Histórias de família: casamentos, alianças e fortunas, Marieta de Moraes Ferreira

Histórias de família: casamentos, alianças e fortunas

Copyright © Marieta de Moraes Ferreira – 2008

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Lys Portella

Dalila dos Reis

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV

Ferreira, Marieta de Moraes

Histórias de família [Recurso eletrônico] : casamentos, alianças e fortunas

/ Marieta de Moraes Ferreira. – Rio de Estado : Editora FGV, 2013.

Dados eletrônicos.

Inclui bibliografia.

ISBN: 978-85-225-1324-6

1. Moraes, Ferreira de, Família. 2. Imigrantes – Nova Friburgo (RJ) –

História. I.

Fundação Getulio Vargas. II. Título.

CDD – 929.2

Introdução

A Chácara do Paraíso

A Suíça Brasileira

Os Pioneiros

Integração e Ascensão Social

Os Irmãos vindos de São João Del Rei

O Barão e a Baronesa

O Empreendimento Cafeeiro

Sob as Ordens do Barão

Novos Tempos, Novas Gerações

De Volta à Chácara do Paraíso

Linha do Tempo

Bibliografia

Sumário

Introdução

historiográficas ligadas à micro-história revalorizaram as trajetórias

dos indivíduos comuns e mostraram como sua análise

pode ser um caminho para a compreensão da História.1 É esse

tipo de exercício que pretendo fazer aqui, ao tomar como ponto

de partida em direção ao passado um casal que, nos anos 1930,

adotou como residência a Chácara do Paraíso, em Nova

Friburgo, estado do Rio de Janeiro.

O casal formado por Vicente Ferreira de Moraes e Adelaide

(Pequenina) das Neves Marques Braga foi produto, antes de mais

nada, de uma rede de relações entre grupos familiares que no

início do século XX estavam integrados à sociedade de Nova

Nos últimos anos, as novas correntes

1 Ver Carlo Ginzburg, Mitos, emblemas e sinais (São Paulo: Cia. das Letras, 1989) e Giovanni Levi, A he -

rança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000).

8

Friburgo. Entre seus ancestrais destacam-se algumas figuras-chave,

cuja trajetória a pesquisa permitiu reconstituir. Assim, do lado de

Pequenina, temos Marianne Joset Salusse, imigrante suíça que fez

parte do conjunto de fundadores de Nova Friburgo em 1820; José

Antônio Marques Braga, filho de um imigrante português de Braga

estabelecido como armador no Rio de Janeiro nas décadas de 1820

e 1830; Adelaide (Zinha) das Neves Marques Braga, filha do político

Galdino Emiliano das Neves e neta de um comerciante de São João del

Rei imigrante dos Açores, neta também de outro político do Império,

Getulio Monteiro de Mendonça, por sua vez filho de um “professor

régio de latim, poeta e comediógrafo”, natural de Lisboa, que no fim

do século XVIII se instalou em Cuiabá. Do lado de Vicente, a grande

figura é o tropeiro mineiro João Antônio de Moraes, que se tornou

um grande fazendeiro da região de Cantagalo e terminou seus dias

como barão do café. Em torno desses, surgiram vários outros perso -

nagens que foram complexi ficando a teia de relações de pa rentesco

e cujas histórias singulares permitem perceber circunstâncias e conjunturas

da história do Brasil. Com base em suas trajetórias é possível

identificar estilos de vida, visões de mundo, estratégias de ascensão

social e de acumulação de riqueza. O acompanhamento de suas

histórias de vida permite, enfim, captar aspectos importantes da gestão

de seu cotidiano e das lutas travadas na exploração e construção de uma

nova terra e de um novo país.

Um ponto central que emerge da análise dos ramos familiares de

que descendem Pequenina e Vicente são as estratégias matrimoniais

acionadas como instrumento para a construção de alianças e de redes

de solidariedade destinadas a garantir recursos financeiros.2 A

importância das alianças matrimoniais pode ser verificada tanto no

caso dos descendentes de Marianne Joset Salusse como no dos de João

Antônio de Moraes, ou dos Neves de São João del Rei. Cada um des -

ses grupos familiares lidou com essas possibilidades de maneiras

distintas. No caso de Marianne, imigrante, envolvida com atividades

comerciais urbanas de pequeno porte e interessada em integrar-se no

mundo dos grandes proprietários nacionais, a preocupação foi bus-

2 Ver João Fragoso, Carla Almeida e Antônio Jucá Sampaio, Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime

nos trópicos. América Lusa, séculos XVI a XVIII (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007) e Nuno Gonçalo Freitas

Monteiro, O crepúsculo dos grandes: a casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal (1750-1832) (Lisboa: Imprensa Nacional

da Casa da Moeda, 1998).

Pequenina, 1909.

Vicente e os filhos Elsa, Cláudio, Augusto e Vicentinho, Nova York, 1919.

11

car alianças matrimoniais para os filhos fora de seu núcleo de origem,

o dos imigrantes suíços. Da mesma forma, os descendentes de José

Antônio Marques Braga, comerciante na Corte, e de José Antônio das

Neves, comerciante em São João del Rei, buscaram casamentos fora

de sua rede de relações familiares. Diferentemente, João Antônio de

Moraes, senhor de terras e escravos na região de Cantagalo, desde

o primeiro momento adotou como estratégia para seus enteados e fi -

lhos casamentos endogâmicos, com sobrinhos de sua mulher ou com

seus próprios sobrinhos. Sua expectativa era que essa prática não só

garantisse a permanência da fortuna no seio da família, mas também

estruturasse uma grande rede de relações que lhe assegurasse recursos

sociais e políticos e desse sustentação à sua autoridade e poder. A

opção pela endogamia fez com que as sucessivas gerações, ao se

casarem entre si, produzissem um grupo portador de características

identitárias baseadas na existência de antepassados comuns e dotado

de recursos para conquistar posições políticas. Essa prática, além de

sustentar a coesão do grupo familiar, estimulou ainda a cumplicidade

com outros estratos sociais, garantindo a fidelidade dos segmentos

subalternos, lavradores e escravos.3

Outro ponto que merece destaque são as práticas econômicas

implementadas por alguns desses personagens, que nos permitem

rever teses correntes sobre temas da historiografia brasileira. A imigração

suíça para Nova Friburgo, por exemplo, é sempre tratada como

um projeto que redundou em retumbante fracasso, sendo enfatizado

o ponto de vista dos colonos que abandonaram a colônia ou se

internaram nos confins da fazenda do Morro Queimado, e viveram

sempre em condições precárias praticando uma agricultura de subsistência.

O itinerário percorrido por Marianne Joset Salusse

demonstra que entre os imigrantes que fundaram Nova Friburgo as

atividades comerciais e urbanas também floresceram e garantiram

mobilidade econômica para alguns deles, que se tornaram

empresários locais.

3 Ver Antonio Carlos Jucá de Sampaio, Famílias e negócios: a formação da comunidade mercantil carioca na

primeira metade do setecentos, em João Fragoso, Carla Almeida e Antônio Jucá Sampaio, op. cit., p.225-264.

12

A trajetória de João Antônio de Moraes, Barão das Duas Barras, e

de seus filhos e netos, que se estabeleceram inicialmente na região de

Cantagalo e mais tarde no município de São Francisco de Paula, atual

Trajano de Morais, também vem questionar a idéia de que os fazendeiros

de café fluminenses ficaram aferrados à escravidão e foram

incapazes de pensar estratégias para enfrentar a crise do trabalho que

se avi zinhava com a Abolição. O foco nessa região pouco estudada

permite também acompanhar os impactos da expansão do trabalho

livre e a emergência no Estado do Rio, já no período republicano, de

uma nova onda cafeeira que se prolongou até a crise de 1929. As

práticas econômicas do Barão das Duas Barras, de seus sobrinhos e

genros, como o Visconde de Imbé, Manoel de Moraes, Vicente

Ferreira de Mello, e de sua filha, Felizarda de Moraes Lopes Martins,

indicam uma diversificação de investimentos, tanto através da prática

de empréstimos a juros, como da aquisição de imóveis urbanos, ao

lado da continuidade da exploração agrícola. Na verdade, foi isso que

lhes permitiu enfrentar a instabilidade que marcou a transição da

monarquia para a República. No entanto, se a segunda geração dos

Moraes conseguiu ultrapassar os desafios que então se apresentavam,

o mesmo não pode ser dito da terceira geração. O engajamento em

atividades políticas (houve vereadores, deputados estaduais, deputados

federais e um governador), a adoção de estilos de vida suntuários,

descurando da dedicação aos negócios e da busca de novas alternativas

econômicas, acabaram por levar à perda do status econômico

adquirido nos tempos do Barão.

A

Este livro resultou de uma pesquisa que envolveu a consulta a uma

expressiva gama de fontes, e se beneficiou de um trabalho anterior,

apoiado por Jorge Getulio Veiga Filho e realizado em parceria com o

antropólogo Carlos Eduardo de Castro Leal, intitulado “Cinco séculos

de alianças”, que não chegou a ser publicado. A experiência de

trabalho com Carlos Eduardo foi extremamente enriquecedora, não

só pela grande amizade que nos une e pelo prazer da sua companhia

nas nossas andanças atrás de informações, mas também pela erudição

e curiosidade intelectual que são marca registrada de sua personalidade.

Camila Guimarães Dantas teve uma participação importante

em todas as etapas da coleta de dados. Dora Guimarães de Mesquita

Rocha encarregou-se da edição do texto, o que significou estabelecer

o roteiro do livro, ordenar os capítulos e preparar os ori ginais. Sem

seu apoio e estímulo, este trabalho não chegaria à publicação. Na

finalização do livro, Nayara Galeno do Vale colaborou na revisão das

notas e da bibliografia.

Na busca por documentos que pudessem esclarecer a memória

fami liar transmitida por minha mãe, Georgeanna Maria Ferreira de

Moraes, e minha avó Pequenina, consultamos o Arquivo Nacional,

a Biblioteca Nacional e o arquivo da Cúria Metropolitana, no Rio

de Janeiro; os arquivos da Catedral, do Fórum e do Pró-Memória da

Prefeitura em Nova Friburgo; a Câmara Municipal e os arquivos

da Matriz de Cantagalo; o Fórum de São Sebastião do Alto; a Matriz

e o Fórum de Santa Maria Madalena; a igreja e o cemitério de São

Francisco de Paula, no município de Trajano de Morais. Enquanto

isso, em Minas, Douglas Fazzolato esquadrinhou arquivos de igrejas

e museus em São João del Rei e Mariana. Fomos também a Portugal,

onde consultamos os arquivos do Viseu, de São Sebastião da Vila do

Touro e da Cúria Metropolitana de Lamego.

Outro tipo importante de fonte de que nos servimos foram do -

cumentos privados, conservados por descendentes dos vários troncos

fami liares pesquisados. Visitamos as fazendas de Santa Maria do Rio

Grande, São Lourenço, Ribeirão Dourado, Olaria, Ipiranga e Santo

Inácio, outrora pertencentes ao Barão das Duas Barras, cujos

pro prietários atuais gentilmente nos forneceram documentos e informações.

Dessa forma recolhemos inventários, cartas, fotos e recortes

de jornais. Finalmente, utilizando a metodologia da história oral,

realizamos 30 entrevistas, totalizando cerca de 60 horas de gravação.

Com elas foi possível registrar e avaliar outro elemento que nos inte -

ressava: a memória familiar.

A todos aqueles que nos cederam documentos, se dispuseram a nos

contar suas histórias, ou de alguma forma colaboraram conosco,

apresento agora os meus agradecimentos. Sem sua inestimável ajuda,

não teria chegado aos resultados aqui apresentados. São eles: Afrânio

Veiga do Valle, Alda Sève, Antônia Seng das Neves, Antônio Neves

Amarante, Antônio Neves da Rocha, Beatriz Getulio Veiga, Bento

Luiz de Moraes Lisboa, Carlos Roberto Moraes Souza Tavares, Cecília

Dornelles, Cléa de Moraes, Cristina Oswaldo Cruz, Elizabeth Di

Cavalcanti Veiga, Felipe Aprigliano, Felipe Lisboa de Moraes, Helena

Veiga Moutinho, Honestalda de Moraes Souza, Isa Limonge Coelho,

João de Moraes Souza, Jorge Getulio Veiga Filho, General José

Antônio de Moraes, José Carlos Santos, José Carlos Veiga de Moraes,

13

14

Julieta Britto Pereira Ferreira de Moraes, Leandro Veiga de Moraes,

Leda de Moraes Souza, Lia Neves da Rocha, Lourdes Lisboa de

Moraes, Lúcia Marques Braga, Luiz Henrique Ferreira de Moraes,

Paulo Lisboa de Moraes, Regina Salusse, Roberto de Moraes Grey,

Sérgio Ioset Salusse Bittencourt-Sampaio, Teresa Barroso e Valter

Seng das Neves. Minha gratidão a todos e, aos ausentes, minha ho -

menagem.

Quero agradecer ainda a Pedro Oswaldo Cruz e a Regina Lo

Bianco pela cessão das fotos que aparecem no livro, e a Lys Portella

e Dalila dos Reis pelo projeto gráfico. Finalmente, a Valdiney

Ferreira, que leu inúmeras vezes este texto, deu boas idéias e me

estimulou a levar adiante o projeto de publicá-lo.

