BIOGRAFIA RICARDO FONTOURA - "HOMBRE, TU ÉS UM FENÔMENO!"
Em 1978, Ricardo era um jovem de seus 27 anos. Engenheiro formado, dono de construtora em Belo Horizonte e já casado com Myrinha. Seus sonhos estavam a mil por hora, assim como sua vontade de trabalhar e construir uma carreira. Com tudo isso acontecendo, ele também tinha ambições de conhecer o mundo, se divertir.
Não gostava de escolher entre trabalhar loucamente e ser um bom vivant. Ele escolhia o meio termo: trabalhava muito, mas também reservava tempo para curtir seus prazeres. Não gostava de escolher entre ser um homem de família e um homem que viaja com os amigos pelo mundo. Conseguia conciliar tudo na mesma viagem: iam todos juntos.
Os cunhados Raul e Gustavo praticamente foram promovidos a irmãos. Estavam sempre juntos. Iam a Goianésia juntos, andavam pelas fazendas, iam à praia, a barzinhos, a festas. Juntos, discutiam planos para o futuro. Juntos, falavam sobre a vida. Eram inseparáveis. Desde que se conheceram e assim foram até a morte de Ricardo.
Todos estavam casados. Raul com Fátima, Gustavo com Cristina, Ricardo com Myrinha. Se tornaram um sexteto. Juntos fizeram várias viagens. Uma das mais emblemáticas delas durou 45 dias. Foi um tour pela Europa, partindo de Portugal até a Itália. De carro. Foi uma aventura ao estilo mochileiro, mas com alguns confortos a mais. E alguns desafios quase instransponíveis.
Em Lisboa, ao desembarcarem, comerem pastel de Belém e guardarem as malas no hotel, já trataram de iniciar a logística da aventura. Precisavam de um carro grande, para abrigar seis pessoas e muita bagagem. Conseguiram uma minivan. Fizeram os acertos com a empresa de aluguel de veículos e combinaram assim: os três homens iriam se revezar no volante. O casal que estava no terceiro banco podia beber tranquilamente durante a viagem. O do meio, era o próximo a assumir o comando do carro, então até poderia beber, mas com moderação. E os da frente, naturalmente nada de álcool. Sinal vermelho para os da frente, amarelo para os do meio e verde para os do fundo. E assim iam fazendo o revezamento.
De Lisboa, pegaram a A1, a Autoestrada do Norte. Uma viagem de pouco mais de 300 km por paisagens tão lindas que doíam os olhos. Por um momento, sentiam que estavam fazendo uma viagem no tempo ao se deparar com castelos, monumentos de séculos atrás. Algo que não existe no Brasil.
O grupo ia parando no caminho para apreciar, conhecer e desfrutar das paisagens. Em Sintra se encantaram com as fachadas coloridas, dignas de um conto de fadas. Palácios sobre as colinas também mereceram uma parada e várias fotos. Ricardo, que era um entusiasta de estar diante do desconhecido, fazia questão de comentar sobre a arrojada engenharia dos casarões próximos ao famoso Palácio da Pena, que é uma das maravilhas de Portugal.
A próxima parada foi na pacata vila de Óbidos, uma cidadezinha do século XIII, que é protegida por muralhas medievais, ao estilo de um castelo. Os que estavam no banco de trás do carro tiveram o privilégio de experimentar a famosa Ginjinha, um licor de cereja muito famoso por lá. A sensação que tiveram é que o tempo parou no lugar, que era quase literalmente uma volta à Idade Média. Sentia que habitavam um pedaço da história e que, apesar do figurino, eram personagens daquele local, onde o tempo esqueceu-se de passar.
Carro de novo na estrada e todos maravilhados com as paisagens, com o contato com o povo, grupo em êxtase. Poucos quilômetros depois e já estão em Nazaré. Como estão exatamente para conhecer tudo, param e se maravilham com a cidade, que está praticamente dependurada sobre um penhasco. De lá observaram as famosas ondas gigantes, consideradas as maiores do mundo, um local para os surfistas mais ousados apenas. É uma contemplação diferente do oceano Atlântico, em sua forma mais brava, mais violenta.
Pé no acelerador novamente e aos lados da estrada novas paragens se abriam para os olhos encantados do grupo. Na cidade de Alcobaça, fizeram uma parada para contemplar o Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça. Lá descobriram os túmulos de Dom Pedro I e de sua amante, Dona Inês de Castro.
