Prévia do livro: Um dia de cada vez memórias de uma família (Sobre Fábio Borges, o autor deste livro)

Sobre Fábio Borges, o autor deste livro

Avô Juca Sertório tinha um amor profundo pela filha caçula. Ao descobrir que ela ficaria noiva, avô reuniu-se com os namorados e ofereceu-lhes um lote para a construção da morada. Eles ficaram surpresos e muito felizes, gratos pelo presente. Empenhados e perseverantes, em pouco tempo ergueram uma singela casa.

Nos anos setenta, casaram-se no civil e na igreja. Após o casamento, houve uma festa feita pelos avós maternos. Ganharam muitos presentes. Ocorreu, todavia, um acidente doméstico. Ao juntar os presentes, Madalena passou na lateral da cama com meia dúzia de taças, tropeçou e caiu, quebrando todas; por sorte não se machucou, levantou-se, varreu os cacos de vidro e jogou na lixeira. Juntaram o resto dos presentes, foram levados para a casa nova.

Vivem uma vida conjugal ótima e planejam os objetivos, criam soluções para os obstáculos da vida; para alegrar e completar o casamento, resolvem ser pais.

Com o passar do tempo vem uma notícia: Madalena está grávida de 2 meses; os dois ficam muito felizes, dizem que a gravidez é mais uma aliança para adoçar a vida.

Na década de setenta, a medicina no interior mineiro era muito atrasada, pois não havia equipamentos específicos para as gestantes.

Em um diálogo, avó Maria Boaventura insiste que Madalena fique atenta aos cuidados médicos pelo fato de que a intuição dela era muito forte. Disse à filha que o médico era alcoólatra: “Minha filha, o doutor é nosso vizinho e percebo que vai sempre ao hospital bêbado. Isso não é bom”.

Com essa informação, surgiu um certo pessimismo quanto à gravidez, mas não havia opção de ir a outro médico. Por isso, continuou fazendo os cuidados preliminares e o pré-natal.

Certo dia, ela vai ao hospital fazer uma consulta. Chegando lá, o referido médico faz um relatório equivocado, atestando estar na hora do parto. Ela respondeu que não estava sentindo coisa alguma. Ele afirmou que o bebê estava sentado e que ela deveria ir para a sala de parto.

Emocionada e desconfiada, ela começou a entrar em desespero. O médico pediu que as enfermeiras a levassem à sala de parto e preparassem os instrumentos cirúrgicos. Ela disse às enfermeiras que ainda não havia chegado o momento do parto. Subordinadas, elas atendem o pedido do médico, levam-na para a sala de parto e começam a prepará-la para a cesariana. Deitada, ela se lembrou da mãe e começou a ficar desesperada. Ao fazer o procedimento para o início do parto, o médico percebeu que a paciente estava certa, pois não havia chegado o momento. Em vez de uma criança sentada, havia gêmeas prematuras.

Como já foi dito anteriormente, na época não havia equipamentos para receber bebês prematuros. Após dois dias do parto, os bebês faleceram sendo velados em casa. A mãe deles não pôde assistir ao velório e ficou no hospital, resguardando-se e muito abalada.

Com o passar do tempo, o jovem casal não desistiu do sonho de ter filhos e ambos se conformaram com a perda trágica das filhas.

Meu pai era marceneiro de mão-cheia, então sua esposa pediu-lhe que fizesse berço, cômoda, chiqueiro, tudo de madeira de lei. Alguns meses depois da tragédia, ela ficou grávida novamente.

Meu pai não conseguiu controlar as emoções e se refugiou na bebida, quase enlouquecendo minha mãe por causa disso.

