Liberdade
Posso. Vim de lá. Despi a pele escura e sou negro por dentro, a lembrança da guerra, das leis, da vigília no denso das noites com dentes e garras, com tiros e festas, com a memória de dores que vinham misturadas ao calor da terra e à fome. Apaguei tudo para não voltar no tempo e sentir de novo a morte nos caminhos, o medo nos teus olhos, o rouco som de respirações atropeladas, os gritos mudos, as conversas veladas, o tanto que havia para andar, ficar, viver à margem os lugares e a diferença. Depois que foi proibido era eu a transgressão, a voz dissonante, a rebeldia. A esta distância de mim traduzi tudo por vontade. Fui sempre o que quis, nunca senti lei alguma a definir comportamentos e espaços e se me apontavam o inferno, o fogo, a cadeia, apenas refinava o cuidado para continuar a fazer, para ser vermelho aberto, sangue ainda, corpo sempre. A palavra já morava em mim sem que soubesse. Escreviam-na todos os que receavam esquecer, todos os que precisavam aprender, os que tinham terror de saber a liberdade. É mais manso cumprir, não pensar, ser tudo o que diziam e esperavam os donos. Nunca aceitei recados, conselhos, pecados, comandos. Uma parte de mim recusava, não queria, não cumpria e, por isso mesmo merecia ser preso, amarrado, detido longe, mas quem de fora me visse não percebia que era eu que a escondia a ela, no rasgar do tempo.