Marieta de Moraes Ferreira

Janeiro de 2008

Sede da Chácara do Paraíso. Nova Friburgo, 2008.

17

A Chácara do Paraíso

de Nova Friburgo em direção a Cantagalo, já na saída da cidade,

deixa à direita o caminho que conduz ao bairro Chácara do

Paraíso. O bairro recebeu seu nome de uma antiga propriedade

rural existente no lugar, certamente assim batizada por donos

que nela viam o seu Jardim das Delícias. O nome primitivo era

bem mais prosaico: Chácara dos Inhames.

Muito provavelmente, a chácara foi um lote doado a colonos

suíços, fundadores de Nova Friburgo, para a exploração agrícola.

É o que se depreende do documento mais antigo conhecido

referente à propriedade, redigido em francês e datado de 1o de

junho de 1826. Ali aparecem, como donos da terra chamada

Ignames, Jost Voeber, a viúva Marguerite Zahno e a filha desta,

Elisabeth. A terra que lhes fora “cedida e atribuída no princípio

pela autoridade competente” era, por aquele instrumento,

“cedida, vendida e alienada para todo o sempre” a Aléxis

Quem parte do centro

18

Thorin. Embora não tenha chegado até o presente a escritura em

nome de José Antônio Marques Braga, sabe-se que em 1858 a terra já

lhe pertencia, pois sobreviveu uma planta intitulada Chácara dos

Inhames, por ele assinada e datada daquele ano.1 O novo proprietário,

filho de um comerciante português estabelecido na Corte, havia-se

instalado alguns anos antes em Nova Friburgo, e ali se casara com

Josephina Salusse, filha de uma pioneira suíça e um francês.

No tempo de José Antônio e Josephina, nada indica que a chácara

tenha recebido melhorias. A compra da terra foi um investimento

imobiliário como tantos outros feitos por seu abastado proprietário,

que morava com a família no centro de Nova Friburgo. Com sua

morte em 1864, a chácara coube por herança ao filho mais moço,

Augusto Marques Braga. O jovem herdeiro casou-se em 1870 com

uma moça de São João del Rei, sobrinha do segundo marido de sua

mãe, Galiano das Neves. A noiva, também ela rica herdeira, chamava-

se Adelaidezinha, ou apenas Zinha das Neves. O casal instalou-se

em Nova Friburgo, e a partir de então a Chácara dos Inhames iria cair

no esquecimento para dar lugar a uma aprazível propriedade

campestre, conhecida como a Chácara de D. Zinha Braga.

É com esse nome que a chácara aparece em 1902 no jornal friburguense

A Sentinela, em uma reportagem rica de detalhes sobre um

“pic-nic” que reuniu a sociedade local.2 Como informa o jornal, o

“grande convescote” realizado “na poética chácara da amável e estimadíssima

senhora D. Zinha Braga” contou com uma comissão organizadora,

que preparou a saída de um cortejo de famílias da Praça do

Suspiro, em Nova Friburgo, ao som dos clarins da Sociedade Musical

Campesina. Em carros e cavalos, usando chapéus de palha – os das

senhoritas, “enfeitados com arte e gosto por flores naturais” –, os

convidados rumaram para o campo. A chácara fora especialmente

ornamentada para a ocasião com arcos de flores e guirlandas, mas um

item da decoração era definitivamente espantoso. Nas palavras do

entusiasmado cronista, “admirável era então a vista que se descortinava:

as colinas tão caprichosamente arborizadas iam em suaves rampas

morrer na esplanada verdejante, no meio da qual se erguia, garbosa e

iriada, uma Torre Eiffel toda de flores, com 30 metros de altura, alegoria

ao grande monumento de Paris”.

1 Documentação conservada por Valter Neves.

2 A Sentinela, 23 de março de 1902.

“Pic-nic” na Chácara de D. Zinha Braga.

O casal Vicente e Pequenina com os filhos Vicentinho, Elsa, Augusto, e Cláudio

no jardim de sua residência na Inglaterra em 1924.

20

As referências parisienses não cessavam aí. Depois que todos

provaram as iguarias servidas, foi solto, em homenagem àquele “que

tão alto elevou-se, levantando também o nome da Pátria”, um

“enorme balão da forma Santos Dumont com cores nacionais, donde

pendia vistosa barquinha de flores onde oscilava a bandeira

brasileira”. Na época, Santos Dumont passeava pelos céus de Paris em

balões dirigíveis em forma de imensos charutos, deixando a cidade

embaixo boquiaberta. Nem sempre, porém, como aconteceu em 1901

com o Nº 5, seus balões voltavam suavemente ao solo.3 Assim também,

o balão da Chácara de D. Zinha Braga, construído por Eduardo

Salusse, embora não fosse tripulado nem se esperasse o seu retorno,

depois de erguer-se foi de encontro a uma árvore, “vindo recordar

desse modo o desastre ocorrido com o imortal engenheiro quando

numa de suas ousadas experiências viu seu balão esfacelado numa das

árvores do parque Rothschild”...

Após descrever a animação dos brindes e das danças, e o encerramento,

com a volta dos convidados em cortejo para a cidade, daquela

“festa magnífica cujas deliciosas impressões perdurarão por muito

tempo no espírito da sociedade friburguense”, o jornal registrava os

nomes dos presentes.

“A comissão iniciadora do pic-nic era composta dos

seguintes Srs.: Drs. Galdino do Valle, Afranio de

Albuquerque, Pantoja Leite, Raul Veiga, Thelio de Moraes,

Feliciano de Castilho, Alberto Teixeira da Costa e Manfredo

da Costa e os Srs. Joaquim Antunes, Augusto Braga, José

Antônio Marques Braga Sobrinho, Jacintho Carneiro,

Henrique Laurreys, Carlos Valle e Eduardo Salusse.

Além destas tomaram também parte na festa as seguintes

pessoas:

Senhoritas: Lalaide Neves, Laura Friburgo, Neném

Neves, Pequenina Braga, Sinhá e Yayá Moraes, Luiza

Sanches, Marianita Neves, Fanchita, Yza e Vika Valle,

Regina e Evangelina Veiga, Dejanira Albuquerque, Elvira

Lazary, Dolores Boechat, Maria José, Judith e Antonieta

Veiga, Dinorá e Áurea Valle.

3 Henrique Lins de Barros, Alberto Santos Dumont (Rio de Janeiro: Index/Associação Brasileira de

Instrução, 1986).

Senhoras: Condessa de Nova Friburgo, Baronesa das Duas

Barras, Madames Galdino do Valle, Magno do Valle, Costa

Reis, Zinha Braga, Maria J. de Araujo, Maria Teixeira da

Cunha, Marieta Antunes, Sophia Salusse Neves, Emilia

Rochemant, Yzolina Guariglia, Laura Braga Morel, Zilda

Chiaboto e Maria Teixeira da Costa.

Senhores: Drs. Galdino do Valle, João Veiga, Souza

Fontes, Diogo Campbell, João Moraes, Coronel Teixeira da

Costa, Henrique Costa Reis, Major Carrilho, Rodrigo

Felicio, Cezar Monteiro, Vicente Nogueira, Octavio

Magalhães, Angelo Santos Moreira Filho, Henrique Eboli,

John Mac-Niven, Tancredo e Roberto Veiga, Humberto

Gariglia, Pedrinho Pernambuco, Vicente e Henrique

Moraes, Edgar Ferreira de Carvalho, Arnaldo e Oscar

Ranieri, João Braga, Albertinho Maia, Astholpho do Valle,

Servio Lago e Paladio M. Castro.

A imprensa fez-se representar.”

Entre as senhoras, senhoritas e senhores citados, figura evidentemente

a dona da casa, D. Zinha Braga, àquela altura viúva. Estavam

também presentes à festa quatro de seus filhos: José Antônio

Sobrinho (Juquinha), Augusto (Gugusto), Adelaide (Pequenina) e

João Batista. A filha mais velha, Maria José (Neném), não é mencionada,

como tampouco seu marido Alberto de Oliveira Maia, mas

lá estava o filho do casal, Albertinho Maia. Lá estava ainda um jovem

que iria se aliar à família por casamento: Vicente de Moraes, que em

1910 se casou com Pequenina.

Pequenina e Vicente começaram a vida em grande estilo: com os

recursos que ele, neto do Barão das Duas Barras, cafeicultor que

amealhou considerável fortuna no século XIX, herdou da família,

moraram em Paris, Nova York e Londres e educaram os filhos em

colégios ingleses e alemães. Passados, porém, 20 anos de gastos sem

limites ou preocupações, os problemas financeiros começaram a se

fazer sentir. Com a quebra da Bolsa de Nova York em outubro de

1929, o casal, que vivia de rendas e aplicações financeiras – como,

aliás, a maioria de seus parentes –, viu surgirem dificuldades desco -

nhecidas e olhou para o passado com nostalgia. Naquele ano Vicente

voltou para o Brasil, mas Pequenina continuou em Londres, com os

filhos no colégio interno em Berlim. Em 21 de novembro, assim

escreveu ela ao marido, a respeito da chácara de sua mãe, já falecida,

então administrada por seu irmão Gugusto:

21

Pequenina e Vicente em Vichy, na França, com os filhos Elsa e Cláudio, os primos Bidu Sayão e

seus pais, e amigos, em 1924 .

“Foi muito triste para mim saber que o Gugusto vendeu

a Chácara, aquele Paraíso onde nós todos já passamos dias

tão felizes. Bem vejo o ponto de vista dele, que finalmente

não está muito moço para empregar o resto da vida dele ali.

A Chácara estava boa era mesmo para os nossos filhos, que

ainda têm diante deles um grande futuro, e principalmente

para o Vicentinho que quer ser lavrador, mas como fazer se

eu sei que atualmente não tens capital nem mesmo casas ou

propriedades de que pudéssemos dispor para fazer negócio

com Gugusto. Em todo caso, nem podes avaliar como estou

triste com esta notícia, que grande pena, não é? Avalio que

todos na minha família e mesmo tu hão de sentir muito este

negócio, que só por não termos agora meios deixamos se

realizar com um estranho. Meu Deus, assim vai-se a vida,

tudo vai mudando e se acabando.”

Como ficou sabendo Pequenina dias depois, o Paraíso da sua

juventude não fora vendido, e sim hipotecado. Tanto é assim que em

nova carta ao marido, datada de 9 de dezembro, dizia ela:

“Escrevi ao Juquinha e Gugusto e mandei pedir ao Gugusto

para ele só vender mesmo a Chácara se de todo for urgente

fazê-lo, pois quem sabe se mais tarde poderias fazer com ele

algum negócio para guardarmos esse Paraíso de que os nossos

filhos também gostam tanto.”

Pequenina e os filhos voltaram para o Brasil em 1932. Para sua

alegria, quatro anos depois Vicente conseguiu quitar a hipoteca feita

pelo cunhado, e a chácara tornou-se propriedade do casal.

Nesta breve história da chácara, aparecem personagens de origem

diversa: colonos suíços, um jovem abastado vindo do Rio de Janeiro,

uma moça vinda de São João Del Rei, o descendente de um barão do

café. Certamente a história da cidade de Nova Friburgo ajudará a

entender o que levou essa gente a cruzar seus caminhos. Afinal, a data

inscrita na fachada principal da sede da Chácara do Paraíso – 1821 –

indica que ela tem quase a mesma idade da antiga colônia dos suíços,

fundada em 1820.

23

Nova Friburgo na década de 1830 (Gravura de J. Steimann).

25

A Suíça Brasileira

para a administração, um armazém, um açougue, dois

pequenos moinhos, dois fornos de padaria e uma fábrica de

telhas – eis tudo o que havia na antiga fazenda do Morro

Queimado, situada no distrito de Cantagalo, adquirida e

preparada pela Coroa portuguesa para receber os suíços que em

1819 deixaram seus cantões para fundar uma colônia no Brasil.

A saga dos suíços foi narrada pelo historiador Martin Nicoulin.

Os dados por ele levantados permitem perceber o que foi o

recrutamento dos colonos, sua longa e trágica travessia oceânica

e sua árdua jornada final por “uma picada muito precária no

meio de tenebrosos precipícios e desertos imensos”, como

descreveu o pároco da colônia, Padre Joye, o caminho íngreme

e ermo entre o fundo da baía de Guanabara e o vale cercado de

Cem casas, um edifício

26

altas montanhas por onde corre o rio Bengala. Permitem, enfim,

entender a gênese da cidade de Nova Friburgo.1

O empreendimento se explica, em parte, pelas circunstâncias da

época. Em 1808, a família real portuguesa se havia transferido para o

Rio de Janeiro, o que levou, em 1815, à elevação da antiga colônia

americana à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves. Em virtude

dos tratados assinados por Portugal com a Inglaterra em 1810,

delineava-se a perspectiva de redução do tráfico negreiro, e conseqüentemente,

de problemas de mão-de-obra para a lavoura

brasileira. Embora a extinção do tráfico só viesse a ser decretada em

1850, as preocupações então surgidas favoreceram a adoção de políticas

imigrantistas.2 Por seu lado, a Suíça estava mergulhada em séria

crise, já que em 1816 suas colheitas foram atingidas por mudanças

climáticas que provocaram grande penúria. Em decorrência, passou a

ser incentivado um movimento migratório, principalmente em

direção à América do Norte. Para milhares de suíços, emigrar era a

única esperança de uma vida melhor.

