Poeta Santo Souza de Sergipe para o Brasil

Santo Souza nasceu na cidade de Riachuelo, município do Estado de Sergipe, localizada a 23 km de Aracaju (capital), em 27 de janeiro de 1919 ,filho único de mãe negra, solteira, estudou na escola regular até quarta série primaria, e antes de completar 10 anos ,precisou trabalhar como ajudante numa farmácia para ajudar a mãe semi analfabeta que desempenhava os serviços de gomadeira.

Descobriu no livro e na leitura a ponte que precisava para mudar sua realidade, e a de todos a sua volta. Ávido pelo saber, lia tudo que tinha acesso na pequena cidade, que até os dias atuais na possui biblioteca. Avançou nos estudos, e tornou-se autodidata e ainda na infância fez os seguintes versos " A origem do amor é um fanal que ilumina a fonte de nossa amargura tornando nosso coração cheio de ternura, semelhante a luz espiritual” A sua passagem pela música, usando o clarinete, foi breve, todavia suficiente para surpreender o maestro, Zózimo instrutor musical na localidade ao criar a valsa Mariana em homenagem a namorada.

Aos dezenove anos Santo Souza mudou para capital, Aracaju, e continuou trabalhando como prático de farmácia de manipulação, estilo comum à época .

Aos vinte e um anos, subiu ao altar em matrimonio com Maria Ana a s jovem musa a quem ele dedicou a valsa, e viveu um casamento duradouro, formou uma numerosa família de: oito filhos, dezoito netos e vinte oito bisnetos (até a data do seu falecimento).

Da sua passagem pela música ficaram somente as lembranças, e a veia literária pulsou mais forte, o jovem pratico de farmácia, dividiu o trabalho diário convencional como o amor pela literatura, lendo e escrevendo nas horas vagas. Para ajudar a aumentar a renda familiar, trabalhou também como redator escrevendo programas em rádios locais- meio de comunicação de maior expressão na época. Nesta fase célere, criou a famosa rádio novela ” Uma vida por mês”, que relatava a história de vultos da literatura, e a famosa série de “Crônica da Cidade” interpretadas, ricamente pelo radialista, Santos Santana, voz inesquecível do rádio Sergipano. As crônicas caíram no gosto popular, e foi um verdadeiro sucesso na época.

Estreou no mundo literário com o seu primeiro livro aos 34 anos, Cidade Subterrânea em 1953, prefaciado pelo ilustre Câmara Cascudo, e apresentado por José Augusto Garcez, intelectual incentivador da literatura sergipana, que liderou a lista de amigos que custearam sua primeira edição.

URNA FANTÁSTICA

Venho de longe... — Em minhas mãos queimadas

Trago a cinza de céu crepusculares!

Nos olhos, trago noites e alvoradas

e, na alma, os sons da eterna voz dos mares.

Trago lírios de luz... Trago irisadas

ondas de sóis, desfeitas em colares.

E, aceso, o pálio azul das madrugadas

para cobrir os tronos e os altares.

Trago o silêncio! E a paz! E a luz que ondeia

dentro dos astros — esses grãos de areia,

orvalhados de névoa e de harmonias...

E urnas de sonhos, clâmides de estrelas,.

Trago-as de longe para oferece-las

a esses que vêm com as pobre mãos vazias! Cidade Subterrânea, de 1953.

No ano de 1954, foi a vez de Caderno de Elegias, “...Trinta e um poemas elaborados em tom profético, numa atmosfera de tragédia iminente desfilam ai mães, filhos e mesmo toda humanidade num desamparo apocalítico” RENATO JOBIM . Rio de Janeiro ( in Diario Carioca de 10.07.1955 no ano seguinte lançou “Ode Órfica”, e chamou a atenção da critica nacional com um estilo poético pouco usado no Brasil, o Orfismo “Anotem os críticos o nome desse poeta de Sergipe. Terão de falar dele, um dia”. SERGIO MILLIET e critico de arte, São Paulo (in “O Estado de São Paulo”, de 20 de dezembro de 1955; idem, Diário Crítico, são Paulo, Livraria MARTINS, 1959, pp. 109-110. “Mais um testemunho da vitalidade literária de Sergipe. Um livro em que Orfeu é invocado em versos de sóbria beleza, pela entonação melódica” VALDEMAR CAVALCANTE, Rio de Janeiro (in “O Jornal”, de 18.03.1956).

Era tão clara a tua voz, e tão

limpo o teu canto inaugural, ó noite,

que o tempo adormecia em tuas mãos!