O grupo parou também na conhecida cidade de Coimbra, famosa por suas universidades. Construções do século XIII se misturam aos ares jovens da cidade, algo que chamou bastante a atenção do sexteto. De Ricardo em especial.
Em Aveiro, conhecida como a Veneza de Portugal, o grupo fez uma das mais prazerosas paradas. Além da beleza e do encanto para os olhos, é uma cidade que oferece prazer culinário bastante forte, especialmente na área de doces. Como ninguém é de ferro, o grupo se esbaldou com as delícias do local.
Mais um pouco de asfalto e, enfim, chegam à cidade de Porto. Um merecido descanso no centro histórico da cidade, para depois visitarem alguns palácios e, claro, os vinhedos, com toda a cadeia de produção de um dos mais famosos vinhos do mundo. Ricardo, que sempre gostou de vinho, acabou criando a partir desta viagem, uma paixão imensa pelos bons vinhos. Não chegou a ser um especialista, mas se interessava muito em saber tudo que podia sobre vinhos. Essa viagem talvez tenha sido um catalisador para a formação deste prazer nele.
Depois de dormir em Porto, o sexteto rumou para Algarve. Fizeram a volta, mas por outra estrada, passando por fora da via costeira. É um lugar que marcou Ricardo para sempre. Por vários motivos. Estava na companhia de pessoas que amava e vivia uma aventura que sonhava fazer desde criança. Toda aquela exuberância das ilhas desertas, das praias, do santuário de aves, da serra, em um mar de tirar o fôlego, tudo isso criou nele uma memória afetiva que nunca foi apagada ou substituída.
Superando a vontade de ficar para sempre em Algarve, o grupo seguiu viagem e cruzou a fronteira com a Espanha. Conheceram a Andaluzia, Catalunha, com direito a parada em Barcelona. Ricardo se encantou com a arquitetura exata da cidade. Parceria obra saída da cabeça de um engenheiro. É uma cidade bela, encantadora, mas ao mesmo tempo prática, com traços bem retos.
Exatamente o contrário de Sevilha, capital da Andaluzia, que é composta por ruas estreitas e sinuosas, como um verdadeiro emaranhado. Quase um labirinto de vias de pedras e blocos de concreto. As ruas não concordam umas com as outras. Talvez resida aí o seu charme.
Quando estiveram em Sevilha, Ricardo era o motorista da rodada. Precisavam de uma informação. Como ainda não havia GPS nos carros, recorreram ao meio mais eficiente que sempre existiu: perguntar a alguém na rua. O escolhido para indicar o local foi exatamente um bêbado, que estava por ali, vagando. Ele não soube explicar direito, mas se dispôs a entrar no carro e conduzi-los até o destino.
Ricardo, que sempre foi um motorista muito hábil e confiante, ignorou completamente os becos da cidade e pisou no acelerador como se não houvesse amanhã. Parecia um piloto de Fórmula 1 no desafiante GP de Monte Carlo. Acelerava nas curtas retas e reduzia com muita habilidade para conseguir fazer as curvas, nem sempre coerentes da milenar cidade espanhola. A cada curva feira, o bêbado ia se apavorando, ficando aflito. O grupo, claro, se divertia.
Por algum momento, o perigo daquela corrida, quase curou o bêbado da embriaguez. Ele parecia bastante concentrado em, ao seu modo, se agarrar à vida. Ricardo, notando a situação, se sentia autorizado a aumentar a velocidade e dirigia ainda mais no limite, já quase cruzando a fronteira da insanidade. Era uma brincadeira perigosa para todos. Mas acabou dando certo, chegaram até o destino. Ao descer, o bêbado, mais tonto ainda por causa das curvas, fechou a porta do carro e exclamou em voz alta: “Hombre, tu és um fenômeno!”, se dirigindo a Ricardo e às suas habilidades como motorista.
Aquela frase ficou eterna no momento em que foi pronunciada. Durante todo o resto da viagem, ela era colocada em qualquer conversa, independente do contexto, para gargalhada geral. Ricardo ficou sendo o fenômeno. Quanto ao homem que a disse, nada mais se soube dele, nem seu nome nem seu destino. Mas os dois ficaram ligados para sempre. A frase teve peso de fotografia, que não deixa envelhecer o momento e o deixa tão novo como um quadro que acaba de ser pendurado na parede.