A combinação entre os interesses suíços e brasileiros se fez por

intermédio do diplomata e homem de negócios Sébastien-Nicolas

Gachet, que em 1817 desembarcou no Rio de Janeiro como representante

diplomático do cantão de Fribourg, e também como agente de

uma sociedade capitalista, para propor a fundação de uma colônia

suíça no Brasil. A idéia de criar um centro policultor para o abaste -

cimento da Corte pareceu boa ao príncipe regente, que em fevereiro

do ano seguinte seria aclamado rei com o nome de D. João VI. Após

muitas negociações, em maio de 1818 foi assinado um contrato, co -

nhecido como Tratado de Colonização, estabelecendo a vinda, a título

de experiência, de 100 famílias, “todas de religião católica apostólica

romana”, para as terras da antiga fazenda do Morro Queimado. Ali

seria erguida uma vila que o próprio D. João, “por benevolência”,

1 Martin Nicoulin, A gênese de Nova Friburgo – Emigração e colonização suíça no Brasil (Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca

Nacional, 1995). O livro de Nicoulin baseia-se num excelente trabalho de recuperação de fontes primárias em

arquivos suíços e brasileiros. Com poucas exceções, dele foram retiradas as informações utilizadas na síntese dos

primeiros tempos de Nova Friburgo aqui apresentada. Para evitar um excesso de notas, serão indicadas apenas

as páginas dos documentos citados. A carta do padre Joye, de 10 de junho de 1820, está na p. 293.

2 Uma medida que seria importante para a imigração suíça foi um alvará de 1818 que “aumentou em uma vez

e meia as tarifas sobre a entrada de escravos africanos, reservando parte de tais rendas tributárias para a compra

de ações do Banco do Brasil. Do rendimento das ações seria retirado o sustento do ‘novo povoamento de

colonos brancos’”. Luiz Felipe de Alencastro e Maria Luiza Renaux, Caras e modos dos migrantes e imigrantes,

em Luiz Felipe de Alencastro (org.), Império: a corte e a modernidade nacional, vol. 2 de História da vida privada no Brasil, dir.

de Fernando Novais (São Paulo: Companhia das Letras, 1997), p. 292.

chamou de Nova Friburgo. Também “como prova da particular

afeição” que dedicava aos novos súditos, quis o rei que a igreja paroquial

da colônia recebesse “o nome de Sua Real Pessoa (São João

Batista)”. Ficou acertado que D. João arcaria com as despesas de

transporte e daria aos colonos um lote de terra, sementes para plantar

e animais de criação, além de um subsídio real nos primeiros tempos

e isenção de impostos por dez anos.3

O tratado mostrava-se bastante vantajoso para os suíços, sobretudo

se comparado às condições da emigração para os Estados Unidos,

que não previam a cobertura das despesas de viagem e faziam os

colonos desembarcarem já endividados. Não correspondeu, contudo,

às expectativas de Gachet, que, como agente de uma sociedade mercantil,

tinha interesses financeiros no empreendimento. De início,

ele propusera a vinda de 300 famílias anualmente para o Brasil,

ficando sua empresa responsável pelas despesas da viagem, que seriam

depois reembolsadas pelo rei, com o acréscimo de juros. Tal proposta

não foi aceita. Ficou acertada a vinda de um número menor de

famílias, e o dinheiro necessário foi logo entregue pelo Real Erário a

Gachet para que providenciasse toda a operação. Consta que a companhia

de Gachet pretendia também financiar as despesas pessoais dos

colonos e encarregar-se do contato comercial entre a nova colônia e

a Suíça, passando a auferir lucros dessas atividades. O Tratado de

Colonização freou tais pretensões, mas, ao fixar o número de famílias

de colonos, e não de indivíduos, abriu uma brecha para a vinda do

que se chamou de “famílias artificiais”: grupos que reuniam uma

média de quatro casais com seus filhos. Isso provocaria, quando os

colonos chegaram, a superlotação das 100 casas construídas para

esperá-los e a divisão de cada lote de terra entre várias pessoas.

Em outubro de 1818 foram abertas em Fribourg as inscrições para

a emigração para o Brasil. Até julho de 1819, foram admitidos 2.006

suíços oriundos de vários cantões, mas principalmente de Fribourg.

Esse contingente era constituído majoritariamente de famílias, que

correspondiam a 86,3% do total. Essa proporção contradiz a tese de

que a colônia teria servido para o expurgo de indivíduos indesejáveis.

Quanto à idade, 57% eram jovens de até 19 anos, e 42%, adultos

entre 20 e 59 anos. Do ponto de vista profissional havia um equi-

27

3 Tratado de Colonização de 11 de maio de 1818, citado por Nicoulin, op. cit., p. 235-9.

28

líbrio, sendo o número de agricultores apenas ligeiramente maior

que o de artesãos, como moleiros, padeiros, sapateiros etc. As

famílias em sua grande maioria eram católicas, mas havia também um

grupo pequeno de protestantes. Todos almejavam iniciar uma vida

mais próspera no Novo Mundo, num lugar onde, segundo os folhetos

distribuídos por Gachet, a terra era de “espantosa fertilidade”: “Tudo

lá pega de galho... um resto de repolho jogado fora produz um repo -

lho; podem-se fazer duas colheitas de batatas.”4

Em julho de 1819, os colonos partiram de seus cantões em direção

a Basiléia, de onde seguiriam para a Holanda. Na primeira parada,

sofreram com a falta de organização da hospedagem enquanto aguardavam

a partida. Ao chegarem à Holanda, passaram ainda por uma

longa espera, tendo uma parte deles aguardado de 29 de julho até 10

de outubro para embarcar. As péssimas condições do acampamento

em terreno pantanoso levaram à morte por doença 43 pessoas. Muitos

dos que embarcaram estavam enfraquecidos ou com uma “febre intermitente”,

e vieram a falecer a bordo. Durante a travessia, que durou de

80 a 146 dias, dependendo do navio, 311 pessoas morreram.

Logo após a chegada ao Rio de Janeiro, os colonos foram conduzidos

em chalupas, sob a orientação do encarregado da colônia,

monsenhor Miranda, para o fundo da baía de Guanabara, onde pude -

ram repousar por cinco dias em Itambi. Dali seguiram de barco para

Macacu, onde os doentes ficaram num hospital que fora instalado

num mosteiro. A última parte do trajeto, até a fazenda do Morro

Queimado, foi bastante penosa. Até certo ponto os colonos seguiram

em carroças, mas na subida da serra dos Órgãos contaram apenas com

o auxílio de mulas para vencer o relevo íngreme. Após cerca de dez

dias, os grupos saídos de Macacu foram alcançando seu destino. Só

em 18 de fevereiro de 1820, depois que todos aqueles que resistiram

às agruras da viagem tinham chegado, Nova Friburgo foi oficialmente

fundada.

Dos 2.006 suíços que deixaram a terra natal, 1.617 sobreviveram

e foram distribuídos pelas 100 casas existentes. Eram casas rústicas, de

pedra, sem assoalho, as janelas sem vidraça. Possuíam quatro cômo -

dos, mas não tinham cozinha: o fogão ficava do lado de fora. Nos

primeiros seis meses, aquela população ainda sofreu as conseqüências

4 Nicoulin, op. cit., p. 63.

da viagem e da mudança de clima. Aproximadamente a cada dois dias

o Padre Joye conduzia ritos fúnebres: foram 131 óbitos de janeiro a

junho de 1820. A morte ainda fazia parte do cotidiano dos imigrantes

quando os lotes foram sorteados e distribuídos. No momento da

distribuição, alguns receberam terrenos rochosos e íngremes e

protestaram, mas nem todos os protestos foram atendidos.

Em meio a muitas dificuldades, uma nova fase teve então início: a

do desbravamento dos lotes. O procedimento usual era a queimada da

mata para depois fazer a semeadura. A partir de agosto de 1820 a

maioria dos colonos já estava cultivando milho e feijão. Tornou-se

necessário construir novas casas e abrir estradas. Na vila, onde

ficaram sobretudo as famílias com problemas de saúde, os órfãos e as

viúvas, escravos foram encarregados de construir um hospital, um

quartel e um mercado.

A estação de esperanças foi, no entanto, curta. Chuvas torrenciais,

a partir de novembro, destruíram o que seria a primeira safra. Os

colonos começaram a duvidar da fertilidade das terras. As obras

foram paralisadas. Muitos retornaram à vila, para ali se depararem

com uma paisagem desoladora: em virtude do transbordamento do

rio Bengala, as casas estavam alagadas, as pontes danificadas, árvores

eram arrastadas pela correnteza...

29

Fazenda em Nova Friburgo em 1830.

30

No início de 1821 os colonos enviaram ao Rio de Janeiro uma de -

legação composta pelo Padre Joye, o médico Bazet e outros, com o

objetivo de requerer o envio de animais de carga, o aumento dos subsídios

e também melhores terras. Chegando à Corte, porém, os suíços

foram informados da crise política instalada pouco antes. A partir da

Revolta de Cádiz, no início de 1820, a instabilidade política em

Portugal se agravou, até que, em abril de 1821, D. João VI retornou a

Lisboa, deixando, no entanto, seu filho e herdeiro, o príncipe D.

Pedro, no Rio de Janeiro. A gravidade de tais acontecimentos fez com

que a colônia de Nova Friburgo ficasse de fora das prioridades da

Coroa. Com isso, os subsídios foram suspensos. Nesse período, o

colono Pierre Bossinger escreveu uma carta desabafando: “Muitos

vieram em busca de fortuna e encontraram a cova. [...] Nossa colônia

está tão mal administrada que parece estarmos sob maldição divina.”5

De fato, Nova Friburgo viveu então um período de estagnação. Não só

as obras na vila pararam, mas também as da estrada que faria a ligação

com o Rio de Janeiro. O clima úmido e frio, bem como o relevo

montanhoso, não favoreciam a cultura de cereais. Apenas uma minoria,

que havia recebido terrenos melhores, conseguia sobreviver da

lavoura.

Finalmente, em meados de 1821, algumas iniciativas foram

tomadas. A comunidade suíça residente na Corte fundou a Sociedade

Filantrópica do Rio de Janeiro, com o objetivo de arrecadar fundos

no Brasil e no exterior para ajudar os colonos de Nova Friburgo. Em

setembro, D. Pedro nomeou um novo diretor para a colônia, João

Vieira de Carvalho, e voltou a pagar subsídios. Aos poucos, Nova

Friburgo foi-se afastando da perspectiva de um fracasso total.6

No decorrer da década, enquanto o Brasil alcançava sua independência

política e se tornava um Império em 1822, Nova Friburgo

começou a progredir, tornando-se lentamente um centro de circulação

de pessoas e mercadorias cada vez mais importante na região.

Após o desastre da primeira safra, os colonos foram caminhando para

uma economia de subsistência satisfatória, produzindo ao menos o

suficiente para se manterem. A chegada, em 1824, de 343 colonos

5 Carta de Pierre Bossinger de 25 de março de 1821, em Nicoulin, op. cit., p. 205.

6 Um trabalho que enfatiza as dificuldades enfrentadas pelos colonos na primeira década de Nova Friburgo é

o de José Carlos Pedro, A colônia do Morro Queimado; suíços e luso-brasileiros na freguesia de São João Batista de Nova Friburgo,

1820-1831 (Niterói, UFF, 1999. Dissertação de mestrado).

alemães traria uma perspectiva de crescimento ainda maior. Nesse

período, um fato relevante foi o deslocamento de muitos suíços em

busca de terras mais férteis, principalmente na direção de Cantagalo,

que na época começava a despontar como pólo cafeeiro. Em 1824, o

Padre Joye fez uma lista dos colonos com idade entre 18 e 40 anos,

segundo a qual 42% encontravam-se em Cantagalo, 50% em Nova

Friburgo, e o restante em outras localidades. A atração exercida pelas

terras quentes de Cantagalo arrebanhou os suíços que buscavam, além

da subsistência, a fortuna que o café poderia proporcionar. Isso

explica a redução da população da vila de Nova Friburgo, que, segundo

Martin Nicoulin, em 1830 contava apenas 632 habitantes. Lá permaneceram,

de modo geral, além das famílias mais frágeis por

pro blemas de saúde, dos órfãos e das viúvas, aqueles que pretendiam

dedicar-se ao trabalho artesanal e ao comércio.

Apesar de tudo, em 1830, Nova Friburgo já havia saído do estado

de penúria inicial e ingressado numa fase de estabilidade. A análise de

alguns dados permite traçar um perfil da vila, que até 1850 sofreu

poucas alterações demográficas. Sua população em 1851, segundo o

ministro do Império Cansanção de Sinimbu, era de 489 habitantes

livres e 195 escravos.7 Mas é importante notar que isso representava

apenas 14% do total do município, que somava 3.028 habitantes

livres e 1.782 escravos. Esses números mostram que Nova Friburgo,

que possuía além da vila duas freguesias onde se cultivava o café –

Nossa Senhora da Conceição do Paquequer, atual Sumidouro, e São

José do Ribeirão, atual Bom Jardim –, era naquela época um município

predominantemente rural.

