CAPÍTULO II
São, São Paulo, Meu Amor
Em 1948, ano em que nasci, São Paulo já se colocava entre as cidades mais populosas do mundo. Sua rápida expansão populacional começou no início do século XX e foi acelerada em meados dos anos trinta, por conta, principalmente do grande fluxo de imigrantes que começou a chegar ao país logo após a abolição da escravatura, ocorrida em fins do século XIX. Um grande contingente desses imigrantes elegeu São Paulo como destino em face do processo de industrialização que ganhava corpo na capital paulista e precisava da mão de obra mais especializada do trabalhador europeu. [1]
A cidade, que já nas primeiras décadas do século vinte contabilizava uma população de mais de um milhão de habitantes, aproximando-se do Rio de Janeiro, que até o início da década de cinquenta era a maior metrópole brasileira, praticamente inchou. Tanto que na metade da década de cinquenta, quando comemorou o seu quarto centenário, a capital paulistana já havia superado o Rio de Janeiro em mais de 500 mil habitantes, tornando-se a maior cidade brasileira, colocando-se entre as maiores concentrações urbanas do mundo.
Nas esquinas de São Paulo, e essa é das mais claras lembranças da minha infância, cruzavam-se os diferentes personagens que viriam a formar uma nova sociedade em um país que ainda buscava uma identidade própria dentro de um mundo que emergia de sua maior tragédia vivida até então, que fora a segunda guerra mundial. Nas multidões que se misturavam nas praças e outros logradouros públicos podiam ser encontrados barões do café, industriais, operários, comerciantes, artesãos, funcionários públicos e artistas, num aparente caos de idiomas e interesses que se diriam inconciliáveis, não fosse o interesse econômico que unia pessoas de origens tão diferentes e de cuturas tão diversificadas em um único propósito, que era o de ganhar dinheiro.
São Paulo se tornara um caldeirão multirracial, a mostrar para o mundo que a convivência étnica é possível quando não se cultivam desejos de supremacia de uma raça sobre outras e o próprio Estado não incentiva políticas de intolerância racial entre os seus cidadãos.
Nascer e crescer no Bixiga me faz ver que, realmente a história da cidade de São Paulo e em menor escala, a do próprio estado a quem ela serve como capital, está intrinsecamente conectada com a chegada dos imigrantes ao Brasil. Isso, ainda hoje, pode ser verificado pelas influências que eles legaram à cultura dos paulistas. Não precisamos ir longe para verificar esse fato. Basta um passeio pelas suas ruas e bairros para comprovar a força dessa influência. O bairro da Liberdade, por exemplo, é um verdadeiro monumento a céu aberto, dedicado às culturas asiáticas, em especial a trazida pelos japoneses, povo que constitui a maioria da população daquele bairro.
Também em outros bairros, mas especialmente no coração da cidade, representado pela Praça da Sé e adjacências, e naqueles mais próximos do centro, que se desenvolveram principalmente com as atividades comerciais, encontraremos uma grande influência dos imigrantes de língua árabe, que vieram especialmente do Líbano e da Síria e se estabeleceram com pequenos comércios nesses locais.
Como bem lembra a historiadora Rose Koraicho, a Rua 25 de Março, por exemplo, marco na história de São Paulo, é um tradicional reduto de sírios e libaneses que desembarcaram no Brasil no final do século XIX. Fixaram-se naquela região, primeiramente com suas bancas de mascates, depois com suas lojinhas, que mais tarde transformaram-se em grandes magazines. No começo do século, quando os árabes começaram a ocupar a região, ela era conhecida como Várzea do Carmo, zona alagadiça, constantemente inundada pelas enchentes do rio Tamanduateí. Com o seu loteamento, ocorrido no início do século, vários compradores da colônia árabe aproveitaram os preços baixos pedidos pelos lotes e construíram residências e lojas no local.
As principais mercadorias ali comercializadas eram os produtos da indústria têxtil e utilidades domésticas, ou seja, tecidos, vestuários, armarinhos, louças, ferramentas, panelas, etc., que eram trazidos do exterior e transportados até o bairro do Ipiranga, de onde eram levados por carroças e barcaças até a rua 25 de Março.
Próximo dali havia ali um porto fluvial, chamado de Porto Geral, que hoje dá nome à Ladeira Porto Geral. Não demorou muito para a rua 25 de Março e as ruas adjacentes se tornarem um dos principais centros comerciais da cidade, inclusive exportando as mercadorias, que subiam a serra pela estrada de ferro Santos-Jundiaí para serem levadas para outros estados. Muitos clientes vinham de outras cidades e até de outros estados, para comprar mercadorias na 25 de Março, tradição que continua a ser exercida até os dias atuais. Hoje, essa rua pode ser considerada o maior shopping center a céu aberto da América Latina. Diariamente, milhares de pessoas a ela se dirigem para comprar mercadorias para revender, o que fez dela também um dos maiores centros atacadistas de roupas, tecidos e utensílios domésticos do país.[2]
Destarte, encontraremos também judeus, espanhóis, poloneses, chineses e um sem número de imigrantes vindos das mais diversas partes do mundo, fazendo de São Paulo um verdadeiro cadinho de nacionalidades, que coexistem em paz e estreita colaboração, mostrando ao mundo que essa possibilidade existe, bastando para isso que se cultivem respeito e tolerância para com o ser humano que existe em todos nós, independente da nossa origem, cultura, religião, cor da pele e outras particularidades desenvolvidas pelas diversas etnias que constituem a espécie humana.