Passados nove meses, nasceu Karla, uma menina sadia. Dois anos depois, veio Rodrigo, depois Vívian, depois Fábio. A família passa por uma fase difícil. Meu pai se perdia nos bares da cidade natal. Ganhava pouco mais de salário mínimo, bebia diariamente, e minha mãe costurava para sustentar todos da casa. Deixava Karla com minha avó e também com Sebastião, Beato, aposentado, cabeleireiro, padrinho da menina. Com o passar do tempo, Rodrigo não suportava mais a bebedeira do pai e se asilava na casa de sua avó, sentindo-se mais seguro. Sebastião colocou uma cama em seu quarto para Rodrigo, recebendo-o com amor e carinho. Ficamos Vívian e eu morando juntos.

No momento em que meu pai chegava ao lar, minha mãe partia para cima dele com palavras ofensivas. Ele, bêbado, sem medir sua força física, a agredia.

Ao perceber que os atritos só estavam aumentando, o casal resolveu mudar-se para um local distante da residência de meus avós. Arrendaram uma casa em um bairro distante, mas a fuga geográfica nada resolveu, pois, o problema só aumentava.

Meu pai trabalhava na marcenaria do Sr. Rodolfo, na Rua Rio Grande do Norte, no bairro Cristo Redentor. Para chegar ao trabalho, ele tinha de andar 7 quilômetros de bicicleta. Na volta do trabalho, antes de chegar a sua casa, ele ia a um bar num imóvel que minha avó Maria Boaventura alugava com fins comerciais, ao lado de sua casa, no bairro Lagoa dos Japoneses. Minha mãe ficava esperando o marido, de olho no relógio, calculando a hora da chegada dele, que costumava ser às 21 horas. Minha mãe tinha medo de que pudesse acontecer algo a meu pai e ligava para avó para saber se ele estava no bar. Mãe dizia que, como era casada, tinha de ir até o fim, tentando preservar a relação e encontrar solução para os problemas. Já que um adicto adoece toda a família, ela pensava ser necessário ter habilidade para dar fim a essa dependência.

O tempo passava e não se resolvia nada de positivo. Várias tentativas foram feitas: ida aos AAs, compra de livros, etc. Por eu ser o caçula, minha mãe pediu que eu conversasse com meu pai. Quem sabe ele ficaria sensibilizado e pararia de beber? Ela não desistia de seus sonhos, mesmo sabendo que o vício era crônico, progressivo e fatal. Num determinado momento de reflexão, tomou consciência de sua dependência e dos transtornos que lhe causava a bebida. Mesmo tendo vontade de dar fim ao vício, bebia de golada em golada. Como filho, percebo que o tempo jamais volta, por isso temos de fazer bom uso dele. É importante trabalhar nosso eu diariamente em busca de uma vida digna e com coragem e habilidade para solucionar os problemas. Antes sofrer sem a bebida do que com ela. É triste ver crianças convivendo com esse drama do alcoolismo em casa.

Com muita aceitação, meu pai começou a ouvir em silêncio os conselhos e desabafos de minha mãe. Com essas mensagens, foi-se formando uma consciência, com oscilações de sanidade e insanidade. Um pouco de amor-próprio e percepção do que é certo e errado, além da força de vontade, é possível livrar-se dos horrores da adicção. Há uma frase que diz que “um adicto sozinho é um grande perigo”.

Meu pai foi a algumas reuniões dos AAs. Quando um adicto ouve os outros e percebe a recuperação deles, surge um poder maior que tudo. Quando meu pai viu coincidência e milagres acontecendo nas vidas dos companheiros, a aceitação transformou-se em confiança. O processo de acreditar no que via e ouvia deu-lhe autoconfiança e devolveu-lhe a sanidade.

A força para agir veio dessa crença. Precisou aceitar esses passados para começar a trilhar o caminho da recuperação. Quando a crença esteve fortalecida, estava preparado para a recuperação e felicidade. Essa oscilação de crença é comum na adicção. Muitas vezes, meu pai tinha confusão mental, com recaída comportamental, mas voltava mais forte. Não se deve cair no desespero, pois essas características fazem parte do início do aprendizado de recuperação. Já que esse aprendizado é infinito, não podemos ter o comodismo de pensa que tudo está na normalidade. Para haver progresso, temos de procurar solucionar os problemas, sem medo das labutas, árduas, mas é assim que progredimos na recuperação. Fazer a oração da serenidade é de suma importância para aceitar as labutas e encontrar a coragem para colocar em ação e ter sabedoria para distinguir uma luta da outra.

