BIOGRAFIA RICARDO FONTOURA – O DIAGNÓSTICO
Em 1989, Ricardo Fontoura era um homem cheio de planos para o futuro. Há onze anos havia tomado a decisão de interromper a carreira de engenheiro em Belo Horizonte para iniciar sua trajetória no agronegócio em Goianésia, no ramo de sementes. À frente da Planagri, que até então era a empresa mais importante do município, mais relevante ainda do que a Cooperálcool (atual Jalles Machado).
O setor de sementes não atravessava um momento muito bom. Ricardo às vezes tinha que se desdobrar para conseguir honrar todos os compromissos, pagar todas as contas. Mas sempre dava um jeito. Nunca teve medo de lidar com dívidas, financiamentos. Acreditava que o trabalho bem feito era sempre recompensado. Tinha planos ousados para a próxima década. Era um homem jovem, de apenas 38 anos. Energia não lhe faltava.
Mas o destino de um homem às vezes tem caminhos misteriosos. A vida pode ter planos diferentes. Pode impor novas agendas. E assim foi com Ricardo. Em um determinado momento ele começou a sentir problemas nos olhos e um formigamento na perna direita. De um jeito que nunca havia sentido. Era algo completamente novo. Foi ao oftalmologista, que sugeriu que ele pudesse estar com algum tipo mais grave de doença, algo neurológico.
Sem ter muita noção do que poderia ser, Ricardo e Myrinha foram a São Paulo, buscar respostas. Emílio, um primo de Ricardo, que era neurocirurgião no hospital Albert Einstein os receberam e explicou, por cima, os procedimentos que Ricardo teria que fazer. Na capital paulista, o casal se hospedou em um hotel e alugou um carro, para ir ao hospital e realizar a bateria de exames. Na cabeça de Ricardo não seria nada tão grave. Myrinha já estava mais aflita.
Emílio indicou um médico que era referência no hospital em assuntos como aquele, chamado Charles. Ricardo foi até o consultório e realizou uma ressonância magnética completa, algo que não havia em nenhum outro lugar do Brasil até então. Myrinha ficou na sala de espera.
Depois de uma longa espera, Emílio chama Myrinha numa salinha para explicar os resultados. Usando uma mistura de termos técnicos com linguagem leiga, ele basicamente disse que Ricardo tinha lesões desmielinizantes no cérebro. Ou seja, o sistema imunológico ataca a camada protetora que envolve os neurônios, chamada mielina, e atrapalha o envio dos comandos do cérebro para o resto do corpo. E encerrou dizendo que Ricardo possivelmente tinha uma doença chamada esclerose múltipla.
Myrinha entendeu praticamente tudo naquele momento. Ela sabia que era algo muito grave e que mudaria a vida dele para sempre. A vida da família para sempre. Ela ficou muito abalada, não sabia como lidar com a informação. Mas era só o começo, precisava ser forte, havia mais a saber e a fazer.
Agora estavam Myrinha e Ricardo diante do médico responsável pelo tratamento, o Charles, que explicou o paciente tinha oficialmente esclerose múltipla. Com riqueza de detalhes, o médico explicou como a doença se manifestava. Explicou as fases da enfermidade e como ela iria crescendo e diminuindo a qualidade de vida do paciente. E por último, deixou claro que não havia cura, mas havia tratamento, para amenizar os efeitos e retardar as fases mais agudas.
Ricardo ouviu a tudo sem falar nada. Parecia anestesiado com a sentença que o médico proferia. Myrinha estava em choque. Ele se manteve apático, sem reação. Pediu licença e procurou um telefone público para ligar para o pai, Otávio. Myrinha ficou do lado. Em tom calmo, Ricardo disse ao pai que precisava ficar dez dias no hospital, em São Paulo, para os tratamentos, mais exames, que não era uma doença tão grave, que estava sob controle. O pai, do outro lado da linha, suspirou um pouco mais aliviado, mas ainda bastante preocupado.
