CAPÍTULO I

 

Das minhas influências musicais

 

Eu nasci no bairro da Bela Vista, tradicionalmente conhecido como Bixiga. O Bixiga, antigo reduto de imigrantes italianos, era, naquela época, um local tranquilo e seguro, onde a garotada do bairro podia andar de bicicleta sem ser incomodada pelo trânsito. Também era lá que aconteciam tradicionais noitadas de serestas e concorridas rodas de samba, onde uma plêiade de artistas do bairro se apresentavam, com suas divertidas criações, fazendo o folclore da região tornar-se uma atração que ficou marcada no tempo como uma das mais sugestivas tradições da cidade de São Paulo.

O Bixiga apresentava-se então como um bairro calmo e sossegado, onde as pessoas podiam sentar-se à noite, na calçada, em frente às suas casas, para botar a conversa em dia e comentar as notícias que atraíam a atenção da comunidade. Não tinha nada do borbulhante tráfego e do ativo comércio que hoje ostenta e faz dele um dos bairros mais movimentados de São Paulo.

O Bixiga é o tradicional reduto que fez a fama do grande Adoniran Barbosa. Entretanto, como bem mostra a letra da sua canção

 

mais famosa, Saudosa Maloca. O Bixiga já apresentava https://www.saopauloinfoco.com.br/wp-content/uploads/2014/09/adoniran-barbosa-800x387.jpgnaquela época, o dramático contraste entre a especulação imobiliária que caracteriza uma vigorosa expansão econômica e os problemas sociais que sempre vêm no bojo dela. Esse contraste, nesse caso, era representado pela incômoda situação dos sem-teto, personagens, que de repente, se viram atirados na rua, “pegando a paia nas gramas dos jardins[1], como dizia o poeta que se tornaria uma espécie de símbolo do povo que formigava pelas ruas da capital paulista.

 

Se o senhor não está lembrado
Da licença de contar
Que aqui onde agora está
Esse edifício alto
Era uma casa velha

Um palacete assobradado

Foi aqui seu moço
Que eu, Mato Grosso e o Joca
Construímos nossa maloca
Mais um dia, eu nem quero me lembrar
Vieram os homens com as ferramentas
O dono mando derruba.

Peguemo' toda' nossas coisas
E fumos pro meio da rua
Apreciar a demolição
Que tristeza que nois sentia
Cada táuba que caia
Doía no coração

Mato Grosso quis gritar
Mas em cima eu falei
Os homens estão 'cá razão
Nós arranja outro lugar

Só se conformemos quando o Joca falou
"Deus dá o frio conforme o cobertor"
E hoje nós pega a paia nas grama do jardim

E pra esquecer nós cantemos assim:
Saudosa maloca, maloca querida

Indin donde nós passemos

Dias feliz em nossas vidas.

Saudosa maloca, maloca querida
Que din donde nós passemos

Dias feliz de nossas vidas...

 

Não era difícil ouvir, nas varandas das casas, ou mesmo nas rodinhas formadas nas calçadas, um violão dedilhado por algum seresteiro de ocasião, destilando suas mágoas por causa de um amor perdido ou mal correspondido.

O romantismo das serestas ainda estava em voga naqueles dias, quando Dick Farney fazia sucesso com a canção “A Saudade Mata a Gente”.

 

Fiz meu rancho na beira do rio
Meu amor foi comigo morar
E na rede, nas noites de frio
Meu bem me abraçava pra me agasalhar

Mas agora, meu bem, vou-me embora
Vou-me embora, e não sei se vou voltar
A saudade, nas noites de frio,
Em meu peito vazio virá se aninhar
(Bis)

A saudade é dor pungente, morena
A saudade mata a gente, morena
(Bis)

Mas agora, meu bem, vou-me embora
Vou-me embora, e não sei se vou voltar
A saudade, nas noites de frio,
Em meu peito vazio virá se aninhar

A saudade é dor pungente, morena
A saudade mata a gente, morena

 

 E tinha o Lupicínio Rodrigues avisando os jovens sobre o perigo de se apaixonarem, na letra do seu samba canção, “Esses Moços”.

 

Esses moços

Pobres moços

Ah! Se soubessem o que eu sei

Não amavam,

Não passavam,

Aquilo que eu já passei,

Por meus olhos, por meus sonhos,

Por meu sangue, tudo enfim,

É que eu peço,

A esses moços,

Que acreditem em mim.

Se eles julgam
Que a um lindo futuro
Só o amor nesta vida conduz,
Saibam que deixam o céu por ser escuro
E vão ao inferno à procura de luz...
Eu também tive nos meus belos dias,
Esta mania e muito me custou,
Pois só as mágoas
Que eu trago hoje em dia,
E estas rugas que o amor me deixou.