Na totalidade, assim diz a oração: “Deus, concedei-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar e coragem para modificar aquelas sendo possíveis, além da sabedoria para reconhecer as diferenças”.

Quando ele voltou ao programa da irmandade dos AAs, decidiu novamente entregar a vida aos cuidados do Poder Superior.

Essa rendição alivia a carga do passado e o medo do futuro.

Junto aos companheiros, teve a perspectiva adequada da dádiva do hoje. Aprendeu a aceitar e apreciar a vida como ela se apresenta agora. Quando se negou a aceitar a realidade do hoje, estava fugindo da crença em seu poder maior, e isso só poderia trazer sofrimento maior.

Aprendeu, também, que, sem dúvida alguma, o hoje é um milagre. Com isso na consciência, não há lógica em se agarrar ao passado.

Quando se focaliza o pensamento no hoje, surgem as verdades, e isso simplifica a vida. Exercitando sem cansar o trabalho na imaginação sobre o hoje, o pesadelo do álcool desaparecerá, surgindo o amanhecer de uma nova realidade.

Partilhando o passado com outro, descobriu que, quando estava com problemas, podia confiar no sentimento a outro adicto em recuperação, mostrando o passado a um companheiro.

Com o Poder Superior e seus companheiros e sabendo da força de vontade de parar de beber, dá nova esperança à família para voltar para casa, em frente à Lagoa dos Japoneses, perto da casa dos pais maternos. É o início de uma nova vida, o “reset” e o alívio da alma.

Meu pai começou a experimentar momentos de puras novidades. Provavelmente não foram contínuas. Houve instantes em que conseguiu utilizar a atenção para estar presente na vida com a família. Surgiram momentos em que temeu que voltassem à sua mente ideias como “Isto é chato”, “Não estou fazendo isto corretamente” ou “Preciso tomar uma aula de terapia ocupacional para me entreter”. E voltaram as ideias sobre a vida, um vazio por dentro. Só quem passa pela abstinência sabe da dor desse vazio existencial. Tudo fica cinza, sem graça, perde-se o sentido de viver. Com muita força de vontade, fé no Poder Superior, esperança e apoio da família é que se consegue ficar de pé por muito tempo e livrar-se da recaída.

Com dedicação à família, o amor renasce. Passados quatro meses em que estava limpo, antes da volta para casa, surge uma nova recaída. Minha mãe resolve interná-lo novamente, com a aceitação dele. No dia em que fomos visitá-lo, ele se sensibilizou bastante. Em estado de abstinência, chorou, abraçou-nos a todos e disse: Olhem, meus filhos, prometo parar com o uso de bebida alcoólica, mas lhes peço um pouco de paciência comigo, pois estou doente. Amo vocês. Vou parar de fazer o uso só por hoje. Em nome do Poder Superior, vou carregar o “só por hoje” diariamente para viver melhor com vocês, meus amores.

Surgiu uma felicidade no rosto de todos nós. Seguindo a ideológia de minha mãe, eu disse: sei que o senhor sairá desta, meu querido pai. Sabemos ser apenas o começo de uma recuperação. Não se precipite. Tenha calma. Nós o amamos.

Vencido o horário da visita, todos nos despedimos emocionados, desejando-lhe boa recuperação.

Naquele instante de retrospectiva ao passado, surgiu um “flash” na cabeça de meu pai sobre a adicção e o tamanho da desgraça que causou à nossa família. Percebeu que o tempo passava, os filhos crescendo, e ele não participava disso. A consciência e a abstinência trazem sentimentos de culpa, medo, raiva, vazio profundo e outros de quem tem amor pela família. Ajoelha-se no chão, conversa com Deus. Depois da oração, deita-se, fica relaxado e começa a ter uma melhor expectativa de recuperação e de uma vida melhor.

