Intimidade
Tolero-me. Aprendi há muito tempo que precisamos ser generosos connosco. Qualquer que seja a visão podemos sempre melhorá-la suavizando o olhar. Como se faz isso? Ora aqui está uma bela pergunta que poderá ter imensas respostas. Não ver o pormenor, ganhar mais distância sobre o que se vê, ignorar ou fazer o cérebro não valorizar todas as imperfeições de modo a registar apenas as menores, as que podem ser tomadas por feitio ou carácter ou, ainda, naturalidade. Deste modo, não vejo um velho tinhoso ao espelho mas aquele senhor maduro, com algum “charme” escondido no sorriso, com a barba crescida e ar desleixado é certo, mas com um laivo meigo nos olhos tristes. Deito a língua de fora, observo os dentes, coço com o indicador o ouvido e lamento que o dedo não chegue ao tímpano que julgo ser o epicentro da comichão. Carrego a água que posso nas mãos em concha, lavo o rosto, seco-o na toalha bordada que me apetecia dizer de mau gosto mas que, distanciando-me, me parece apta para a função, logo capaz de servir, aconchegante e confortável se evitarmos a rosa verde feita a ponto cheio por alguma máquina que nunca viu rosas. Há máquinas perversas que são isentas de qualquer culpa e a toalha de rosto não passa disso mesmo. Já o homem ao espelho, ali tão à beira da tristeza, basta que se afaste e se não veja para deixar que o ego cresça, tome foro de cidade e se perceba alguém muito interessante. Há quem, para se manter feliz, deteste os espelhos, os pelos rebeldes das sobrancelhas, o mau hálito, a camisa de risca larga que acha pirosa mas tem de usar para não a magoar. Há sempre muito tempo para ficar a sós, digo-me e, sem curar de ver minudências, penteio-me com os dedos e considero que ainda sou um belo homem.