 

      Essas eram duas das canções mais tocadas em 1948, nos programas de rádio da época, quando eu nasci. Claro que eu não as conhecia, mas elas tratavam de temas que jamais ficarão ultrapassados, que é a saudade e as mágoas de amor. Por isso essas canções ainda fazem parte do meu repertório e sempre são solicitadas pelo meu público em meus shows.

      Pois o amor, o prazer e a alegria que ele nos trás nunca sairão de moda. A música, a poesia, a arte em geral, sempre terão no amor o seu tema mais constante. As mágoas e as decepções que ele nos provoca também fazem parte desse sentimento tão complexo, no qual toda vida da humanidade se ampara. Quem não ama não vive, disse o poeta, e não há verdade mais cristalina do que essa.

   

       O rádio era o principal meio de comunicação naqueles tempos. Além de ser um instrumento de utilidade pública na mais perfeita acepção da palavra, por ser um importante portador de mensagens e difusor de notícias para o público em geral, ele era também o único elemento de ligação entre a cidade e o interior. Poucas ferramentas de comunicação foram tão úteis para realizar a integração do território brasileiro quanto o rádio. Por ele se conhecia o que estava acontecendo no país inteiro e no resto do mundo. Especialmente através do Repórter Esso, o mais famoso noticiário da época.[2]

          O interior do Brasil só tinha conhecimento dos movimentos que se articulavam nas capitais por conta das emissões radiofônicas que dele emanavam. As pessoas se comunicavam com os amigos e parentes através dos programas radiofônicos, mandando mensagens que eram também respondidas através deles.

      O rádio era também o principal correio da época. Tudo girava em torno do relacionamento que ele proporcionava aos ouvintes. Pelas ondas médias e curtas Maria, lá no sertão da Bahia, mandava recado para José, seu namorado que havia imigrado para São Paulo. E José respondia para Maria, falando da sua saudade, do seu amor e da sua esperança de logo poder buscá-la. Era mais rápido que o correio e mais barato. E também muito impactante, pois era uma voz a falar, ao invés da fria letra de uma carta.

       Muitos casais se formaram através das mensagens trocadas pelo rádio. E ele era também uma forma de lazer e a maior fonte difusora de propaganda e promoção de empresas e negócios. Os programas de auditório, os saraus musicais e as radionovelas eram a principal plataforma de lançamento de artistas e divulgação das mais variadas obras artísticas no campo da literatura e da música.  

        Lá em casa ouvíamos rádio o dia inteiro. Pela manhã os programas da Rádio Nacional, da Bandeirantes e da Tupi, com suas novelas radiofônicas e a Gazeta, quando se tratava de esportes. O maior sucesso da época era o Programa Manoel de Nóbrega, na Rádio Nacional de São Paulo. Morríamos de rir com as piadas do Ronald Golias, na novela em capítulos que ele dividia com Daniel Guimarães e Hebe Camargo, que era a “mocinha” da novela. A novela se chamava "A Fera do Mar" e seus script era escrito no dia a dia, com muitas improvisações, feitas a pedido dos ouvintes.  

       E tinha também os programas da Rádio Gazeta, especializada em programas de auditório e música clássica. Aliás, essas músicas eram as preferidas do meu pai, juntamente com as tradicionais cançonetas napolitanas,  que ele vivia cantarolando.

 

       De muitas coisas da minha infância no Bixiga, eu posso ter esquecido. Mas minha memória musical ficou impregnada por canções daquela época. Lembro especialmente as canções italianas, especialmente as napolitanas, que meus pais tocavam em casa. Duas delas ainda ressoam frequentemente na minha cabeça: Funiculi Funiculá e o Sole Mio.

Aissera, oje Nanniné, me ne sagliette,
tu saje addó, tu saje addó
Addó 'stu core 'ngrato cchiù dispietto
farme nun pò! Farme nun pò!
Addó lu fuoco coce, ma se fuje
te lassa sta! Te lassa sta!
E nun te corre appriesso, nun te struje
sulo a guardà, sulo a guardà.

Jamme, jamme 'ncoppa, jamme jà,
Jamme, jamme 'ncoppa, jamme jà,
funiculì, funiculà!
funiculì, funiculà!
'ncoppa, jamme jà,
funiculì, funiculà!

Né, jamme da la terra a la montagna!
Nu passo nc'è! Nu passo nc'è!
Se vede Francia, Proceta e la Spagna...
Io veco a tte! Io veco a tte!
Tirato co la fune, ditto 'nfatto,
'ncielo se va, 'ncielo se va.
Se va comm' 'a lu viento a l'intrasatto,
guè, saglie, sà!