No dia seguinte, o psiquiatra vai ao quarto de isolamento de doentes orgânicos e inorgânicos. Estes são fechados com grades semelhantes às de uma penitenciária. O médico vê os pacientes e leva uma mensagem de amor aos internos durante cinco minutos. O curioso é que o médico está fora de seu tempo de serviço, fazendo um serviço voluntário para os adictos em recuperação. Primeiro a dirigir-se aos colegas é Lázaro, que se apresenta com o formato sugerido pelo psiquiatra: “Eu sou Lázaro, mais um adicto em recuperação. Várias vezes entreguei minha vontade e minha vida a um poder destrutivo, ambas controladas pela bebida. Fui tomado pela satisfação imediata que a bebida me trazia. Durante todo esse tempo, a alma, o corpo, a mente e o espírito foram dominados pelo álcool. Por algum tempo, isso me ofereceu de volta um prazer momentâneo, mas a euforia começou a desaparecer, fazendo-me sentir o lado horrível e obscuro da adicção. Na caminhada, tive de optar entre duas escolhas: sofrer sem as bebidas ou sofrer usando-as. Usando-as, terei muitos problemas; na abstinência, tenho habilidade para solucionar os problemas. Então, ao sair do hospital, quero optar pela abstinência para atingir o progresso. Agradeço por vocês me ouvirem em silêncio e tenham ótimas 24 horas de sobriedade”.

Depois falou outro: “Sou o Bruno, mais um adicto em recuperação. Eu me identifiquei com o companheiro quando entrei em um grupo que eu passei a frequentar. Lá fora, li uma literatura do grupo de AA que diz assim: ‘Na ativa, vivia para usar e usava para viver’. Cheguei à conclusão de que, após ler essa literatura, sou escravo das bebidas alcoólicas e drogas. Esses são alguns fatores que me levam a ter o desejo de estar limpo. Quando vejo o lado obscuro da adicção, eu me fortaleço mais e mais para sair deste sofrimento, pois é falso que sentirei prazeres nos martírios que as drogas me trazem. Não entendo que, mesmo tendo essa compreensão, sempre tenho recaídas. Meu corpo e minh’alma já estão tomados pelas drogas. Infelizmente não consigo me manter limpo fora dos internatos. Eu me cansei de ver minha mãe e a família sofrerem com meu problema. Meu tempo de falar terminou. Tempo é disciplina. Agradeço a todos por me ouvirem e desejo que tenham um ótimo dia”.

Estava franca a palavra por cinco minutos. “Sou Caio, mais um adicto em recuperação. Fazia 6 anos que eu permanecia limpo nas ruas. A tentação e a obsessão me fizeram quebrar a ficha. Fui a uma festa de aniversário de minha irmã, com minha esposa e filhos. Lá havia um punhado de adictos usando bebida alcoólica. A maioria era meus sobrinhos. Ofereceram-me um gole de vinho. Eu me recusei a aceitar, mas, devido à grande insistência deles, eu aceitei e acabei tomando uma garrafa desse líquido. Minha esposa e filhos ficaram amargurados com minha recaída. Hoje, encontro-me com dificuldade para controlar minhas compulsões, ansiedades e desejos. É muito complicado subjugar meu querer, sendo de sentar-me em uma cadeira ou deitar-me em uma cama quando me vem a vontade de beber ou usar drogas. Enquanto estou decidido, fico aguardando uma resposta. Por várias vezes, atrapalho o curso da vida, pois teimo em misturar a ordem dos acontecimentos. Nem tudo na vida é 8 ou 80. Há um meio-termo aí. Então, rogo a Deus que me ajude a ter equilíbrio e sabedoria para dividir o tempo com atividades produtivas, no dia a dia, para eu evitar o desejo do uso e resgatar os sentidos de viver o hoje. Segundo Mestre Aurélio, intuição é a apreensão direta ou indireta de uma forma não racional. Percebe-se algo de forma imediata, sem depender do racional. É também chamado sexto sentido, “feeling”, palpite, pressentimento, impressão. Percebo que, se continuar neste desequilíbrio, o que me restará é a morte. Obrigado por me ouvirem em silêncio”. “Eu sou Magaiver, mais um adicto em recuperação. Há algum tempo, tinha o desejo de parar de usar drogas e bebidas, mas deixei para depois esse dia. O tempo passava, e eu não conseguia. Minha dependência trazia muito sofrimento à minha mãe. Cheguei a um ponto em que só Deus poderia me ajudar. Eu não tomava banho, dormia nas ruas, onde urinava e defecava. Fui excluído da sociedade, perdi as forças para caminhar e me comunicar com as pessoas. Agora, de hoje em diante, tenho de fazer um bom uso do tempo. Peço a Deus esperança, força e coragem para viver com dignidade. Chega de sofrer com os horrores da adicção. Obrigado a todos por me ouvirem em silêncio”.