Ricardo foi chamado pela equipe médica para mais uma bateria de exames. Seria a rotina pelos próximos dias. Myrinha ficou por ali, no pátio do hospital, ainda assimilando todas as informações. Era como se uma bomba atômica tivesse caído ali e, como sobrevivente, ela ainda estava estudando as consequências, os efeitos. Era assim que se sentia.
Desesperada, ele se dirigiu ao telefone público e ligou para o sogro, Otávio.
- Dr. Otávio, eu sei que o Ricardo acabou de ligar e disse que está tudo bem, mas não é só isso que ele falou, não. É algo bem pior, progressivo, incapacitante.
Com todas as letras, ela deixou claro para o sogro a gravidade da situação e como a doença iria atacar o organismo de Ricardo, com consequências ainda desconhecidas, mas certamente ruins.
- Acho que não dou conta sozinha, não. Seria bom o senhor vir para cá também – suplicou Myrinha, prevendo que os próximos dias seriam bem dramáticos, com a evolução da doença para níveis incapacitantes.
Mais calma e pragmática, ela foi ao hotel, fechou a conta e se instalou no apartamento do hospital, junto com Ricardo. Pediu ao pessoal da concessionária para buscar o carro alugado, explicando a situação em que estava. Resolveu ficar ali, do lado, para o que der e vier. Em dez dias ela chegou a perder quatro quilos. Praticamente só se alimentava de chocolate.
Ricardo, por sua vez, estava já iniciando o tratamento, à base de potentes anti-inflamatórios, com seu organismo começando a reagir às intervenções médicas. Mas havia a previsão da fase de surtos, que deveriam ser controlados também com medicamentos. Uma lista de novos hábitos foi repassada a Ricardo, que teria que fazer exercícios físicos todos os dias, ter uma alimentação mais saudável, evitar estresse e uma série de restrições. Era uma nova vida que estava diante dele, com menos possibilidades e poucas certezas.
Passado o susto inicial, de volta a Goianésia, Ricardo começou a mudar sua rotina, seguindo os passos recomendados pelo médico. Toda a família se mobilizou em torno da sua doença, algo que incomodou a ele, não gostava de ser olhado com pena, com esse tipo de atenção. Mentalmente estava bom, estava tentando ser mais forte do que sempre fora.
Apesar de toda a confiança dele, não era de ferro. Às vezes era vencido pela depressão que se segue a esse tipo de diagnóstico. Batia aquela tristeza, aquela desesperança, aquele olhar ao horizonte, sem conseguir ver muito adiante. Diante da família, tinha que se mostrar forte, potente, equilibrado. Era uma batalha a mais a ser vencida. Sozinho, às vezes, chorava a má sorte. Em uma situação, foi flagrado pelo irmão, Jalles, deitado na cama, de barriga pra baixo, se debatendo:
- Por que eu? Por que eu?
Foi talvez a única vez que alguém da família o viu em situação de desespero. Era normal, às vezes, vê-lo triste, principalmente diante dos surtos. Mas desesperado, não. Ricardo começou a aceitar a nova condição e entendeu que, com disciplina, com os avanços da medicina e com sorte, poderia ter uma vida razoavelmente longa e com qualidade.
Decidiu que continuaria trabalhando normalmente, que não deixaria de viajar com a família, com os amigos. Que a doença não iria tirar dele o que ele era, o que ele fazia de melhor. Não seria uma vítima, prostrada na cama, se lamentando. Não cumpriria esse papel.
Confidenciava com Myrnha que ficaria feliz se conseguisse viver até os 60 anos, queria ver os filhos formados. Era sua ambição diante da esclerose múltipla e sua sentença.
Myrinha passou a ser cada vez mais seu esteio, seu porto seguro. Deixou sua carreira de arquiteta em segundo plano, para ser uma pesquisadora autodidata de esclerose múltipla. Passou a pesquisar tratamentos experimentais, terapias, tudo que pudesse ajudar Ricardo. Criou-se entre eles um tipo de pacto: iriam lutar juntos, ele iria se submeter aos tratamentos e ela iria descobrir todas as novidades a respeito. E assim foi.