A FONTE SOB O ALTAR
Este texto é seqüência do texto AMIGOS NO CAMINHO.
Poucos quilômetros tinham ficado para atrás desde que eu passara a divisa dos Estados de São Paulo e Paraná em direção ao Sul, pretendendo voltar para São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, de onde tinha saído em meados de novembro do ano anterior. Corria o mês de fevereiro do ano de 1981. Numa reta da estrada deserta, vi parado um caipira bem típico, portando uma enchada e pedindo carona. Ao passar por ele, me cumprimentou com simplicidade, como fazem as pessoas do campo. Segui a reta visualizando à distância uma longa curva para a direita num aclive suave e descampado. Era um dia de pouco calor, sendo que chovera no local antes de minha passagem e o céu continuava fechado. Já no começo da longa curva, percebi a passagem de um caminhão Mercedes branco com carroceria tanque, de onde alguém gritou algo. Não vi, porém, razão para alguém por ali me gritar qualquer palavra, a não ser para mexer comigo. Após afastar-se mais de cem metros, o caminhão reduziu a velocidade, mas seguiu por mais uns quatrocentos metros, diminuindo a marcha aos poucos, até parar de vez numa parte mais íngreme da curva, muito distante. Admirado que tenha parado em lugar tão ermo, segui a mirá-lo, imaginando que algo tivesse ocorrido, motivo porque tinha reduzido e parado após tanto tempo. "Talvez tivessem perdido algo", pensei. Após mais algum tempo, percebi que alguém desembarcou e começou a fazer o caminho de volta. Concluí logo que estava certo quanto ao meu pensamento, pois, com certeza, tinham perdido algo e alguém voltava para procurar. Todavia, o homem afastou-se muito do caminhão, seguindo sempre em minha direção, intrigando-me e fazendo-me indagar com mas ênfaze sobre o que teriam perdido e percebido após tanto tempo. Mas à medida que ele foi chegando mais perto fui distinguindo seu semblante e pude enfim perceber que tratava-se do caipira, que pouco antes eu tinha visto no caminho. Ele chegou-se a mim e me convidou para correr com ao caminhão, pois o motorista nos aguardava para dar carona até Curitiba.
Após o meio-dia, desembarquei em Curitiba, próximo à região de Pinheirinho, e segui rumo ao Sul pela BR 116. Comigo seguiu a fome, pois, estando de carona, não pudera chegar nalgum restaurante no horário do almoço para tentar conseguir algum alimento. Muito após ter deixado para trás a zona urbana, achei na beira da estrada uma marreta de bater pneus, que algum caminhoneiro teria esquecido. Tomei-a para levá-la como souvenir. Mais adiante, naquela mesma tarde, não muito tempo depois, achei uma toalha de rosto bem novinha, que também tomei para levar como souvenir. Enrolei a marreta na toalha e ia levando-as na mão.
Empolgado por causa da carona surgida pela manhã, de vez em quando à tarde arriscava fazer sinal para conseguir outra. Embora não acreditasse mesmo que pudesse conseguir, ataquei um caminhão Mercedes 608, que passava tripulado por dois homens de chapéus de palha. Percebi o Mercedinho ser freado e pouco depois de onde eu estava ele parou. Junto à porta, falei aos ocupantes que seguia rumo ao Sul e qualquer carona de qualquer distância servia. Eles me convidaram a entrar na cabine, esclarecendo que poderiam dar carona somente até o acesso a Rio Negrinho. Disse-lhes que estava ótimo, pois pretendia ficar em Mafra, de onde tentaria arranjar dinheiro para tomar o trem até Lages. Uns poucos quilômetros adiante, paramos para dar carona para uma turma de homens e mulheres jovens, que seguiram viagem na carroceria do caminhão, acomodando-se como puderam junto as caixas de tomates. No caminho os homens do caminhão me indagaram sobre o que levava enrolado na toalha. Mostrei-lhes então a marreta de bater pneus. O motorista perguntou-se se queria oito cruzeiros pela marreta. Respondi-lhe que o dinheiro vinha bem a calhar, pois com ele poderia pagar a passagem do trem. Pergunto então se arremataria a toalha e marreta por mais dois cruzeiros. Respondi-lhe que isto era fabuloso, pois com o troco da passagem do trem poderia comprar algo para comer na viagem.
Deixaram-me pouco tempo depois junto ao acesso a Mafra na BR 116. Dali fiz uma longa caminhada à estação ferroviária, no centro da cidade. Fui informado de que somente haveria trem para Lages na quarta-feira. Era segunda e o dinheiro que eu tinha não daria para o sustento até quarta, nem mesmo daria até o dia seguinte. Se ficasse não sobraria dinheiro para passagem. Se deixasse o dinheiro da passagem ficaria com fome. Também teria que arranjar onde passar as noites.
Na cidade não é fácil pedir o que comer e na estrada se pode dormir nas borracharias. Portanto, retornei para BR vencendo toda aquela distância sob o sol causticante do verão. No caminho sentia a garganta ressecada. Tomei a rodovia à direita sob aquele mesmo sol, imaginando que logo acharia um córrego e saciaria a cede. Uns três quilômetros adiante ouvi ruído de água corrente num mato a margem direita da estrada. Entrei na mata à procura dA fonte guiado pelo ruído. Logo à minha frente, em uma parte já bem fresca e sombria, vi um córrego por onde corria água bem cristalina que jorrava de uma pequena queda à frente. Cheguei à minúscula cascata e curvei-me para sorver a água na poça abaixo da queda. Bebia então, quando vi por cima dos olhos o pé de algo que me pareceu uma estaca de madeira cravada no chão logo à frente. Fui erguendo os olhos de vagar e vi que se tratava de uma pequena cruz, mais ou menos da metade de minha altura, circundada de muitas velas vermelhas, pretas, amarelas, etc., além de imagens e oferendas.
Erguendo-me de sobressalto percebi que estava bem no meio de um altar de oferendas ocultistas e tomava a água que passava por ele. Meu coração disparou e corri imediatamente sob as sombras para a estrada sentindo-me como que seguido pelos espíritos pavorosos daquele culto. Espiando-me todo, tomei a estrada mantendo-me na parte mais clara sob o sol. Aprecei-me para ver-me o máximo distante daquele lugar obscuro.
Wilson Amaral