Findo o momento dos depoimentos, o médico pediu que todos se levantassem e fizessem a oração de costume dos Narcóticos Anônimos, a “Oração da Serenidade”: “Deus, concedei-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar aquelas que posso e sabedoria para reconhecer a diferença”.

No dia seguinte, meu pai recebeu alta médica. Ao chegar a sua casa, no bairro Jardim Recanto, decidiu ir à casa dos sogros para buscar minha mãe. Chegou de surpresa e encontrou todos na sala de estar. Ficamos emocionados ao ver meu pai alegre e com alguns quilos a mais. Avô lhe dá os parabéns por estar limpo.

Tio Sebastião dá conselhos sobre como controlar os desejos de uso. Meu pai agradece, dizendo que aceita esses conselhos com prazer e gratidão, pois, fora do hospital ou instituição, é preciso ter cuidado para se livrar da recaída. Eles são bons para ajudar a formar ideias e pensamentos conscientes, ainda mais que tio Sebastião era um adicto em recuperação.

Após uma grande prosa, resolve ir embora. Avô José Leandro Borges achou tão bom ver meu pai e pede para ficarmos mais um pouco, mas a noite se aproximava, e tínhamos medo da falta de iluminação nas ruas, que eram de cascalho, principalmente o morro da Avenida Brasil, apelidado de “morrão”. Ao mesmo tempo, todos os netos disseram ao avô que estavam com medo da escuridão. Três dias após sair do hospital, cheio de planos, pois voltou à casa onde existia amor, meu pai recaiu novamente. Minha mãe foi ao bar do Sr. Coimbra, perto de casa, para buscar meu pai. Pediu-lhe que parasse de beber. Com educação, ele pediu desculpas e saiu calado. Quando íamos embora, meu pai teve uma ideia maluca de colocar Vívian e eu na bicicleta. Minha mãe esbravejou e tentou proibir, pois, a presença do álcool no organismo nos faz perder o equilíbrio. Com muita teimosia, meu pai continuou. Não passamos de 100 metros, e a bicicleta foi ao chão. Caímos no cascalho, mas, por sorte, tivemos apenas algumas escoriações.

Desesperada, minha mãe se apressou em nos socorrer. Ela faz uma oração, conversa com Deus, diz que tudo aquilo parecia um pesadelo que não tinha fim, solicitando ao Senhor ajuda para a família, pois o salário não cobria as despesas mínimas da casa e, com a recaída, nada sobraria. Ela afirmou que não tolerava mais comer mingau no almoço, no jantar e nos cafés do dia.

Voltando ao acidente, esse tombo foi um alerta. No outro dia, em abstinência e com ressaca moral, lembrou-se do perigo em que nos colocou. A 200 metros do local há um morro íngreme. Se tivéssemos descido por ele, algo mais grave poderia ter acontecido, pois, ali já haviam morrido muitas pessoas.