A localização geográfica fazia da vila um ponto de parada entre

Cantagalo e o Rio de Janeiro, e o fluxo freqüente de tropeiros que

transportavam café impulsionava algumas atividades comerciais, como

por exemplo as estrebarias e as casas de forragem. Havia também as vendas,

nas quais os tropeiros podiam encontrar artigos de primeira necessidade

como arreios, ferraduras, foices, machados, farinha, fumo, tecidos

grossos etc. O desenvolvimento dessas trocas comerciais, como

observou Sinimbu, incentivou alguns melhoramentos: “De miseráveis

31

7 Cansanção de Sinimbu, citado por João Raimundo Araújo, Nova Friburgo: o processo de industrialização da Suíça

brasileira, 1890-1930 (Niterói, UFF, 1992. Dissertação de mestrado), p. 56.

Nova Friburgo na década de 1860.

Nova Friburgo na década de 1870.

Nova Friburgo em 1895.

Praça 15 de Novembro em Nova Friburgo, na década de 1910.

34

barracas que eram, [as casas] foram convertidas em prédios cômodos

que oferecem confortável abrigo aos seus habitadores e aos hóspedes,

que, por doentes ou por evitarem a canícula da Corte, procuram respirar

o ar puro e temperado das montanhas de Friburgo.”8

A expansão de Nova Friburgo a partir de meados do século XIX

esteve, sem dúvida, diretamente associada à das fazendas de café loca -

lizadas na região de Cantagalo. Na época, a cafeicultura intensificava seu

papel impulsionador de uma série de transformações em todo o país.

Entre 1841 e 1850, o café já representava 41,5% de todos os produtos

exportados pelo Império, enquanto o açúcar, por exemplo, correspondia

a 26,7%.9 O desenvolvimento da cafeicultura, primeiro no vale do

Paraíba e depois no oeste paulista, trouxe uma dinamização socio -

econômica que permitiu uma relativa modernização, com a melhoria dos

meios de transporte, o estímulo à imigração estrangeira e o crescimento

das cidades, sobretudo em São Paulo. Esse processo atingiu também

Nova Friburgo, principalmente a partir de 1870, quando a produção de

café de Cantagalo chegou ao seu apogeu. Para se ter um termo de comparação,

a produção média em Cantagalo, na época, era de 6.172 pés de

café plantados por escravo produtivo, enquanto no vale do Paraíba a

média era de seis mil pés e, na região de Santos, de apenas três mil.10

A influência do café em Nova Friburgo se fez sentir, em primeiro

lugar, pelo fato de a vila ser local de passagem para os tropeiros que

levavam o produto para o porto do Rio de Janeiro. Isso incentivou não

só o comércio, mas a própria produção de gêneros alimentícios. No

meio das montanhas, começou assim a despontar um núcleo urbano,

dotado além do mais de uma particularidade que serviria de chamariz

para os habitantes da Corte e de outras cidades próximas: um clima

ameno, que fazia bem à saúde. Ao lado do clima, como lembra Bento

Luiz de Moraes Lisboa, a topografia foi outro fator que contribuiu

para a expansão de Nova Friburgo: “Friburgo cresceu porque foi loca -

lizada em um local com facilidade topográfica de expansão, coisa que

Cantagalo não tem.”11 De fato, apesar de contar com uma imensa pro-

8 Cansanção de Sinimbu, citado por Clélio Erthal, Cantagalo - da miragem do ouro ao esplendor do café (Niterói: Gráfica

Erthal, 1992), p. 147.

9 Nelson Werneck Sodré, História da burguesia brasileira (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964), p. 78.

10 Eliana Vinhaes, Cantagalo: as formas de organização e acumulação da terra e da riqueza local (Rio de Janeiro, IFCS-UFRJ,

1992. Dissertação de mestrado), p. 96.

11 Entrevista concedida a Marieta de Moraes Ferreira em setembro de 1998.

dução cafeeira em seus arredores, a vila de Cantagalo não chegou

naquele período a ser um núcleo urbano de expressão.

Por que era tão procurado o ar puro de Nova Friburgo? Primeiro,

porque o Rio de Janeiro do século XIX era assolado por constantes

epidemias de varíola e de febre amarela. Procurava-se a região serrana

que limitava a baixada litorânea fluminense porque, de acordo com os

médicos do Império, os surtos de doenças infecciosas eram provocados

pelo “ar corrompido” que vinha do mar e pairava sobre a cidade.

Os médicos recomendavam, assim, que os que pudessem se afastassem,

sobretudo no verão, e prescreviam para os que ficavam

restrições alimentares, algumas absurdas, como a condenação do consumo

de líquidos. Outra providência que hoje faz sorrir era a ordem

para que periodicamente fossem disparados tiros de canhão, a fim de

movimentar o ar que as pessoas respiravam.12 A chegada de navios

estrangeiros ao porto era uma constante fonte de apreensão, pela

possibilidade de contaminação. Sendo assim, o melhor que os ricos

habitantes da Corte tinham a fazer era escapar do calor e das doenças

subindo a serra. Mas o ar puro não era visto apenas como um meio de

prevenir possíveis doenças trazidas pelo mar. Era também o único

tratamento disponível para doenças do pulmão, como a tuberculose,

numa época em que ainda não se conhecia a penicilina. Se eram

famosos os sanatórios da Suíça, por que não experimentar

hospedarias para doentes em Nova Friburgo?

Em 1848, segundo Sérgio Ioset Salusse Bittencourt-Sampaio em

seu livro sobre o Hotel Salusse, havia somente três hospedarias para

abrigar os forasteiros, veranistas ou doentes, que visitavam Nova

Friburgo – a dos Salusse, a de Mindelino Francisco de Oliveira e a de

Mme Clair. Nos anos seguintes novos estabelecimentos seriam re -

gistrados, como o de Gustavo Leuenroth, o de Pedro Boulanger, o de

Amâncio José Pereira de Souza ou o de Francisco José de Magalhães,

o que indica a expansão desse tipo de atividade.13

Já no início da década de 1870, a vila passou a contar com um

centro hidroterápico, que se tornaria mais um elemento de atração

de hóspedes.14 A hidroterapia foi um recurso utilizado pela primeira

35

12 Cláudio Bertoli Filho, História da saúde pública no Brasil (São Paulo: Ática, 1996), p. 8-15.

13 Sérgio Ioset Salusse Bittencourt-Sampaio, O Hotel Salusse em Nova Friburgo (Rio de Janeiro: ZMF, 1997), p. 22.

14 As informações sobre o centro hidroterápico foram extraídas de Bittencourt-Sampaio, op. cit., p. 73-80.

36

vez por Vinzens Priessnitz (1790-1851) e no decorrer do século XIX

ganhou popularidade no tratamento das mais diversas doenças,

como anemia, diarréia, distúrbios mentais, reumatismo, tuberculose

inicial, febres intermitentes e outras. No Brasil já haviam sido

feitos alguns experimentos, mas não existia nenhum centro nos

moldes do que foi fundado em Nova Friburgo em 1871 pelo médico

italiano Carlo Eboli em sociedade com o Dr. Fortunato Corrêa de

Azevedo. Carlo Eboli criou em Nova Friburgo uma clínica com os

recursos mais modernos da “hidroterapia científica”. O tratamento

consistia na utilização da água sob diferentes formas e temperaturas,

em banhos, duchas, toalhas molhadas, loções. A ingestão de água fria

também era recomendada. O tratamento completo incluía ainda um

programa de exercícios físicos, a utilização de sudoríferos, massagens,

e uma alimentação balanceada.

O Instituto Hidroterápico, que depois seria chamado

Estabelecimento Hidroterápico de Nova Friburgo, foi instalado em

um amplo prédio na Rua General Câmara, contíguo ao Hotel

Central, onde ficavam hospedados os pacientes. Em caso de lotação

do Hotel Central, estes eram encaminhados ao Hotel Salusse, que

ficava próximo. O Estabelecimento passou a ser bastante procurado

por pessoas que desejavam obter cura para seus males, mas não só por

elas. No verão, a maioria dos hóspedes eram habitantes da Corte que

subiam a serra para veranear e aproveitavam a estada para desfrutar

dos benefícios da hidroterapia.

No interior de um mundo rural, povoado de fazendas, a vila de

Nova Friburgo detinha um outro trunfo importante: colégios,

onde os jovens podiam receber uma instrução formal, considerada

cada vez mais necessária para um bom desempenho na vida adulta.

A vila começou assim a se firmar como um pólo de atração para a

elite rural da região, que lá passou a construir casas e a educar seus

filhos. Na verdade, os colégios friburguenses recebiam alunos não

só das fazendas adjacentes, mas também do Rio de Janeiro e de ou -

tras províncias. Segundo Galdino do Valle Filho, em seu livro de

memórias sobre a cidade, “uma nota característica da vida social de

Friburgo foi a existência, em todos os tempos, de excelentes colégios

que atraíam de toda a parte a juventude dourada das famílias

abastadas”. No seu entender, houve uma “idade de ouro na vida da

15 Galdino do Valle Filho, Lendas e legendas de Nova Friburgo (Rio de Janeiro: Gráfica A Pernambucana, 1928), p. 55.

16 Heloísa Beatriz Serzedelo Corrêa, Nova Friburgo - nascimento da indústria (1890-1930), (Niterói, UFF.

Dissertação de mestrado), p. 32.

cidade, que poderia chamar-se, sem exagero, de fase educacional”.

15 As visitas dos pais dos alunos internos, como as dos

demais forasteiros, também movimentavam as ruas e os hotéis e

impulsionavam o comércio. Porém, mais que movimento, a educação

deu a Nova Friburgo “uma certa feição presente nos próprios

valores da sociedade local”, o que se refletia na imprensa, onde os

problemas da educação ocupavam lugar de destaque.16

As moças e rapazes que iam estudar em Nova Friburgo distribuíam-

se entre o Colégio Feminino Friburguense, o Colégio

Braune, o Colégio das Dorotéias, o Liceu (ou Lyceo, na grafia da

época), o Colégio Freese e, finalmente, o Colégio Anchieta, fundado

em 1886. A presença de um colégio jesuíta é por si só indicativa

do caráter de centro educacional que Nova Friburgo adquiriu ao

longo da segunda metade do século XIX. Quando, em 1885, o Padre

José Maria Montero, de passagem pela Corte, propôs à Companhia

de Jesus fundar um colégio na região de Cantagalo, recebeu resposta

37

Colégio Anchieta em 1905.

Palacete de Elias Antônio de Moraes (2.º Barão das Duas Barras), em Nova Friburgo.

17 Citado por João Raimundo Araújo, op. cit., p. 238.

18 Idem, ibidem.

favorável à criação da instituição em Nova Friburgo. Logo em seguida

o Padre Lourenço Rossi foi nomeado reitor do Colégio Anchieta,

que foi instalado num casarão conhecido como Chateau, antiga sede

da fazenda do Morro Queimado, que já tinha abrigado outros educandários.

Em 12 de abril de 1886, na inauguração do colégio, foi

celebrada uma missa na presença das famílias dos primeiros sete

alunos.

Nos anos seguintes, o Anchieta ganhou fama pelo alto nível de seu

ensino e passou a receber um número cada vez maior de estudantes.

Por isso mesmo, em 1902 teria início a construção de uma nova sede,

uma vez que o Chateau se tornara pequeno para abrigar o grande

número de alunos. A revista A Lanterna deu especial destaque à

construção do novo prédio, a ele referindo-se da seguinte forma: “O

edifício do Colégio Anchieta, em véspera de acabamento, é conside -

rado desde já um dos mais belos monumentos do Brasil. [...] Ocupa

uma área de 5.000 metros quadrados, tem três andares e está situado

sobre a encosta da montanha, dominando toda a cidade de Friburgo

e arredores”.17

O Anchieta, que recebia jovens de vários pontos do país e até

alguns estrangeiros, chegou a ter, no início do século XX, aproximadamente

600 alunos matriculados. O reconhecimento da qualidade de

seu ensino também pode ser atestado pelo fato de universidades

estrangeiras, como a de Fribourg e a de Detroit, aceitarem os alunos ali

formados sem necessidade de exames vestibulares. O currículo do

colégio era bastante amplo, e havia ainda atividades extracurriculares,

como aulas de esgrima, de tiro e de música, entre outras.18

Nesse quadro de expansão, logo se percebeu que a construção de

uma ferrovia unindo o Rio de Janeiro a Nova Friburgo e a Cantagalo

atenderia a vários interesses: serviria não só ao escoamento da produção

cafeeira, mas também ao transporte de um contingente cada vez

maior de veranistas e de estudantes com suas famílias. Assim, a

Estrada de Ferro Cantagalo começou a ser construída em 1859, dois

anos depois que Antônio Clemente Pinto, Barão de Nova Friburgo,

obteve a concessão do Imperador D. Pedro II. Em 1870 foi concluído

o trecho entre Porto das Caixas e Cachoeiras de Macacu, e em 1873

39

40

o trecho entre Macacu e Nova Friburgo. A ferrovia, inaugurada com

a presença do próprio Imperador, provocaria grandes transformações

na vida local. Em 1897, um cronista assim descrevia o acontecimento

que era a chegada dos trens de passageiros na estação: “E a cidade toda

se desperta do seu recolhimento preguiçoso para vir espiar o trem e

examinar a catadura dos passageiros que desembarcam. O trem segue

a caminho de Cantagalo; e os recém-chegados a Friburgo, recebidos

por suas famílias e amigos, que açodadamente se aglomeravam na

estação, tomam a pé ou de carro, gárrulos e expansivos, o caminho do

hotel ou de casas particulares.”19

A partir da década de 1880, Nova Friburgo começou a sofrer

mudanças no seu espaço urbano. A necessidade de embelezá-lo, tornando-

o mais agradável não só a seus habitantes, mas também aos

hóspedes cada vez mais freqüentes, era reconhecida como urgente

pelos grupos políticos locais. Assim, a Praça Princesa Isabel (que na

República passaria a se chamar 15 de Novembro) foi inteiramente

remodelada, graças a Bernardo Clemente Pinto, Conde de Nova

Friburgo, filho do Barão, que financiou a execução da obra. O projeto

foi feito pelo famoso paisagista francês Auguste François Marie

Glaziou, autor dos jardins da Quinta da Boa Vista e do Campo de

Santana, bem como da reforma do Passeio Público, no Rio de Janeiro.

