Eu
Ainda há instantes não estava. Mergulhado num sono profundo era tudo o que não sabia, nunca tinha vivido, como se estar fosse o lado estranho de mim, o lugar fundo, o passear por campos lisos como se a terra e a vegetação fossem a lisura possível de uma crença. Somos sempre tudo o que acreditamos ser. Até há pouco não existia, ou estava sem ver, sem ouvir, sem ser. Pedra seria, água fria, gelo onde só o murmúrio sonolento da água sólida, se percebia na brancura geral. Branco sobre branco, ausência, afinal. Depois, aquecido o sangue, acordada a pele, esfregados os olhos para chamar o mundo, acordei. Sou agora eu inteiro, palavra escrita, fogo aceso, boca muda, a haste que se fez tronco, a carne a pulsar, a voz do outro lado iluminado da sede. E começo tudo outra vez. Como se aprendesse. Passo a passo, sons baixos que geram os gritos que sufoco, a dor fina, a esquina por dobrar. Eu sou a minha própria surpresa, uma sombra e, outras vezes, o lado mais macio de nada.