Em nossa vida, a bebida alcoólica é um tormento. Com o passar do tempo, os adictos se acostumam com a ideia de admitir a impotência diante desse mal. O Poder Superior permitiu a meu pai, no momento em que estava limpo, ter consciência de seu inventário pessoal. Dizer a si mesmo que, se guardar esses defeitos por dentro, o vício volta a atacar.

O desapego ao passado possibilita nova maneira de viver. Percebendo o tamanho dos benefícios de manter um inventário pessoal, meu pai mantém uma posição mais firme em relação à sobriedade. Dessa vez, ele faz anotações só para se tornar consciente do que está acontecendo. Quando percebe o que acontecia por dentro e por fora enquanto bebia, compreende que alguns padrões antigos o controlavam. Uma ligeira olhada nos inventários mostrou-lhe claramente o que lhe despertava o desejo de usar e o que o tranquilizava. O inventário também o fez deixar de criticar o que fazia e organizar um compromisso consigo mesmo.

Se pode sentir uma passagem de não usar e ainda sofrer o ataque de desequilíbrios do vício, é tempo de investigar algumas opções habilidosas. Ao estar tão próximo de abrir mão do comportamento passado, é tempo de usar as informações passadas, reunidas para serem úteis depois da passagem de uma onda do vício. Lembrar-se de que ser viciado não o fará sentir-se melhor. É de fundamental importância não usar a energia nesse momento de julgar as produções literárias de um comportamento. Em vez disso, perguntar a si mesmo de que verdadeiramente ele necessita, nessa condição. Mais uma vez, trata-se de ouvir tudo aquilo que tem necessidade de ouvir, e não o que quer. Suas necessidades mais prementes lhe abrem a mente para o conhecimento interior e da forma como meditar para ter equilíbrio, em vez de problemas. Lembra-se de que age sempre de forma impensada, está em busca de uma satisfação temporária e a ligação que o vício lhe traz. Como obter esse prazer e uma satisfação sem essas ligações? É isso que se pergunta, nesse momento, do que verdadeiramente precisa.

Na maior parte das vezes, no tempo em que está próximo de não ceder ao vício, a opção mais inteligente é afastar a atenção e evitar outras coisas. Logo após perceber isso, descobre que consegue escolher outras formas de prazer. Também percebe que, na vida, há muito mais coisas boas que ruins. É importante desviar a atenção para os anseios naturais da vida. Por exemplo, pescando, escrevendo, restaurando móveis, plantando hortaliças, olhando a natureza, desejando um bom-dia ou mesmo demonstrando gratidão e generosidade.

Com toda essa nova maneira de viver, meus pais, Vívian e eu resolvemos voltar à casa que a família construiu. Depois de uma conversa com tio Sebastião, meu pai, descontente com o salário, resolve não mais trabalhar para o Sr. Rodolfo. Minha mãe deu a meu pai uma ideia genial: que ele montasse uma restauradora de móveis, ao lado da casa onde há um salão de cabeleireiro, cuja última moradora foi tia Sinhazinha. Então, meu pai solicitou ao tio Sebastião que lhe realizasse esse anseio de empreender a restauradora. O pedido é aceite. Cede-lhe a casa, sendo um chalé de adobe, um imóvel simples, mas o suficiente para dar a oportunidade de trabalhar e sustentar a família. Na casa de avô, em uma reunião na sala de estar, tio Sebastião diz o seguinte: “Lázaro e Madalena, sou solteiro, não tenho filhos, vocês são minha família, então não se sintam incomodados de trabalhar lá. Podem trabalhar por tempo indeterminado. Não farei nada por escrito, mas, em minha falta, o imóvel pertence a vocês. Não percam tempo. Peguem a chave do chalé, limpem seu interior e coloquem uma banqueta para colar e raspar os móveis sobre ela”.

O mais interessante é que me recordo de tudo, pois estava sempre ao lado de meus pais e de tio Sebastião, ouvindo as negociações. Muito feliz com tudo isso, peço que seja feito um raspador, pois quero ajudar com meu trabalho.