Em 1892 foi ajardinada a Praça Paissandu, que algum tempo depois

passaria por nova reforma.20 Àquela altura, Nova Friburgo deixara de

ser uma simples vila: por decreto de janeiro de 1890, passou à categoria

de cidade.

Mas a cidade não atraía apenas turistas abastados e alegres. Atraía

também os pobres da região e os escravos libertos, principalmente

depois da Abolição, em 1888. Além de promover melhoramentos na

paisagem urbana, a municipalidade procurou então criar mecanismos

para controlar esses migrantes, instituindo medidas de higiene pública

através da promulgação de um Código de Posturas, em 1893. Entre

outras coisas, o código proibia a população de jogar “águas pútridas”

e lixo nas ruas, vedava a manutenção de porcos no perímetro urbano,

regulamentava o comércio ambulante e fixava multas para os trans-

19 Crônica publicada em O Paiz em 21 de janeiro de 1897, citada João Raimundo Araújo, op. cit., p. 126.

20 Carlos Rodolpho Fischer, Uma história em quatro tempos (Nova Friburgo: Tip. da Fábrica de Rendas Arp,

1986), p. 66.

21 Indicador Fluminense, 1898, ano 1 (Nova Friburgo: Editores Otílio Cardoso e Irmão, Tipografia Friburguense, 1898).

22 Heloísa Beatriz Serzedelo Corrêa, op. cit., p. 73

gressores. Nessa tentativa de substituir costumes identificados com a

vida no campo por hábitos mais de acordo com a modernidade – ou

com “a ci vilização”, como então se dizia –, pode-se perceber um início

de atuação mais efetiva do poder público. Mas não se deve exagerar

sua importância. Ao lado de uma organização governamental incipiente,

representada pela Câmara Municipal e posteriormente pela

Prefeitura, eram na verdade os donos das grandes fortunas que exerciam

o papel de benfeitores da localidade. Os exemplos mais típicos

são os do Barão e do Conde de Nova Friburgo, que, além de benfeitorias,

deram à cidade, ao elegê-la como local de residência, um ar

mais refinado. Pertenciam à família Clemente Pinto as mais suntuosas

construções locais.

Em 1898, de acordo com o Indicador Fluminense, Nova Friburgo já

possuía oito hotéis, oito escolas, um restaurante, nove casas de pasto,

16 botequins, dois cafés, um quiosque, cinco bilhares, oito barbearias,

duas chapelarias, cinco padarias, duas confeitarias, quatro

depósitos de cigarros e charutos, uma papelaria, cinco alfaiatarias,

cinco marcenarias, oito sapatarias, três ferrarias, duas serralherias,

três relojoarias, um ferreiro, três funilarias, uma tipografia, duas

joalherias, duas colchoarias e uma chapelaria.21 Em 1900, de acordo

com o IBGE, Nova Friburgo, com seus 16.117 habitantes, era a terceira

cidade do centro-norte fluminense.22

Toda essa expansão se deu na ausência de um elemento que hoje

parece indispensável nos mínimos detalhes da vida cotidiana: a energia

elétrica. Em 1898 a Câmara Municipal concedeu a um particular

o direito de implantar e explorar a eletrificação pública e privada na

cidade, mas até 1911 as obras ainda não tinham sido concluídas. Tal

fato era um empecilho ao desenvolvimento da indústria, a atividade

econômica que se anunciava no novo século como fonte de riqueza e

esperança. Afinal, com o apoio da população, que chegou inclusive a

promover uma “noite do quebra-lampiões”, o industrial Julius Arp

obteve a concessão dos serviços de eletricidade e instalou em Nova

Friburgo sua fábrica de rendas. A ela se seguiriam a fábrica Ypu, de

ligas, passamanarias e suspensórios, de propriedade de Maximilian

41

42

Falk; a fábrica de rendas e bordados M. Singen e Cia; a fábrica Filó e

Cia, de Gustav e Ernest Otto Siems; a fábrica de ferragens Hans

Gaiser. Além dessas grandes fábricas, formadas com capital alemão,

surgiriam outros empreendimentos menores, dedicados à produção

de macarrão, cerveja, salames, mortadelas e outros produtos.23 Um

novo capítulo se iniciava na história de Nova Friburgo.

A

Esta breve reconstituição dos primeiros cem anos de Nova

Friburgo permite entender o que ali foram fazer aqueles que iriam se

tornar os ocupantes da Chácara do Paraíso. Os nomes Voeber, Zahno

e Thorin constam da lista de colonos levantada por Martin Nicoulin.

Nela também aparece o nome da família Joset. A jovem Marianne

Joset, chegada ao Novo Mundo aos 14 anos de idade, casou-se alguns

anos depois com o francês Guillaume Salusse, capitão de longo curso

da marinha mercante francesa que desembarcou no Rio de Janeiro e

decidiu instalar-se na colônia dos suíços, não se sabe exatamente por

quê. Eram os pais de Josephina Salusse.

Enquanto a vida da família Salusse, proprietária de um hotel que

se tornou famoso, se confundia com a história da cidade, novos personagens

foram chegando. Em meados do século veio para Friburgo

o jovem José Antônio Marques Braga. Pode-se perguntar o que teria

levado um jovem rico, educado, residente na Corte, a internar-se

numa vila sem muitos atrativos, com menos de 500 habitantes. Ainda

que a documentação não forneça respostas, pode-se supor que o

motivo tenha sido a busca de tratamento para alguma doença grave.

Essa é também a versão da memória familiar. O fato de ter-se casado

com a friburguense Josephina Salusse certamente contribuiu para

fixá-lo no lugar.

Alguns anos depois de José Antônio, chegaram à vila os irmãos

Neves, de São João del Rei, filhos de abastado comerciante português

e de senhora de longa genealogia. O primeiro, Galdino Emiliano,

tinha se casado no Rio de Janeiro com Adelaide Monteiro de

Mendonça e veio para as montanhas em busca de cura para a mulher.

Esta não resistiu à tuberculose e o deixou viúvo com um casal de filhos

23 Sobre a industrialização de Nova Friburgo, ver João Raimundo Araújo, op. cit., e Heloísa Beatriz Serzedelo

Corrêa, op. cit.

24 Eram eles: Alberto Teixeira da Costa (1889-1894); Alfredo Pereira de Moraes (1897-1898); Álvaro Ferreira

de Moraes (1887-1890); Antônio Corrêa de Moraes (1888); Augusto Marques Braga Júnior (1889-1890);

Carlos Engert Milward de Azevedo (1901-1904); Euclydes Veiga de Moraes (1898-1901); Galiano Emílio das

Neves (1903-1908); Gastão Cornélio de Moraes (1886-1890,1892); Guilherme Salusse (1916-1917); João

Batista Marques Braga (1901); João Corrêa de Moraes (1888); João Ferreira de Moraes (1887-1890); João

Pereira de Mello Moraes (1888-1890); João Pereira de Moraes (1897-1898); José Antônio Marques Braga

(1886-1889); José Elias de Moraes da Fonseca Portella (1920); José Galiano Fontes das Neves (1903, 1905-

1908); José Veiga de Moraes (1908-1912); Raul Moraes da Veiga (1888-1890); Renato Veiga de Moraes (1903-

1911); Roberto de Moraes Veiga (1897); Roberto Grey (1910); Tancredo de Moraes Veiga (1897) e Thelio de

Moraes (1887-1894).

pequenos, que foram criados por uma parenta em São João Del Rei.

O segundo irmão, Galiano Emílio, sofrendo do mesmo mal da cunhada,

também veio em busca de bons ares e teve melhor sorte. Fixou-se

em Nova Friburgo e tornou-se proprietário do Colégio Freese, além

de exercer vários cargos públicos. Pouco depois da vinda de Galiano,

o terceiro irmão, Joviano Firmino, seguiu seu exemplo: também se

mudou para Friburgo e passou a trabalhar no Colégio Freese, entre

outras atividades. Joviano casou-se com Sophia Salusse, e pouco

depois Galiano casou-se com a irmã desta, Josephina, que tinha

enviuvado de José Antônio. Em 1870, Augusto, filho de José Antônio

e Josephina, iria casar-se com a sobrinha do padastro, filha de Galdino

Emiliano, chamada como a mãe Adelaide, mas conhecida como Zinha.

Finalmente, na segunda metade do século XIX, começaram

a chegar a Nova Friburgo, vindo das fazendas da região de Cantagalo,

os ricos Moraes, descendentes ou parentes do Barão das Duas Barras.

O objetivo, dessa vez, era a educação dos jovens nos bons colégios da

cidade. De fato, levantamento feito na lista de alunos matriculados

no Colégio Anchieta no período de 1886 a 1922 mostra que nela

constavam 25 rapazes ligados à família Moraes.24

Amélia de Moraes, filha mais moça do Barão, e seu marido e primo

Vicente Ferreira de Moraes, tinham sua residência principal na fazenda

São Lourenço, mas adquiriram também uma casa em Nova

Friburgo, onde estudaram alguns de seus filhos. Não foi esse o caso dos

dois mais moços, Vicente e Henrique, que desde pequenos foram

mandados para a casa da irmã mais velha, Meloca de Moraes Costa

Reis, no Rio de Janeiro, para estudar. Mas o vínculo dos irmãos com

Nova Friburgo permaneceu: a cidade das montanhas era o lugar da casa

de seus pais, tios e primos, das férias na infância e na juventude. Tanto

é assim que os nomes dos três podem ser vistos na lista de participantes

do piquenique realizado na Chácara de D. Zinha Braga em 1902.

43

44

No início do século XX, estando já distantes os tempos rudes dos

pioneiros suíços e dos fazendeiros que desbravaram as matas de

Cantagalo para plantar café, os descendentes dos Salusse, Marques

Braga, Neves e Moraes, assim como os filhos de outras famílias abastadas,

constituíam a elite friburguense, interligada por múltiplos laços

de parentesco. A situação confortável e os hábitos de lazer dessa elite

local descritos na notícia sobre o piquenique podem ser vislumbrados

em outro registro na imprensa de Nova Friburgo, referente a uma

“batalha de flores” realizada em março de 1900.25 Escreve o jornalista:

“Não podia ter-se revestido de maior brilhantismo a grande

batalha de flores realizada em nossa pitoresca cidade no dia

21 do corrente, pois tudo concorreu para que os esforços da

digna comissão [organizadora] fossem coroados do mais

completo triunfo. A ornamentação artística dos carros, o

entusiasmo delirante que reinou durante toda a festa, as

toilettes das gentis senhoritas formaram um conjunto tão

agradável, um quadro de tão variegadas cores que treme a

nossa pena pela pobreza do colorido com que tem de reproduzir

as mais variadas cambiantes que soube apresentar-nos

o luxuoso e florido préstito que desfilara imponente pelas

alamedas que circundam a Praça 15 de Novembro.”

Batalha de Flores no Carnaval em Nova Friburgo. Pequenina e os irmãos.

25 A Sentinela, 25 de março de 1900.

O jornal destaca alguns dos carros participantes do desfile, como

por exemplo o de Augusto Marques Braga, “que tinha a seu lado a sua

interessante irmã Pequenina e o Dr. Alberto Teixeira da Costa”. O

carro estava ornamentado em “estilo japonês: enorme e vistoso

chapéu de sol artisticamente desenhado, trazendo pendentes das

varetas guirlandas de papoulas; estava uma verdadeira tetéia”...

Tanto o piquenique quanto a batalha de flores evidenciam a

existência em Nova Friburgo de uma cultura de elite marcadamente

européia. Nesse aspecto, a alta sociedade serrana nada mais fazia que

acompanhar os ditames da capital. Do fim do século XIX até o início

da Primeira Guerra Mundial, em 1914, a elite carioca viveu o que foi

chamado de “Belle Époque tropical”.26 As famílias abastadas da “Suíça

brasileira” fizeram o mesmo.

