Victor

Junta coisas inúteis. Apaixona-se por molas, frascos, canetas, louça quebrada, capas de livros destroçados, pincéis velhos, cabeças de bonecos de plástico, todos os fios. Liga-os uns aos outros, mete tudo em caixas de madeira com porta de vidro e tem-nos, cuidadosamente expostos, como coisas de grande valor. Pintura/objecto lhes chama, homenagens a Marcel Duchamp e a outros que, sequiosos de notoriedade, expuseram antes dele coisas parecidas. As peças, disse-me, têm significados ocultos, poder que permanece mesmo quando as dispensam por velhice, incapacidade ou cansaço. Senti-las uma a uma, resgatá-las do monturo ou da indiferença, fazê-las conviver com outros elementos igualmente proscritos e tecer com todos uma nova realidade é tarefa sobejamente digna, a meu ver. - Esta é a pintura que faço, a arte que posso, o protesto permanente contra o capitalismo e a sociedade de consumo. Aceitam os trabalhos em exposições e todos têm preço alto. Designo-os por sacrários, relicários, amuletos. Não dão sorte nem azar, fazem meditar todos os que os olham com respeito e, como matéria inerte, não percebem o riso trocista de quem não é capaz de, ao menos, tentar uma leitura. Magoam-me a mim mas ganhei calos no espírito e faço de conta de não vejo. Chamam-me doido, mas aceitam-me como artista plástico. Um dia compraram uma das minhas obras. Perdi-a para sempre. O dinheiro? Dei-o a um orfanato.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 23/05/2021
Código do texto: T7262550
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