No primeiro dia de trabalho, tia Maria, irmã de meu pai, pediu um orçamento sobre um serviço. Satisfeita com o preço, tornou-se a primeira cliente da restauradora. Com o passar do tempo, aumentava a clientela. No final do mês, multiplicou-se o salário que antes meu pai recebia. Com medo de mexer com o dinheiro que ganhava, meu pai entregava a minha mãe o controle financeiro. Ela tornou-se tesoureira e administradora da firma. Ambos resolvem fazer mais dois quartos, uma varanda e uma meia-água. Os pedreiros eram parentes, mesmo eles sendo adictos. Daniel, pedreiro, casado com uma sobrinha, irmã de Netinho (nome fictício), o servente, este aposentado pela PE do Distrito Federal, muito trabalhador.

Ao terminar o trabalho em nossa casa, Netinho resolveu fazer um prédio sozinho, levantar a parte de baixo do primeiro andar do prédio, as lojas e, no fundo, uma meia-água onde moraria com a família. Tinha vários planos. Um deles era montar uma empresa de correios para a filha mais velha. Montar correios é muito burocrático e demorado. Habilidoso e perseverante em empreender, Netinho resolve alugar uma das lojas e, na outra, montar locadora de videogame Nintendo para o filho caçula administrar, enquanto conseguia liberação do correio.

Meu prezado leitor, esta parte é triste e chocante. A filha mais velha de Netinho sai sem nenhuma autorização dos responsáveis, num momento que Netinho estava garimpando, ofício que herdou de avô Juca Sertório.

Ao voltar para casa, com forte efeito de bebida alcoólica, não encontra a filha NMC. Alguns minutos depois, ela e uma amiga chamada Marta chegam drogadas, como de costume, e se dirigem à casa do fundo para pegar os colchões em que dormiriam, no cômodo do correio, onde provisoriamente funciona a locadora de videogame. Netinho impõe sua hierarquia, não permitindo que dormissem lá, pois chegaram depois de 23 horas. Inconformada com a atitude do pai, pensa alto e fala da maldita hora em que chegaram juntos ao mesmo local. Netinho ficou nervoso pela forma com que a filha expressou seus sentimentos conturbados e equivocados e decidiu dar-lhe uma correção, com apenas um tapinha. Não gostando da correção do pai, NMC pede à sua amiga, Marta uma faca de açougueiro. Ela vai à cozinha e pega uma faca que havia sido afiada no mesmo dia por um açougueiro, a pedido de Dina, mãe de NMC. Marta entrega a faca a NMC. Dina tenta apartar a briga, porém, sem êxito. Indignado com as provocações da filha, Netinho passa-lhe mais um corretivo verbal. Então, a filha desfere uma facada na barriga do pai, a qual não foi o suficiente para derrubar Netinho, que tinha 1,83 m. NMC consegue dar-lhe uma sequência de facadas. Segundo o laudo da polícia, a facada fatal foi na virilha, atingindo a artéria femoral.

Fica aqui uma pergunta: há alguma justificativa para uma filha matar o pai, por ele querer colocar regras na própria casa? Será que o crime não se deu por motivo de herança, já que o pai tinha um seguro de vida da PE? Ele não foi premeditado, pois, NMC havia dito à família que mataria o pai pelo fato de ele ser ríspido? Será que o crime tem algo a ver com a adicção e a codependência de NMC?

Depois dessa lamentável tragédia, voltamos à história pacífica. Seguindo todas as estratégias planejadas por meus pais, ele conseguiu ficar limpo por sete anos. Nesse tempo, consegue reformar a casa, comprar um fusquinha, renovar a carteira de motorista e, o mais importante, melhorar o afeto com a família.

