LUZ MISTERIOSA
Este texto é seqüência do texto COMIDA ALÉM DA CONTA.
Após comer o que pude da comida que os policiais rodoviários me ofereceram, deixei o posto de polícia sob seus protestos de que nunca tinham visto um mendigo recusar comida. Tinha comido muito naquele dia, estando já saturado ao passar pelo posto de polícia, e os policiais me ofereceram uma grande panela de churrasco que tinha sobrado de seu almoço. Comi uns poucos pedaços para não fazer desfeita, mesmo assim não consegui agradá-los, pois os entristecia a idéia de pôr mais de meia panela de carne assada no lixo.
Da porta do posto de polícia vislumbrei a noite de verão muito escura e a estrada deserta e misteriosa a minha frente. Os policiais não quiseram me informar há quanto distava o próximo posto de combustíveis, onde eu procuraria por um abrigo para passar a noite e descansar do dia extraordinariamente cansativo. Até esse ponto eu já caminhara muito além da média dos outros dias. E suspeitava que ainda andaria muito até o fim da jornada. Talvez fosse por isto q os policiais não quiseram me dizer a distância do próximo posto de combustíveis.
Passava do meio do mês de fevereiro de 1981. A noite era quente, porém não tão clara como são as noites de verão. Encarei a estrada de peito, lançando-me a ela confiando em Deus. Após muito andar, tomando um susto aqui e outro ali, percebi uma reta à frente, que se perdia de vista na escuridão, demonstrando apenas muito distante a marca do horizonte contra o negrume mais claro do céu.
Na estrada, o ruído dos meus paços, entre o som de grilos e sapos, rompia o silêncio funesto, coreografados pelo lampejar de um vaga-lume aqui e outro ali. À direita, o vulto de uma mata à distância de uns trinta metros da rodovia se estendia ao longo da margem. À esquerda, a mesma paisagem seguia ao longo o caminho. De vez em quando, um carro rompia o silencia com tanto estrondo que até a luz dos faróis me causavam medo. No coração, a saudade de casa, em São Leopoldo, possivelmente há mais de seiscentos quilômetros de distância, de onde eu tinha saído no final de novembro do ano anterior, indo até São Paulo.
Após um bom tempo seguindo aquela reta e vendo no horizonte a silhueta de um homem de chapéu à beira da estrada, comecei a ouvir distante o som de tambores vindos do interior do mato e, à medida que eu avançava, o som aumentava, aproximando-se sempre mais, até que percebi alinhar-se a mim no interior do mato. Deste ponto, lá no fundo da escuridão, exatamente de onde vinha o som de tambores, via da estrada escura uma tocha, que passou a seguir-me lado-a-lado, como se fosse uma procissão me acompanhando a passos largos do meio do mato na mesma velocidade que eu seguia no asfalto.
Meu coração acelerou juntamente com minhas passadas. Sentia os pulsos na garganta. À frente, o vulto do gigantesco homem de chapéu no horizonte à beira da estrada. Ao lado, me seguia uma tocha no meio do mato movida pelos sons de um culto obscuro. E atrás, apenas a imensa distância que me separava do posto de polícia rodoviária, de onde eu saíra, pois os policiais tinham dito que ali não poderia passar a noite.
Fugia da tocha e dos sons de tambores, que me acompanhavam quase correndo em meio a um mato nativo, e me aproximava rápido do homem gigantesco de chapéus na escuridão à beira da estrada. Há muitos quilômetros pensava em desviar-me dele indo para o outro lado da rodovia, mas, pensava, que diferença faria, se há quilômetros já o temia? Agora que se aproximava mais o momento de encará-lo, meu coração parecia que sairia pela boca. E eu acelerava mais o passo, impulsionado pela tocha e os tambores. Quanto mais medo eu tinha de achegar-me ao vulto, mais acelerava em sua direção, pensando que a única forma de vencer o medo era deixá-lo para atrás, se é que conseguiria.
Repentinamente, o som de tambores ao meu lado cessou e a tocha amarela foi engolida pela escuridão do mato. Segui a largas passadas, em estado de suspensão. No silêncio, ouvia meu coração como um tambor. Esperava que a qualquer momento algo acontecesse. A distância entre mim e o gigantesco vulto estava há menos de duzentos metros. Meus olhos estavam fixos nele. À medida que fui chegando mais perto, fui percebendo que a aparência se modificava e antes ainda de atingir a distância de cem metros, vi que se tratava de uma grande árvore seca e desgalhada, que deixei para atrás muito aliviado, mas ainda melindrado por sua aparência sinistra.
Após passar da árvore, a tênue subida da reta declinou para uma decida íngreme, que se estendia à minha frente, serpenteando por um pequeno e sombrio vale, dando para ver no morro adjacente a presença de umas poucas luzes de rua há mais de uns cinco quilômetros de distância. Seria ali meu local de descanso? Esperançoso, encontrei forças para acelerar ainda mais o passo. Parecia que os ossos de minhas canelas estavam partidos. Provavelmente tinha andado mais de setenta quilômetros nesse dia, quando em média andava uns cinqüenta. Mas, apesar do cansaço, precisava ter forças ainda para seguir até aquelas luzes, pois o relento não parecia seguro naquela região.
Alguns quilômetros além das luzes, quando eu já chorava sem esperança de encontrar descanso, no outro lado daquele morro, após deixar para trás muitas outras curvas e retas, encontrei um aglomerado maior de casas e luzes, um lugarejo no meio do nada, onde havia também um posto de combustíveis e, sob o telhado de uma borracharia ao lado, estendi minha esteira e panos, repousando o corpo alquebrado até a manhã seguinte, que não demorou a chegar.
Wilson Amaral