Entre os contingentes de imigrantes que fizeram de São Paulo a metrópole pujante que ela se tornou na metade do século vinte, um grande destaque deve ser dado aos italianos. Dos bairros do Brás ao Bexiga, como era então conhecido a Bela Vista, até à Moóca e a Barra Funda, principalmente, os vários dialetos da Velha Bota podiam ser ouvidos nos armazéns e nas barracas dos comerciantes das feiras livres.
Em São Paulo, assim como no restante do território brasileiro, havia a tendência de os imigrantes do norte da Itália procurarem a zona rural, enquanto os que vinham do sul preferiam se instalar nas zonas urbanas. Isso decorria que da própria origem desses imigrantes, já que as levas imigratórias que vieram da Itália, oriundas do sul, eram principalmente pessoas que viviam nas zonas agrícolas daquele país, enquanto os que chegavam do norte provinham das regiões industrializadas da Itália.
Assim, na década de quarenta e cinquenta, nas ruas de São Paulo era comum a gente ouvir falar mais o italiano do que o português. Lembro-me bem desse fato, especialmente quando me recordo dos passeios que eu dava com a minha bike pelas ruas do bairro. Ciao, Arrivederci, A più tardi. Ci vediamo dopo. A presto. A domani, Buon giorno, Andiamo, eram termos tão usuais na linguagem do bairro quanto os nossos vocábulos usados para os cumprimentos coloquiais.
Dizia-se, na época, que na capital dos paulistas, os dialetos da velha Bota eram mais conhecidos do que em Milão e Nápoles. Essas impressões foram registradas por Ernani da Silva Bruno em seu livro, História e tradições da cidade de São Paulo): (...) a impressão de espanto de um mineiro ao conhecer São Paulo em 1902:'
“Os meus ouvidos e os meus olhos guardaram cenas inesquecíveis”, escreveu esse autor. “Não sei se a Itália o seria menos em São Paulo. No bonde, no teatro, na rua, na igreja, fala-se mais o idioma de Dante que o de Camões. Os maiores e mais numerosos comerciantes e industriais são italianos'. Sousa Pinto, um jornalista português que esteve na Cidade na mesma época, não conseguiu se fazer entender por vários cocheiros de tílburi, todos falando dialetos peninsulares e gesticulando à napolitana. Escritas em italiano eram também as tabuletas de vários edifícios. 'Encontramo-nos a cogitar se por um estranho fenômeno de letargia em vez de descer em São Paulo teríamos ido parar numa Cidade de Vesúvio' (...).
Essas também são impressões que trago da minha infância. Com efeito, a presença italiana em São Paulo, naqueles tempos, era impossível de não ser notada. Ela podia ser encontrada em todas as partes da cidade, nos nomes dos edifícios, dos logradouros públicos, ruas, escolas e outros locais onde a municipalidade paulistana entendeu prestar homenagem à operosidade desses importantes trabalhadores que vieram mudar a face da economia e da sociedade brasileira, que antes se apoiava em uma vergonhosa estrutura escravagista e que, com a chegada deles, transformou-se na maior nação do hemisfério sul do planeta.
Essa, claro, é uma coisa que me orgulha na minha condição de paulistana de origem italiana. Na cidade de São Paulo, principalmente, os imigrantes italianos encontraram um campo propício para se estabelecer e forjar uma presença que ainda hoje é uma marca importante na paisagem cultural da cidade.
Os bairros do Bexiga, da Mooca e do Brás são hoje sinônimos dessa herança. Quando passo por lá ainda vejo nos nomes das ruas, dos edifícios, nos logradouros públicos, os registros desse legado. No bairro da Mooca, por exemplo, o Museu da Imigração, inaugurado na década de 1990 e reaberto em 2014 após uma importante restauração, é um exemplo marcante dessa presença.
Sei que nesse local funcionou anteriormente a Hospedaria dos Imigrantes, uma construção feita em 1887 pelos fazendeiros cafeicultores para hospedar os imigrantes que estavam chegando da Europa para substituir a mão de obra escrava, cujo tráfico havia sido interrompido com a proibição do tráfico negreiro. Esse tráfico já havia sensivelmente diminuído com a Lei do Ventre Livre e a violenta campanha abolicionista que então sacudia todas as estruturas da economia brasileira desde a metade do século XIX. Embora a abolição total da escravidão no Brasil só tenha acontecido em 1888, com o decreto assinado pela Princesa Isabel, os cafeicultores paulistas já estavam se precavendo contra essa mudança drástica na estrutura da economia do país, como se vê pelo acervo desse museu.
Destarte, a chegada dos imigrantes e a adaptação da economia paulista às mudanças que o país sofreria a partir de então foi uma das principais razões de o Estado de São Paulo tornar-se o estado mais rico do país.
Fiz toda essa dissertação para mostrar, principalmente aos membros da minha família e aos meus amigos, o quanto me orgulho da minha descendência e o quanto ela marcou a minha personalidade inquieta e contestadora.
E também o caráter romântico da minha sensibilidade, porque muita coisa da minha vida foi moldada por essa
origem.[3]
DO livro Henriette, Uma Cnção por Amor, em preparação
[1] Na foto, Henriette com dois anos de idade.
[2] Koraicho, Rose- Memória da Rua dos Árabes, São Paulo, 2004. Na imagem, a rua 25 de Março em um dia normal de comércio aberto. Foto: Pinterest- Wikipédia Fundation
[3] Na foto Henriette com quatro anos de idade