Como se pode ver pelo registro do jornal A Sentinela, Pequenina

também estava presente ao piquenique de 1902. Não se sabe se foi aí

que ela e Vicente, ambos com 15 anos, começaram um namorico, mas

o fato é que oito anos depois viriam a se casar. Deviam mesmo guardar

boas lembranças do Paraíso de sua juventude.

45

26 Jeffrey D. Needel, Belle Époque tropical (São Paulo: Companhia das Letras, 1993).

“Meu neto, dá cá teu neto”: Marianne Joset Salusse com a filha Josephina,

o neto Augusto, a bisneta Maria José e o trineto Alberto.

47

Os Pioneiros

que Marianne Joset, a mãe de Josephina, teria desembarcado

no Brasil órfã, aos 14 anos de idade, após perder toda a família

num dos navios que trouxeram os suíços de Antuérpia para o

Rio de Janeiro. Sozinha, ela teria conseguido sobreviver na

terra estranha, casar-se e construir uma história que é bastante

valorizada por seus descendentes. É também a memória fami -

liar que atribui a permanência no Brasil do francês Guillaume

Salusse, marido de Marianne, à queda de Napoleão. Em sua

biografia do poeta Júlio Salusse, neto de Guillaume, Nilo

Bruzzi faz um longo relato das aventuras militares do avô de seu

biografado e chega a mencionar sua participação, em 1805 –

teria então 17 anos –, na batalha de Tralfagar, em que a

esquadra francesa foi fragorosamente derrotada pelos ingleses

Reza a lenda familiar

48

comandados pelo almirante Nelson.1 Segundo Bruzzi, a queda defi -

nitiva de Napoleão em 1815 e sua morte em 1821, bem como a restauração

monárquica, teriam levado Guillaume a abandonar seu país

natal. Apesar de não existir comprovação documental da participação

de Guillaume Salusse na batalha de Trafalgar, é certo que possuía a

medalha de ouro com os dizeres “À ses compagnons de gloire sa dernière pensée.

Ste. Hélène – Mai – 1821”, que Napoleão mandou cunhar para distribuir

entre aqueles que participaram de suas campanhas. A peça foi conservada

por sua bisneta Regina Salusse.2

Convém verificar o que dizem os documentos. Segundo os dados

levantados por Martin Nicoulin, entre os cerca de dois mil suíços que

em 1819 emigraram para o Brasil, estava a família de Joseph Joset,

oriunda de Courfaivre, pequena localidade agrícola com cerca de 450

habitantes situada no cantão de Berna. Joseph Joset era casado com

Marie Françoise Bandelier, e o casal tinha dois filhos menores:

Marianne, nascida em 1806, e Joseph, nascido em 1808. Na ocasião,

Joseph, pai, tinha 54 anos, e Marie Françoise, 52, idade um tanto

avançada para começar uma aventura em terras desconhecidas, o que

apenas confirma que deviam enfrentar sérias dificuldades em seu

rincão natal. A família Joset embarcou no veleiro Deux Catherine, que,

de todos os navios da frota que rumou para o Rio de Janeiro, foi o

que mais tempo levou para chegar. Entre a partida, em 12 de setembro

de 1819, e o desembarque, em 4 de fevereiro de 1820, passaram-se

146 dias – quase cinco meses! O relato de um passageiro em carta citada

por Nicoulin mostra quão precário era o controle sobre a marcha

daqueles navios que dependiam do vento e das correntes para avançar:

“Por fim, em 7 de dezembro, avistamos as costas do Brasil.

No dia 9, chegamos diante do porto do Rio de Janeiro.

Estávamos bem. Como não se cuidara de lançar âncora

durante a noite, a corrente nos arrastou dez léguas à esquerda.

Bateu um vento contrário e fomos empurrados para

longe. Por fim, em 3 de fevereiro, chegamos de novo às

costas do Brasil.”3

1 Nilo Bruzzi, Júlio Salusse, o último Petrarca (Rio de Janeiro: s. ed., 1950), p. 13-22.

2 Regina Salusse, filha de Eduardo Salusse (Chachá), relatou em entrevista concedida em 11 de novembro de

2000 ter doado a medalha pouco tempo antes a seu sobrinho Ângelo Salusse.

3 Carta do colono Christe, de Bassecourt, citada por Nicoulin, op. cit., p. 160.

Além de ter voltado para trás quando estava prestes a chegar e de

ter passado dois meses à deriva, o Deux Catherine foi a segunda embarcação

em número de óbitos. Dos 357 passageiros, 77 sucumbiram às

duras condições da travessia, o que significa que, em média, a cada

dois dias ao menos um corpo era lançado ao mar.

A viagem deve ter sido extremamente difícil para os Joset. Embora

não se saiba se Marie Françoise e o menino Joseph morreram a bordo

ou já em terra firme, o fato é que não sobreviveram. Mas não foi esse

o caso de Joseph, pai. Segundo informação de Sérgio Ioset Salusse

Bittencourt-Sampaio, trineto de Marianne e Gillaume, Marianne e

Joseph, ao chegarem a Nova Friburgo, foram morar na casa de

número 61, compartilhada com outras famílias, como a do colono

Jean Baptiste Lapère.4 A localização, nos Arquivos do Pró-Memória

da Prefeitura de Nova Friburgo, dos registros da concessão de subsídios

aos colonos pelo governo imperial em 1827 confirma que

Joseph, pai, não morreu durante a viagem. Ao menos durante os sete

anos iniciais, Marianne pôde contar com seu apoio.

Os documentos disponíveis não permitem acompanhar com precisão

os primeiros anos de Marianne e seu pai na colônia de Nova

Friburgo. Poder-se-ia supor que tivessem dirigido suas energias para o

trabalho na lavoura, como os demais colonos. Podem até ter recebido

um lote de terra, mas não há evidência de que se tenham deslocado

para explorá-lo. Ao que tudo indica, Marianne e Joseph permanece -

ram o tempo todo na vila, dedicados ao comércio de pequeno porte.

Também não se sabe como ocorreu a aproximação de Marianne com

Guillaume Salusse, mas parece haver consenso quanto ao fato de que a

união dos dois foi o ponto de partida para a constituição de uma

grande família que se notabilizaria na comunidade local.5

Sérgio Ioset Salusse Bittencourt-Sampaio pesquisou a origem

familiar e os primeiros anos de vida profissional de seu trisavô na

França.6 Segundo ele, Guillaume Marius Salusse nasceu em Toulon em

1788, filho de Martin Salusse, nascido em 1757 e falecido possivelmente

por volta de 1830, e de Anne Donnadieu. Os Salusse seriam provenientes

da Itália (registram-se aí os nomes Saluce e Saluzzo), de onde

49

4 Bittencourt-Sampaio, op. cit., p. 32.

5 A menção à família Salusse nos livros que recuperam a memória local abona tal afirmação. Ver, por exem -

plo, Júlio Pompeu, O álbum de Nova Friburgo (Petrópolis: Oficinas Gráficas L. Silva e C., 1919).

6 Bittencourt-Sampaio, op. cit., p. 35-44.

50

teriam saído para se estabelecer no sul da França. Já os Donnadieu eram

uma tradicional família francesa do Languedoc. Desde cedo Martin

Salusse serviu à marinha francesa, exercendo atividades subalternas

como as de auxiliar de vigilância da proa e de remador de galeras. Mas

o mais importante é que viveu um dos momentos mais agitados da

história da França, o da queda do Antigo Regime.

Segundo o historiador Ernest Labrousse,7 a Revolução Francesa

pode ser dividida em três fases: a era das constituições (1789-1792), a

era das antecipações (1792-1794) e a era das consolidações (1794-

1815). A primeira correspondeu à tentativa de estabelecer um regime

semelhante ao da monarquia constitucional inglesa. No entanto, a

existência de vários grupos sociais com objetivos diferentes no seio do

movimento revolucionário levaria a uma radicalização crescente na

era das antecipações. O conflito político chegaria ao auge no chamado

período do terror, quando milhares de pessoas foram presas e

condenadas à morte na guilhotina. Por fim, a era das consolidações

correspondeu à vitória da alta burguesia sobre os setores populares. A

época do Diretório marcou o início desse período, em que foram

banidos os elementos jacobinos e que culminou com a ascensão de

Napoleão Bonaparte ao poder, em 1799.

A vida de Martin Salusse e de sua família foi marcada por esses

acontecimentos. Com a radicalização do processo revolucionário e a

instalação da chamada era do terror, Martin foi perseguido e viu-se

obrigado a fugir de Toulon, deixando para trás mulher e filho. Diante

de seu desaparecimento, em 1° de julho de 1798 Anne Donnadieu

contraiu segundas núpcias com Paul Flamenc. Na verdade, quando se

casou, Anne já vivia maritalmente com Flamenc havia alguns anos e

tinha três filhos dessa união. Flamenc, segundo as informações levantadas

por Bittencourt-Sampaio, tinha boas relações políticas e

usufruía de boa situação econômica. Ao morrer, em 1838, era um

conceituado negociante. A constituição dessa nova família possibilitou

a Anne Donnadieu e a Guillaume melhores condições de vida.

Ainda que não se tenham informações documentais precisas sobre a

infância e a adolescência de Guillaume, pode-se supor que seu

padrasto lhe tivesse garantido uma sobrevivência confortável e o acesso

a uma boa educação, além de possivelmente ter exercido uma

7 Ernest Labrousse e Roland Mousnier, Le XVIIIème siècle (Paris: Puf, 1953).

influência política favorável às idéias revolucionárias que iriam marcar

as opções futuras do jovem Salusse.

Com aproximadamente 13 anos, Guillaume ingressou na marinha

francesa na qualidade de mousse, categoria de marujos com idade inferior

a 16 anos que deveriam freqüentar um navio-escola até os 18

anos. Sua carreira entre 1802 e 1809 foi recuperada por Bittencourt-

Sampaio na documentação do Serviço Histórico da Marinha Nacional

Francesa, e por ela é possível acompanhar as promoções que obteve e

as viagens que realizou.8 Bittencourt-Sampaio não menciona a batalha

de Trafalgar em 1805, mas sem dúvida a juventude de Guillaume foi

marcada pela figura do imperador dos franceses e pela disseminação

dos princípios revolucionários.

Em 1810, ano em que completou 22 anos, Guillaume ingressou na

marinha mercante. Como tenente e segundo-capitão, realizou viagens

em rotas européias, até ser promovido a capitão de longo curso em

1819, o que lhe abriu a possibilidade de percorrer novos caminhos. Foi

assim que em 1823 embarcou para o Brasil, onde permaneceria pelo

resto da vida. É bem possível que o fim da era napoleônica e a crise

socioeconômica daí advinda o tivessem levado, assim como a outros

franceses, a deixar a pátria em busca de uma nova vida.

De fato, a vitória das monarquias absolutistas sobre Napoleão

inaugurou um período conservador na Europa, durante o qual se

tentou restaurar o Antigo Regime e a ordem absolutista em todas as

regiões afetadas pelos ideais revolucionários de 1789. Também do

ponto de vista socioeconômico, a França enfrentava grandes desequilíbrios.

Entre 1789 e 1815 morreu cerca de 1,5 milhão de pessoas.

Ocorreu ainda uma diminuição da taxa de natalidade, em função dos

conflitos sociais e das guerras. Era grande o número de pessoas feridas

e inaptas para o trabalho, o que favorecia a difusão de um clima

psicológico depressivo. De acordo com o historiador Christophe

Charle, a psicologia coletiva marcada pelo traumatismo da guerra e

pela crise de subsistência teria provocado na França do início do século

XIX, temporariamente, um movimento migratório.9 A emigração,

aí também, se apresentava como uma possibilidade de melhoria de

51

8 Segundo os registros do Serviço Histórico da Marinha Nacional da França, Guillaume Salusse embarcou como

mousse em Toulon, no Le Jeanbars, no dia 23 de setembro de 1801, com destino à Brest, na Bretanha. Entre 1802 e

1809 vários documentos assinalam sua presença em diversas embarcações que partiram de Toulon. A partir de 1808

Guillaume Salusse figura nas listagens na qualidade de timonier aide à 33. Bittencourt-Sampaio, op. cit., p. 41.

9 Christophe Charle, Histoire sociale de la France au XIXème siècle (Paris: Éditions du Seuil, 1991).

52

vida diante de um cenário mergulhado na mais profunda crise

econômica e social.

Após uma temporada no Rio de Janeiro, Guillaume Salusse

decidiu fixar-se em Nova Friburgo. O que o teria levado a trocar a

Corte pela serra, não se sabe ao certo. Problemas de saúde, a melhor

qualidade do clima, a possibilidade de conviver com uma comunidade

de língua francesa? Talvez uma dessas razões, talvez todas elas. O que

se sabe é que data de 1824 sua instalação na colônia dos suíços, então

em processo de recuperação das dificuldades iniciais. A documentação

disponível não informa sobre as atividades de Guillaume Salusse

em seus primeiros anos em Nova Friburgo. A primeira informação

documental encontrada é o registro de seu casamento com Marianne,

realizado na igreja de São João Batista em 1830. Na mesma ocasião,

foi feito o reconhecimento dos dois filhos do casal, Clorinda

Francisca Josepha (Josephina), nascida em 1827, e Pedro Eduardo,

nascido em 1829.10

Na década de 1830, os negócios dos Salusse deslancharam. Em

1831, Guillaume pediu autorização à Câmara de Nova Friburgo para

instalar uma casa de pasto e um bilhar.11 Guillaume certamente possuía

algum capital, e Marianne tinha uma grande disposição para o

trabalho. Ambos perceberam que a expansão da cultura do café em

Cantagalo, e a conseqüente intensificação da circulação de tropeiros

e de mercadorias entre o interior e a Corte, faziam da vila de Nova

Friburgo um ponto de parada obrigatório. Restava-lhes aproveitar o

mercado que ia surgindo. Em 1834, Marianne solicitou à Câmara

licença para “continuar a vender, em sua casa de negócio, secos e

molhados”.12 Com essa iniciativa, a jovem mulher de 28 anos dava

indícios de sua capacidade empreendedora, que só iria aumentar nas

décadas seguintes. Foram crescentes os investimentos do casal na

compra de imóveis ao redor da praça principal da vila. Em outubro

de 1836, Guillaume comprou sete “casas coloniais”, ou seja, casas que

anos antes haviam sido construídas para receber os colonos suíços.