Jamme, jamme ...

Se n'è sagliuta, oje né, se n'è sagliuta,
la capa già! La capa già!
È gghiuta, po' è turnata, po' è venuta,
sta sempe ccà! Sta sempe ccà!
La capa vota, vota, attuorno, attuorno,
attuorno a tte! Attuorno a tte!
Stu core canta sempe nu taluorno:
Sposamme, oje né! Sposamme, oje né.[3]

 

     É claro que eu não sabia cantar essa letra pois ela foi escrita em napolitano, um dos muitos dialetos da Velha Bota, mas o refrão gostoso do ritmo da tarantela era fácil de guardar e as palavras jamme, jamme, eu sabia que significavam vamos, vamos, e eu vivia repetindo jamme, jamme, como se fosse uma perfeita napolitana.

     Era a mesma coisa com a canção Sole Mio. Essa era uma famosa canção napolitana, talvez a mais famosa de todas, que já havia sido gravada por vários cantores, e inclusive tinha uma letra em inglês, que seria popularizada nos anos sessenta por Elvis Presley. Mas para mim era a versão em dialeto napolitano que enchia os meus ouvidos e não saia da minha memória.  

 

Che bella cosa 'na jurnata 'e sole
L'aria serena doppo 'na tempesta
Pe' ll'aria fresca pare già 'na festa
Che bella cosa 'na jurnata 'e sole

Ma n'atu sole cchiù bello, oi ne'
'O sole mio sta in fronte a te
'O sole, 'o sole mio, sta in fronte a te
Sta in fronte a te

Quanno fa notte 'o sole se ne scenne
Me viene quase 'na malincunia
Sotta fenesta toia restarria
Quanno fa notte, e 'o sole se ne scenne

Ma n'atu sole cchiù bello, oi ne'
'O sole mio sta in fronte a te
'O sole, 'o sole mio, sta in fronte a te
Sta in fronte a te!

 

     Assim, do romantismo da alma italiana e das agruras que o povo paulistano enfrentava no dia para ganhar a sua vida foram feitas as influências que moldaram o meu próprio caráter e a minha formação musical. O resto seria acrescentado pela vida, nas várias experiências que ela tem me proporcionado em minhas andanças por esse maravilhoso país, que é o nosso.

    Um pouco dessas experiências é o que pretendo contar nesse memorial.

 


[1] Saudosa Maloca é uma composição de Adoniran Barbosa, nome artístico de João Rubinato, nascido em Valinhos, em 6 de agosto de 1912 falecido em São Paulo, em 23 de novembro de 1982). Adoniram foi compositor, cantorhumorista e ator. Seu estilo popularesco, desprezando as regras gramaticais e procurando imitar o jeito descomprometido do homem do povo paulistano falar, foi a marca distintiva do seu trabalho. Na imagem, Adoniran Barbosa, caracterizando o seu mais famoso personagem, o Charutinho. Fonte: Abrahão de Oliveira História de São Paulo-2014.

 

[2] O Repórter Esso foi um programa criado pela mídia americana, com a finalidade de fazer a propaganda da guerra para o povo brasileiro. A intenção era a de fazer o Brasil entrar no conflito. Era patrocinado pela Standard Oil Company, popularmente conhecida como Esso do Brasil. Iniciou suas transmissões no Brasil em 1941, com o apoio do presidente Getúlio Vargas, sob a orientação do Departamento de Imprensa e Propaganda. Foi o primeiro programa radiofônico da história a demonstrar a futura globalização das comunicações e uma ferramenta de divulgação do American way of life, cuja influência tem sido tão grande no panorama geral da cultura brasileira. A primeira transmissão do Repórter Esso em nosso país aconteceu no dia 28 de agosto de 1941. Era apresentado na rádio e na televisão e consagrou diversos locutores brasileiros, entre eles Benedito Ruy Rezende, Dalmácio Jordão, Kalil FilhoGontijo TeodoroLuís Jatobá e Heron Domingues. Nota do autor

 

[3] Funiculì, Funiculà é uma das mais famosas canções da Itália. Foi composta em dialeto napolitano pelo jornalista cantor Giuseppe 'Peppino' Turco e musicada por Luigi Denza em 1880. Na origem era um jingle composto para celebrar a abertura do primeiro bonde que circulava pelo monte Vesúvio, chamado carinhosamente pelos napolitanos de funiculare.

 

Do livro: Henriette: Uma canção por amor- em preparação