De início, rejeitamos teus conselhos

dissimulados. Nautas fugitivos,

eis que a nave de Orfeu, que pilotávamos,

não nos pertence mais, pois a ofertamos

àqueles que hão de vir colher conosco

a treva e o medo, embora eles, no lago,

com a vida e as águas entre os braços, nos

surpreendam no triângulo da morte,

os olhos florescendo como peixes

que o teu milagre, ó noite, fecundou! Ode Órfica I, 1956:

Passeou pela poesia social em 1964, quando lançou o livro Pássaro de Pedra e Sono, livro que precisou sair das prateleiras por conta da poética vista como subversiva na fase da ditadura militar. O critico José Augusto Garcez definiu assim “Pássaro de Pedra e Sono é um grito dentro da vastidão deste cenário. Um grito para todos ouvidos, espécie de clamor endereçado a todas as consciências”

Decreto Lei nº13

Pescadores, camponeses,

mineiros e tecelãs

(condutores de cansaço,

desespero e madrugadas);

e operários – doadores

de força, vida, agonia

e suor para o cimento

das soberbas construções,

depois de muito lutar,

depois de muito sofrer;

CONSIDERANDO que a terra,

na magia de seus atos

transforma em frutos e seiva

o sangue vivo dos homens;

CONSIDERANDO que o vento,

pastor das ondas do mar,

e de todos os que lutam

se quiserem respirar;

CONSIDERANDO que os rios

(o mundo livre dos peixes)

são de todos que têm sede

nesta dura escravidão;

CONSIDERANDO que a noite

(a semeadora de estrelas)

é de todos que semeiam

sementes e construções;

CONSIDERANDO, por fim,

que a lei diz textualmente

no artigo primeiro e único:

“quem não trabalha não come”.

REVESTIDOS dos poderes

que lhe confere a Lei 13,

DE MAIO de qualquer tempo,

aprovada pelo povo

em assembleia,

Decretam:

Art. 1º - Fica abolida a miséria

nos lares todos do mundo

e os frutos vindos da terra

serão para os que têm fome.

Art. 2º - Os ventos serão mantidos

à altura das mãos humanas,

como símbolos maduros

da liberdade dos homens.

Art. 3º - Os rios serão o espelho

que há de sempre refletir

as cores arco-irisadas

da total felicidade

Art. 4º - As noites serão o ventre

na imensa fecundação

da luz mansa do futuro,

da redenção dos que sofrem.

§ único - Para sossego geral

hoje serão fuzilados

miséria, fome, opressão.

fabricadores de guerra,

empresários da desordem,

pilotos negros da morte

destruindo gerações,

ódio, trustes, latifúndio

- tudo e todos que ora vivem

sugando as forças do mundo

bebendo o sangue do mundo

Santo Souza

Em 04 de julho de 1970, assumiu a cadeira efetiva na Academia Sergipana de Letras, casa das grandes personalidades culturais de Sergipe. Logo em seguida lançou: CONCERTO E ARQUITETURA (1974) . O orfismo voltou em cena com a obra PENTACULO DO MEDO (1980) .Em 1988 a Fundação Augusto Franco financiou a publicação da obra A ODE E O MEDO (1988) e ANCORAS DE ARGO. O sucesso do autor era tal que a fundação Joaquim Nabuco da cidade de Pernambuco, rendeu ao autor a publicação de OBRA ESCOLHIDA (1989), uma publicação especial, que selecionou os melhores poemas das obras editadas do autor. Escritores de renome nacional tiveram acesso a essa publicação e comentaram “Um dos mais inventivos poetas de Sergipe, ou seja, Santo Souza (1919-), cuja poesia segue uma linhagem universal da metáfora na tradição da imagem, postura de todos os tempos da poesia” ASSIS BRASIL, in A Poesia Sergipana no Século XX (Antologia), 1998.O príncipe dos poetas brasileiros também comentou ”A ODE E O MEDO deu de beber à minha sede de poesia. É uma transfusão espiritual na anemia de beleza destes dias. Nunca o mundo precisou tanto de poetas como você: criador de ritmos que iniciam, de palavras que tatuam nos muros da noite a celebração do eterno” PAULO BOMFIM, São Paulo (in Santo Souza, Obra Escolhida, 1989,p.261).A admiração dos paulistas pelo poeta sergipano, fez jus a mesmo ser membro correspondente da Academia Paulista de Letras.

O poeta reacendeu com força seu estilo órfico em ÂNCORAS DE ARGO em (1994); Em 1995 a Associação Paulista de Críticos de Arte de acordo com decisão da Assembleia Geral, realizada na sede do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do estado de São Paulo, conferiu no setor literatura a Santo Souza pelo conjunto da obra O Grande Prêmio da Crítica no Teatro Municipal de Arte de São Paulo.

A CONSTRUÇÃO DO ESPANTO (1998); de acordo com o estudioso sergipano, amigo, e admirador do poeta Luís Antônio Barreto, foi considerada como sendo um desfecho das demais obras por está sendo refletida a aventura humana entre deuses, demônios e presságios e completou “Santo Souza é um poeta de Sergipe, mas também o é do Brasil e da língua, com sua obra órfica, mas, também, com a vastidão do toque cotidiano, da vida, do ser, da beleza e da reflexão diante do mundo pulsante de todos os dias, como se a poesia fosse uma crônica, a inventar e reinventar a realidade”. (SOUZA p. 129). ROSA DE FOGO E LÁGRIMA 2004; REQUIEM PARA ORFEU (2005);ESQUILO NA TOMENTA(2006);DEUS ENSAGUENTADO (2008).