Não se imaginava que, por trás da compra de um carro, a euforia estimulasse uma recaída. Meu pai estava muito satisfeito por adquirir o veículo e renovado a carteira, fato este que se deu na cidade paulista de Barretos, onde ele tem um histórico muito grande, na juventude. Chegando a essa cidade, bateu-lhe na cabeça um “flashback”: vários momentos de loucura e prazer da adicção ativa. Esquecendo-se de fazer o inventário pessoal e observar os estudos dos passos que tinha em mãos, esse descuido o fez ter uma nova recaída.

Todo passo a passo em que teve que fazer para renovar a carteira estava com ressaca. Contou com muita sorte e conseguiu o objetivo, finalizando todas as etapas.

Ao retornar a Patos de Minas, bebe na rodoviária de São Paulo quatro cervejas, pensando que ninguém desconfiaria, mas minha mãe, muito esperta, percebeu. Antes de chegar a Patos, ela percebeu a recaída de meu pai, pela dicção do mesmo, ao telefone; a voz dele estava um pouco mudada pela bebida. Nenhum adicto consegue esconder suas recaídas. Ao chegar à cidade, encontrava-se em abstinência, por dormir a noite toda. Minha mãe e nós esperávamos na plataforma, como se nada tivesse acontecido. Quando ele desceu do ônibus, nós o cumprimentamos, pedimos a bênção, o abraçamos e fomos direto para casa.

Ele toma um banho, mamãe faz o jantar, ele finge que come e joga fora toda a comida. Ele nos engana e procura um bar para rebater com mais cervejas. Quando termina, volta para casa, deita-se na cama e adormece. No dia seguinte, acorda com uma ressaca terrível, toma vários copos d’água para combater a sede incontrolável. Arrependido, faz outra retrospectiva do que aprendeu no tratamento. Volta novamente a consciência, com outras escolhas se não mudar completamente a velha maneira de pensar ou então continuar a usar. Percebe novamente que as velhas formas de pensar eram dominadas pelo medo, raiva, ressentimento, triângulo da auto-obsessão. O que prevalecia em primeiro lugar era o medo de ser rejeitado, de perder os clientes, ficar doente, passar por dificuldades financeiras, perder as coisas e a família. O sentimento de perda é uma realidade. Medo controla as próprias forças. Os primeiros tempos em recuperação não eram muito diferentes. Eram também o medo de controlar o pensamento. Ele perguntava a si mesmo: “E se eu estiver em abstinência, haverá muito vazio? E se eu não encontrar forças para ficar limpo e a sociedade na totalidade não gostar mais de mim?”

O medo por dentro pode ainda administrar o seu comportamento, interrompendo os riscos indispensáveis por se manter limpo e progredir.

Pode parecer mais simples renunciar à certeza de que vai faltar, desistindo antes mesmo de começar, em vez de aventurar-se tudo com base num entrelaçado de esperança. Essa categoria de pensamento apenas leva à recaída. Para se manter limpo, é preciso que haja boa vontade para transformar as velhas maneiras de pensar em boas maneiras de pensar.

Não se cansar de repetir e ver aquilo que organizou para outros adictos e para si mesmo, mas tem de estar animado a arriscar-se; é importante trocar as dúvidas antigas e hipócritas por novas afirmações de fé e expectativa. Ao fazer isso, ver que vale a pena arriscar-se. Começa outra nova colheita na vida de meu pai, sendo a recuperação em ação. Aí, sim, trará de volta tudo que irradiar.

É evidente que se nós fizermos o mal, o mal vamos receber; receberemos o bem se o bem fizermos. Em toda ação há uma reação. Deus nos deu a inteligência para discernirmos o que é certo ou errado, o famoso livre arbítrio. Ele nos ensina que temos a total liberdade para fazermos o que queremos, mas depois temos de arcar com as consequências.

O querer vem de dentro, mas só podemos receber se formos sábios de compreender que a droga e a bebida alcoólica são uma desgraça. Todos nós sabemos que o destino é o mesmo; só resta nos conscientizarmos de tudo isso.

Fábio Alves Borges
Enviado por Fábio Alves Borges em 19/09/2021
Reeditado em 25/09/2021
Código do texto: T7345909
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.