Em 1837, Marianne deu mais um passo na ampliação de suas atividades

ao inaugurar uma hospedaria para os doentes que se dirigiam a

10 O registro está no Livro de Casamentos da catedral de São João Batista, em Nova Friburgo.

11 Arquivos do Pró-Memória da Prefeitura de Nova Friburgo. Atas da Câmara, pasta 133, documento n. 45,

datado de 11 de janeiro de 1831.

12 Idem, documento de 14 de setembro de 1834.

Nova Friburgo em busca de um clima ameno e saudável, capaz de

restaurar a saúde, especialmente daqueles que padeciam de tuberculose

pulmonar. Surgia aí o núcleo inicial do que viria a ser mais tarde

o Hotel Salusse. Nota-se, com relação à origem do hotel, uma

divergência entre a memória familiar e a documentação encontrada.

Aquela considera que o Hotel Salusse resultou da iniciativa de

Marianne de passar a cobrar diárias dos amigos do marido que constantemente

se hospedavam em sua casa. Esta indica que a origem do

famoso hotel foi mesmo uma hospedaria para doentes: em 1839

Guillaume Salusse apresentou um requerimento à Câmara Municipal

solicitando “licença para receber doentes em casa”.13

Tal iniciativa revela a capacidade de avaliação econômica do casal.

Do momento em que a colônia atraía viajantes em busca de cura, os

Salusse, a despeito dos riscos e do trabalho implicado no trato de

doentes, iniciaram esse tipo de atividade. Seu senso de negócios não os

deixava descuidar da cobrança dos aluguéis dos quartos nem mesmo

após o falecimento dos hóspedes. Quando um hóspede morria sem

efetuar os pagamentos devidos, a única alternativa possível era recorrer

à Justiça, e isso foi feito em 1838, contra Pedro Celestino Guibert, e

em 1846, quando o casal Salusse requereu a posse dos bens – um escravo,

um relógio e roupa – do finado devedor Henrique Korfle.14 Esses

eram os recursos possíveis para evitar prejuízos e garantir o sucesso da

hospedaria, que deve ter-se firmado como hotel já em 1841, quando

aparece uma primeira referência no Almanak Laemmert.

Não foram apenas os negócios do casal que se ampliaram durante

esse período. A família também cresceu bastante. Em 1831 nasceu Júlia

Michaela; em 1833, Guilherme; em 1835, Júlio Marius; em 1838, Jean

Edmond; em 1841, Maria Amélia, e em 1846, Sophia. Sustentar e

educar todos esses filhos deve ter sido um grande desafio, especialmente

para Marianne, que se desdobrava entre seus diferentes afazeres.

A

A pequena e simples hospedaria criada no fim da década de 1830

com a finalidade de receber doentes aos poucos foi crescendo, e na

segunda metade do século tornou-se um dos mais importantes hotéis

53

13 Idem, documento de 16 de setembro de 1839.

14 As informações referentes aos processos de cobrança também se encontram nos Arquivos do Pró-Memória

da Prefeitura de Nova Friburgo.

54

da cidade. Ao comentar a vocação de estação de veraneio de Nova

Friburgo, Galdino do Valle Filho destaca o papel do Hotel Salusse.

Diz ele:

“Bem freqüentado por uma elite social que se abalava do Rio

de Janeiro aos primeiros calores do estio acossada pelo

pavor da febre amarela, regurgitante de hóspedes que de

toda a parte acorriam para as duchas de que, graças à iniciativa

do Dr. Eboli, a cidade mantinha então o pri vilégio, o

Hotel Salusse era então o clou social e o centro da season.”15

A memória familiar conserva a imagem do hotel como um ambiente

luxuoso, repleto de objetos requintados. Segundo Beatriz

Getulio Veiga, o hotel “tinha peças de jacarandá, obras de arte,

louças, porcelanas. Inclusive, muitas coisas, Marianne mandou buscar

quando recebeu o Imperador.”16 Consta que o Imperador, quando

foi a Nova Friburgo em 1873, para a inauguração da estrada de

ferro, fez questão de conhecer de perto o Estabelecimento

Hidroterápico e seus modernos aparelhos, mas não há comprovação

de que tenha estado no Hotel Salusse.

Em 1875, Guillaume Salusse morreu. Seu inventário, datado do

mesmo ano, permite perceber o porte do hotel na época.17 Eram 30

quartos com mobiliário semelhante, mas que se diferenciava pela

qualidade do material e pelo estado de conservação, o que influiu na

avaliação. Os móveis do quarto número 10, por exemplo, foram

avaliados em 90$000, os do número 4 em 50$000, e os do número

15 em 20$000. O hóspede que se alojasse no quarto número 10 disporia

de “uma cama de casal americana, pintada; uma cômoda de

cedro; um lavatório de vinhático com pedra mármore e espelho oval;

uma mesa de jacarandá; uma mesa de cabeceira americana; duas

cadeiras de jacarandá; um jarro, uma bacia, uma moringa, dois

colchões, travesseiros, duas almofadas e outro espelho”; no quarto

número 4, de “duas marquesas, uma mesa com gaveta, uma cômoda,

15 Galdino do Valle Filho, op. cit., p. 63.

16 Entrevista a Marieta de Moraes Ferreira e Carlos Eduardo de Castro Leal em 4 de abril de 1998.

17 O inventário de Guillaume Salusse foi localizado por acaso no depósito do Foro de Nova Friburgo, onde

documentos são conservados sem organização e em péssimas condições. Foi feita uma cópia do documento mas

nada garante que o original possa ser encontrado novamente em meio a um caos de poeira e papéis.

Nova Friburgo, em 1870.

Hotel Salusse, em Nova Friburgo, 1890.

56

um lavatório com pedra e espelho, de cedro e em mau estado, três

colchões, seis almofadas, um jarro, uma bacia, uma moringa e duas

cadeiras”; no quarto número 15, de “uma marquesa quebrada; uma

cômoda quebrada (pintada à americana); uma mesa; um lavatório;

uma cadeira ordinária; dois jarros; dois colchões; duas almofadas;

um travesseiro e uma bacia ordinária”.

Os avaliadores do espólio de Guillaume Salusse não mencionavam

obras de arte. Descreviam o salão de baile do hotel como guarnecido

com uma mobília de mogno composta de sofá com assento de palhi -

nha, quatro cadeiras de braço, 17 cadeiras singelas e seis aparadores;

uma mobília de peroba composta de um sofá com assento de palhinha,

quatro cadeiras de braço e 18 cadeiras singelas; e uma mobília austríaca

com sofá de encosto e assento de palhinha e 28 cadeiras. Eram

mencionadas também duas jarras para flores, um lustre de bronze e

mais dois outros de material não especificado, com 12 luzes cada um,

e quatro grandes espelhos com molduras douradas.

Um item de grande valor, que se destacava naquele ambiente especialmente

preparado para os encontros sociais, era um piano francês

da marca Pleyel. O piano, naquela época, não era meramente um

instrumento musical, era o símbolo de um padrão de sociabilidade

europeu. Segundo o historiador Luiz Felipe Alencastro, o piano foi

“a mercadoria-fetiche dessa fase econômica e cultural”. Diante

daquele “móvel aristocrático”, “saraus, bailes e serões musicais

tomavam um novo ritmo”.18

Freqüentado pela elite de Nova Friburgo e também da Corte, o

salão do Hotel Salusse parece ter sido palco de grandes bailes nos

meses mais quentes do ano. O fascínio exercido pelo local fica patente

na nota do jornal A Sentinela em 1902:

“Quem vai naquele salão de arquitetura antiga, ao penetrálo,

sente a impressão que sentiria quem, feliz, transpusesse

os cristalinos umbrais do encantado palácio das ‘Mil e Uma

Noites’ onde à mão delicada da trêfega Fada Azul não

escapou o mais pequeno senão.”19

18 Luiz Felipe Alencastro, Vida privada e ordem privada no Império, em Luiz Felipe de Alencastro (org.), Império:

a corte e a modernidade nacional, vol. 2 de História da vida privada no Brasil, dir. de Fernando Novais, op. cit., p. 47.

19 A Sentinela, 10 de fevereiro de 1902. Esta é a epígrafe do livro de Bittencourt-Sampaio, O Hotel Salusse, op.

cit., p. 10.

É com base nesse tipo de registro que Sérgio Bittencourt-Sampaio

assim reconstitui o brilho do salão:

“Em contraste com a severidade e monotonia da fachada,

destacavam-se a opulência e o requinte do salão de festas, o

mais amplo da cidade, decorado com belíssimo material de

procedência francesa: densas cortinas de cor púrpura, belos

e longos espelhos guarnecidos com galerias áureas minuciosamente

esculpidas em toda a extensão das paredes, os

quais desdobravam ao infinito as imagens realçadas por resplandecentes

lustres de cristal e candelabros.”20

Talvez o testemunho mais interessante seja o de Machado de Assis,

que, em crônica datada de 1893, menciona suas “reminiscências

culinárias” e “coreográficas” do hotel de Marianne, onde esteve em

1879, quando foi a Friburgo para descansar e cuidar da saúde abalada.

Em tom nostálgico, escreve:

“Oh! Bons e saudosos bailes do salão Salusse! Convivas desse

tempo, onde ides vós? Uns morreram, outros casaram, ou -

tros envelheceram; e, no meio de tanta fuga, é provável que

alguns fugissem. Falo de quatorze anos atrás. Resta ao

menos este miserável escriba que, em vez de lá estar outra

vez, no alto da serra, aqui fica a comer-lhe o tempo.”21

A

Após a morte de Guillaume, em 1875, Marianne ainda viveu

muitos anos. Só iria falecer em 1900, aos 94 anos de idade. Chamada

por toda a família de Grand Maman, conviveu com netos e bisnetos e

chegou a posar para uma foto com um trineto no colo. Beatriz

Getulio Veiga relata um episódio que demonstra que na infância de

sua mãe Mariana, bisneta de Marianne, o velho Hotel Salusse ainda

era um ponto de encontros familiares. Nessas reuniões não faltavam

estripulias de crianças: “Mamãe contava que nos grandes jantares que

a Grand Maman dava, de Natal ou coisa assim, mandavam as crianças

dormirem, mas elas ficavam brincando. Juquinha, que era o mais

57

20 Idem, ibidem, p. 70.

21 Crônica publicada em A Semana em 22 de janeiro de 1893. Machado de Assis, Obra Completa III (Rio de

Janeiro: Aguilar, 1962).

58

velho, comandava, e quando acabava o jantar, ele, Mamãe,

Pequenina, Lalaide, Gugusto e João Batista corriam para a sala e

bebiam o resto de vinho que ficava na mesa. Depois ficavam todos

muito cansados e iam dormir...”

A grande figura do Hotel Salusse era sem dúvida Marianne, a pioneira

suíça, que desempenhava um papel-chave não só nos negócios

da família, como na vida social da cidade. A história de Marianne é

contada como uma saga por seus descendentes, que a consideram a

figura central da família, por sua obstinação e capacidade de traba lho.

Guillaume Salusse é também celebrado, sobretudo por seu passado

bonapartista, mas é patente nos relatos a secundarização de seu papel

em comparação com o de Marianne.22

22 Sobre a construção da memória familiar em torno de Marianne Salusse, ver Marieta de Moraes Ferreira e

Camila Dantas, Immigration and memory, em Proceedings of the XI International Oral History Conference, vol. 1 (Istambul,

Turquia, 2000).

Capitão Guilhaume Salusse.

Há um episódio narrado pelos descendentes no qual são enfatizados

o espírito prático e a coragem de Marianne em face das dificuldades da

vida. Conta-se que certa ocasião houve um incêndio no Hotel Salusse.

Diante do cenário de destruição, Guillaume ter-se-ia posto a chorar e

a lamentar os estragos. Marianne teria reagido, dizendo ao marido:

“Chore até as seis horas e depois levante-se e retome o traba lho!” Não

foi encontrada qualquer documentação escrita que confirmasse a

ocorrência de um incêndio no Hotel Salusse, mas o que importa nessa

pequena anedota familiar é que ela expressa a força das representações

da família em torno da figura de Marianne.