Em 2011 o poeta recebeu mais um reconhecimento da critica nacional com a publicação do imortal das letras brasileiras, Carlos Nejar, no livro História da Literatura Brasileira, pag 623 “ Sua poesia não tem nada de cárcere verbal, é se há, um cárcere é do fogo que irrompe as paredes,entre lavas,com verso de vocação vulcânica. Não é regional, sua sede é universaliante e cósmica. Místico em estado viagem, mescla de Rimbaud e Boudlaire. Um surrealismo, outro no entretanto sidéreo entre bem e mal. Teatral seu poema “

Após 46 anos sem fazer lançamento de livro ao público, SANTO SOUZA aos 91 anos fez no dia 02 de junho de 2010 o lançamento festivo de dois livros: CREPÚSCULO DE EPLENDORES e DEUS ENSAGUENTADO, este último com versão em espanhol; “DÍOS ENSANGRENTADO”. Ambos fazem menção a sua rica trajetória órfica que dedicou a maioria de seus escritos.

Santo Souza viu a realização da publicação do livro Ponte para os Trágicos em março de 2014, graças a uma ação conjunta das instituições Academia Sergipana de Letras e a Associação Sergipana de Imprensa, livro este com textos órficos copilados pelo próprio autor que acreditava aproximar-se mais ao público jovem.

”A densidade da poesia de Santo Souza, levou autores a diversas interpretações“ Se quiser de fato ,rastrear, em essência os elementos plasmadores e afins da poemática santosouzeana, há de se recorrer forçosamente à antiguidades renascentistas,conviver com Homero, Ésquilo e Sófacles e Virgílio e Dante,Camões, Shakespeare e Goethe” assim definiu o critico literário JACKSON DA SILVA LIMA, que fez um mergulho na poética Santosouzeana quanto ao seu conteúdo, forma, simbologia e afinidades e lançou o livro O Poeta Santo Souza, obra extraordinária, que é um verdadeiro estudo didático, e profundo de todas as fases poéticas vivenciadas por Santo Souza, em sua trajetória literária. O estudo apresentado nesta obra éo resultado de quem tinha uma convivência que fui testemunha pela cumplicidade nas conversas intermináveis por anos. O jornalista Cleiber Vieira e também amigo pessoal, lançou o livro “O Cerne Metafísico de Santo Souza", que faz uma analise dentro de uma visão mística da obra Santosouzeana.

Santo Souza trabalhou bastante, e como autodidata construiu sua numerosa biblioteca e uma família estruturada, e aposentado como servidor público, gozou de uma velhice tranquila, com estabilidade financeira . Não viveu da sua poesia, e sim para poesia. E em 18 de abril de 2014 aos 95 anos, Santo Souza no seu leito, no conforto do seu lar, fechou os olhos para vida ,criou asas e partiu para eternidade. A literatura sergipana e brasileira, perdeu um dos mais geniais escritores, que fez da palavra um magnífico instrumento de trabalho na construção de uma sociedade mais reflexiva e humana.

Um ano após seu falecimento, Santo Souza cravou seu nome como patrono em grandes movimentos culturais em Sergipe: foi escolhido como patrono da Academia Riachuelense de Letras, movimento que vislumbra contribuir para o crescimento cultural e educacional e artístico da cidade de Riachuelo, sua terra natal . Deu luz e sapiência também ao grupo fundador da Academia de Letras de Aracaju (ALA), formado por um grupo de jovens intelectuais de força cultural na capital, que mesmo diante da diversidade de nomes de relevância no cenário literário, preferiu também eleger o poeta Santo Souza por unanimidade como seu patrono “ .Ainda em 2015 Santo Souza, foi o autor homenageado da Flise I Feira da Leitura e do Livro de Sergipe, a maior movimentação literocultural em espaço aberto gratuito de Aracaju, que em três dias recebeu no Parque Augusto Franco cerca de 50 mil pessoas.

O ano de 2019 ano do Centenário de Santo Souza, foi instituído como o ano Cultural Santo Souza, e as comemorações do Centenário começaram com o abraço da Academia Sergipana de Letras e a Associação Sergipana de Imprensa ao projeto de relançamento da obra Pássaro de Pedra e Sono. Nesta obra, o poeta coloca o lado não visto pela sociedade, com um propósito de envolvimento critico e social importante, e indispensável para o leitor realizar reflexões sobre si mesmo. A publicação deste trabalho é um “sim “ a liberdade artística e a democracia em nosso país.

Hoje, o acervo literario de Santo Souza, sua biblioteca particular, resguarda mais de 80 anos da memoria literocultural de Sergipe, e aguarda uma espaço digno de ser visitado por Sergipanos e demais admiradores do poeta espalhados por todo Brasil

Ilmara Souza .

Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo, curadora, e neta do autor. Membro do Movimento cultural Antônio Garcia Filho da Academia Sergipana de Letras, cadeira nº10 . Membro da Academia de Letras de Aracaju, cadeira nº02