. Vê-lo rolar sob os ferros do caminhão já tinha sido demais para mim. Sendo que já estava morto e nada mais se podia fazer, corri para perdê-lo logo de vista e não vê-lo estrebuchar.

Passava bem das treze horas quando cheguei a um restaurante no fim do aclive do vale do rio Pelotas, próximo já a cidade de Vacaria, no Estado do Rio Grande do Sul. Para trás tinha ficado o rio Pelotas e sua ponte curva que viria a desabar anos mais tarde. Para trás tinham ficado os outros Estados, onde eu me sentia estrangeiro, mas estando no Rio Grande do Sul me sentia em casa agora. Confiante na tradicional hospitalidade gaúcha, entrei no restaurante, dirigindo-me a um senhor junto a balcão e pedi-lhe algo para comer. Pensava que se nos outros Estados, onde não há o povo hospitaleiro do Rio Grande do Sul, tinha ganhado poções tão generosas de comida, muito mais haveria de ganhar neste restaurante, onde seria agora atendido por um conterrâneo, gaúcho como eu, mas do outro lado do balcão, transtornando rapidamente o cenho, o homem apenas me disse:

– Vocês só querem saber de pedir. Trabalhar, que é bom, vocês não querem.

Fui pego de surpresa com tais palavras, sendo que eu era um andarilho e ninguém me conhecia para poder falar tal coisa de mim. De mais a mais, certamente nunca mais eu haveria de voltar ali, sendo que jamais tinha sido visto pedindo qualquer coisa em qualquer parte nas redondezas. Portanto, com que conhecimento esse homem agora me incluía no rol desses “vocês”, que só gostam de pedir e de trabalhar não gostam?

Sem ter o que responder e envergonhado, corri os olhos e vi pelo vão da porta dos fundos um monte de lenha comprida de acácia. Pensei que ali estava a solução do vexame que eu agora passava. Eu haveria de me redimir do estigma de pedinte preguiçoso. Disse-lhe então que poderia cortar aquele monte de lenha por um prato de comida, embora que por causa de meu braço direito lesionado e com tipóia improvisada eu sabia que não poderia manejar o machado, mas me esforçaria para fazê-lo se ele concordasse. Todavia, com o olhar ainda transtornado, o homem me disse em alta voz que não tinha trabalho nenhum para ninguém ali. Então saí com andar vacilante, me esgueirando entre as mesas a procura da porta, por causa da vergonha que sentia.

Segui pela rodovia em direção à cidade de Vacaria vendo no horizonte o céu azulado sendo coberto por uma escura nuvem que subia das bandas do sul. No estomago uma fome fraca, amenizada pela consciência de que não adiantava reclamar nem me entregar ao desânimo.

Após mais uma hora de caminhada na estrada já sombria, na rótula de acesso a Vacaria percebi como a cidade fica distante daquele ponto, o que na ida não tinha posto sentido. Por isto, decidi seguir rumo ao sul, deixando a cidade para ser descoberta no futuro. O céu já estava completamente coberto e à frente se erguia um paredão de nuvens tão densas que traziam a noite no início da tarde. Percebendo que seria pego por um grande temporal, fui tratando de me achegar a um posto de combustíveis que vi em construção no lado esquerdo da rodovia há mais de um quilômetro da rótula de acesso. Ao chegar sob a cobertura do posto, para meu constrangimento, vi que os trabalhadores comiam em suas viandas sentados sobre cepos. Não querendo importuná-los em seu almoço, tive o impulso de recuar, mas achei melhor ficar, sendo que teria antes que explicar porque viera até ali e ia saindo tão repentinamente.

Mal erguendo os olhos, mas atento ainda à comida, um dos homens me convidou para sentar num dos cepos por ali. Fiquei observando o céu enquanto respondia as perguntas de um e outro. Inquieto ainda, sentindo-me desacomodado por ter violado o momento da refeição dos homens, comentei que o melhor seria seguir viagem, pois se viesse a chuva e não parasse não teria como prosseguir e achar onde passar à noite. Um deles disse que eu devia ficar tranqüilo, pois à noite ninguém permanecia na obra, exceto o guarda, mas eles falariam com ele para me deixar ficar, se fosse o caso. Satisfeito, agradeci. Logo um outro me perguntou se já tinha almoçado. Forçando uma cara de satisfeito, respondi que sim, que tinha almoçado no primeiro restaurante após a entrada no Rio Grande do Sul, onde ganhara bastante comida. Percebi, porém, que um deles parou de comer quando lhe restava pouco menos da metade da vianda. Depois foi a cada um dos colegas pegando um pouco de comida de cada uma de suas viandas. Achei estranho ele estar fazendo isso. Pensei que sua comida teria sido pouca, por isto os outros repartiam com ele. Ao ir de um a um, porém, ele veio a mim e me deu a vianda cheia de comida. Assustei-me ao presenciar tal atitude, ficando deveras envergonhado, pois não esperava por um ato assim. Meu coração se comprimiu no peito. Tive forte vontade de chorar, mas fiquei firme pensando em como me desvencilhar de tal situação. Olhando, porém, para os olhares expectantes dos trabalhadores marcados pela dureza do trabalho, percebi que não tinha como recusar, que seria uma grosseria.

Wilson Amaral

Wilson do Amaral Escritor
Enviado por Wilson do Amaral Escritor em 03/12/2007
Reeditado em 03/12/2007
Código do texto: T762769