Na memória familiar, os casamentos, o nascimento de um novo

membro ou o falecimento de um parente são em geral marcos simbólicos

significativos, análogos às guerras ou outros tipos de ruptura

na história das sociedades.23 É curioso que a memória dos descendentes

dos Salusse não tenha retido o fato de que, quando o casamento

de Marianne e Guillaume foi celebrado em 1830, foi também feito o

registro dos dois primeiros filhos do casal, Josephina, nascida três

anos antes, e Pedro Eduardo, nascido no ano anterior. Esse “nãodito”

nos depoimentos dos descendentes enfatiza um outro aspecto

prezado pelo núcleo familiar, ou seja, o dos valores tradicionais

católicos. A imagem de Marianne não deveria estar associada ao descumprimento

da regra preconizada pela Igreja, segundo a qual só se

deve ter filhos após o casamento.

O importante na imagem de Marianne, para a memória familiar,

está em seu papel de Grand Maman, em sua função, nas palavras de seu

trineto Sérgio Ioset Salusse Bittencourt-Sampaio, de protagonista de

um “núcleo matriarcal”. Do Hotel Salusse, palco de bailes memoráveis,

Marianne exercia uma grande influência sobre os membros da

família, como ficou registrado na memória de sua trineta Beatriz

Getulio Veiga: “Uma das pessoas mais importantes na família foi

Marianne Salusse. Foi uma mulher que mandou os filhos estudarem,

mandou os netos para a Europa, casou a todos muito bem. Foi um

baluarte da família. Todos a consideravam, e a prova é que no Natal e

nas festas de fim de ano não havia um membro da família que não fosse

beijar-lhe as mãos. Acho isso de uma importância extraordinária.”

59

23 Ecléa Bosi destaca o papel desses eventos enquanto marcos simbólicos fundamentais na estruturação das

memórias familiares. Ver Memória de velhos, em Boris Fausto, Negócios e ócios (São Paulo: Companhia das Letras,

1997), p. 7.

Josephina Salusse Marques Braga (Óleo de autor desconhecido).

61

Integração e Ascensão Social

casou os filhos muito bem é bastante difundida entre seus

descendentes. Assim como Beatriz Getulio Veiga, Sérgio

Bittencourt-Sampaio afirma que Marianne exerceu um papel

fundamental na articulação dos casamentos dos filhos: “Ela

pensou muito bem em com quem casar os filhos. Os genros

eram donos de terras: Marques Braga, o pessoal dos Neves,

Teixeira da Costa… A exceção, entre os filhos, foi o pintor

Pedro Eduardo Salusse, que foi para a Europa e se casou em

Paris com uma belga. Talvez Marianne não tivesse tido controle

sobre essa situação.” 1

Sem dúvida, diferentemente do que aconteceu com a maioria

dos colonos suíços, os filhos de Marianne não se casaram com

A idéia de que Marianne Joset Salusse

1 Entrevista concedida em 17 de julho de 1998.

62

descendentes de seus conterrâneos ou com membros da comunidade

local. Casaram-se com gente de fora da colônia – por sinal, a própria

Marianne havia dado o exemplo, unindo-se não a um suíço, mas a um

francês. Diferentemente, também, dos colonos que se internaram em

seus lotes para se dedicar ao cultivo da terra, Marianne e Guillaume

permaneceram na cidade. Os primeiros, com a ocupação lusobrasileira

da vila de Nova Friburgo e seus arredores, acabaram por ser

marginalizados: passaram a casar-se entre si e foram alijados das

posições de destaque na vida econômica e social do lugar.2 Marianne

e Guillaume, ao contrário, buscaram uma atividade econômica urbana

e investiram num negócio que implicava o contato com gente de ou -

tras regiões do país. Na segunda geração, a família passou a aliar-se a

essa gente pelo casamento. Embora não se possa comprovar o empenho

pessoal de Marianne nas alianças matrimoniais de seus filhos, é possí -

vel falar em uma estratégia familiar voltada para a integração, que por

sua vez abriu a possibilidade de ascensão social.

Marianne e Guillaume tiveram oito filhos, quatro mulheres e quatro

homens, dos quais um casal permaneceu solteiro. Dos filhos

homens, dois se casaram longe das vistas de Marianne, e um se uniu a

uma moça de um município vizinho. Nem todos os maridos das três

filhas casadas eram donos de terras, mas todos tiveram uma boa posição

na sociedade local e todos ocuparam cargos políticos. Na virada do

século, os netos e bisnetos do casal Salusse pertenciam à elite de Nova

Friburgo e participavam de acontecimentos sociais registrados pela

imprensa local.

A

A chegada a Nova Friburgo, em 1843, de José Antônio Marques

Braga iria ter um papel fundamental na ascensão social da família

Salusse. Nascido na travessa de São Francisco de Paula e batizado em 21

de agosto de 1820 na matriz de Santa Ana, no Rio de Janeiro, o jovem

rapaz era filho de José Antônio Marques Braga, comerciante português

de grande porte estabelecido na Corte, e de Gertrudes Cândida

d’Assumpção, cuja origem se desconhece. Na ocasião do batismo, seus

pais não eram casados. O casamento só seria oficiado em maio de 1831,

quando Gertrudes já se encontrava em seu leito de morte. Menos de

um mês após a celebração do matrimônio, Gertrudes faleceu.

2 Jorge Miguel Mayer e José Carlos Pedro, Vida e morte na colônia de Nova Friburgo: um estudo demográfico (Nova Friburgo,

1991, mimeo).

José Antônio Marques Braga (Óleo de autor desconhecido).

64

As informações disponíveis sobre José Antônio Marques Braga,

pai, fornecidas por documentação cartorial depositada no Arquivo

Nacional, são de que nasceu em 1787, em Braga, Portugal, em algum

momento veio para o Rio de Janeiro, e em 1812, já estabelecido, com

boa reputação e crédito na praça, obteve sua matrícula na Junta

de Comércio como comerciante de grosso trato. Possuía em Ponta de

Areia, Niterói, um estaleiro para construção e reparo de navios. Pelas

escrituras de compra e venda de embarcações, percebe-se que mantinha

relações comerciais com várias cidades portuárias do país, na

Bahia e na região Sul, além de Buenos Aires.3

Aos nove anos de idade, José Antônio, filho, foi mandado à

Inglaterra para estudar. Ali estava quando sua mãe faleceu. Como único

herdeiro, recebeu, de acordo com o testamento de Gertrudes, três casas

no bairro do Catete, no Rio de Janeiro, nove escravos e um verdadeiro

baú de tesouros, por ela mesma minuciosamente descritos.4

“Declaro que possuo três fios de pérolas finas de pulseiras,

com 16 fios cada uma, eixo de ouro; um fio grande de pérolas

de pescoço com uma medalha de ouro circundada de

pérolas finas; dois pares de brincos de diamantes grandes, e

mais um par de brincos de pérolas finas, dois pares de rositas

de orelha, uma de brilhante e outra de diamante; um par

de brincos de brilhante e outro de ouro; duas voltas de corais

engrazados em ouro; um relógio de ouro encravado de pérolas

finas; um par de pulseiras de ouro; um faqueiro de dúzia

com todos os seus pertences, bules, açucareiro, salvas

grandes, três pares de castiçais, tudo de prata; duas peças de

ouro; um pouco de moedas de vários valores, tudo de ouro.”

Aos 16 anos, o rapaz retornou ao Brasil na companhia de Alex Reis,

comerciante britânico amigo de seu pai. Chegando ao Rio de Janeiro,

trabalhou por pouco tempo no escritório comercial de outro amigo do

3 Alguns documentos referentes às transações comerciais realizadas por José Antônio Marques Braga, conservados

no Arquivo Nacional, dão idéia da dimensão de seus negócios. Há, por exemplo, um documento de venda

de uma sumaca (antigo navio a vela) denominada Ligeira, “com todas as importâncias e aparelho, pronta a navegar

a qual se acha no porto desta cidade”, a Manuel Ribeiro, em 22 de novembro de 1816, por um conto de

réis; outro de venda de uma galera chamada Novo Supique a Joaquim José Cardoso Guimarães em 29 de maio de

1824, por dois contos de réis; outro que mostra a negociação para “a vinda de uma escuna” da Bahia, em 21 de

janeiro de 1833.

4 O testamento, firmado em 27 de maio de 1831, está depositado no Arquivo Nacional.

pai, o homem de negócios inglês Diogo Kenny. Logo em seguida foi

mandado para Buenos Aires, onde fez um estágio para conhecer os

negócios paternos naquela cidade. Em 1841 voltou ao Rio de Janeiro

para estabelecer uma casa de comércio que mantivesse relações com a

firma de Buenos Aires. Finalmente, a esmerada educação do filho do

velho José Antônio Marques Braga estava concluída, capacitando-o a

assumir os negócios da família. No entanto, em 1843, José Antônio,

então com 23 anos, retirou-se para Nova Friburgo.

Todas essas informações constam de um processo judicial aberto

por ocasião da morte de José Antônio Marques Braga, pai, ocorrida

em 1855 em Paris, no qual José Antônio, filho, requer o recebimento

da herança que lhe cabe e, para tanto, é obrigado a comprovar ser

filho legítimo do morto.5 Nesse processo encontram-se cópias de seu

assentamento de batismo, do registro de casamento de seus pais e do

testamento de Gertrudes, bem como os depoimentos de quatro testemunhas

que narram a trajetória de José Antônio, filho, até aquele

momento. Entretanto, nenhuma das testemunhas menciona as razões

que o teriam conduzido a Nova Friburgo.

Em fevereiro de 1845, dois anos após a chegada a Friburgo, tempo

que talvez tenha levado para se recuperar de alguma doença grave, José

Antônio casou-se com Josephina Salusse, então com 18 anos, nascida

Clorinda Francisca Josepha, e chamada também durante certo tempo,

parece que por sua própria escolha, de “Eglantine”. Um ano e meio

depois, em 24 de julho de 1846, nascia o terceiro José Antônio

Marques Braga, apelidado de Juca, o primeiro neto do casal Salusse.

Para receber o herdeiro, José Antônio comprou, em 26 de fevereiro

daquele ano, seus primeiros imóveis em Nova Friburgo – duas casas e

um terreno na rua Direita, onde a família passou a residir. Em 1849,

nasceu Augusto Marques Braga, o segundo filho do casal.

José Antônio Marques Braga já chegou a Friburgo provido de

recursos, herdados de sua mãe, mas é provável que eles tenham

aumentado por uma doação de seu pai antes de se mudar para Paris.

Ao menos, a data de seus primeiros investimentos em imóveis antecede

de um ano o nascimento de um meio-irmão na capital francesa.

Ali, o velho Marques Braga teve mais dois filhos, além do que deixou

65

5 Arquivo Nacional, Tribunal da Relação, caixa 827, n. 272 (SDJ).

66

no Brasil: Pierre Marques Braga, nascido em 1847, e Joseph Pierre

Marques Braga, nascido em 1852, ambos reconhecidos por ocasião de

seu casamento com a mãe dos meninos, Marie Anne Grandmouge,

em 1853. O fato é que em 1846 José Antônio investiu parte de seu

capital em imóveis na praça principal de Friburgo, em 1858 já era

dono da Chácara dos Inhames, e em 1861 adquiriu grande quantidade

de terras, tornando-se proprietário da fazenda São Bento. Só em

1862 sairia a sentença favorável ao processo que abrira em 1855, o que

veio acrescentar a seus bens nove casas em Niterói no valor de

66:554$000 (66 contos e 554 mil réis).

A instalação de José Antonio na pequena vila de Nova Friburgo,

habituada a padrões modestos, certamente representou a introdução de

novas maneiras e novos hábitos de consumo. Seu inventário, feito no

ano de sua morte, 1864, constitui um instrumento rico para se avaliar

sua vida cotidiana.6 Por ele se pode não apenas conhecer a fortuna que

legou a Josephina e a seus dois filhos, estimada em aproximadamente

210:000$000 (210 contos de réis), mas também observar o grau de

sofisticação do espólio. Um dos itens que chamam a atenção é uma bi -

blioteca com mais de 100 volumes. De acordo com Josephina, os livros,

em virtude de seu valor, só poderiam “ser avaliados por pessoas peritas”.

6 O inventário está depositado no Juízo de Órfãos de Nova Friburgo.

Jovens das famílias Marques Braga, Neves e Salusse na Fonte do Suspiro, em Nova Friburgo.

A lista das obras foi feita por Cristóvão Vieira de Freitas, que avaliou a

biblioteca em 4:177$000 (4 contos e 177 mil réis).

Eis algumas das obras arroladas: Histoire du Consulat et de l’Empire, de

Thiers (20 v.); Histoire de la Révolution Française (10 v.); Mémoires, de Saint-Simon

(20 v.); Fulbering’s Works (12 v.); Adrimon’s History of England (7 v.); Notre Dame

de Paris, de Victor Hugo (3 v.); Histoire de la Marine Française (5 v.); Byron’s Works

(6 v.); Brazil and Brazilians (1 v.); Bíblia Sagrada; Oeuvres, de Rousseau (8 v.);

Fables de La Fontaine; Dictionnaire Français, Roquette; Souvenirs, de Lamartine;

Dictionnaire Français, de Biseburelle; Dictionary Français-Anglais, de Fleming and

Pittens; The Imperial Dictionary (3 v.); Dictionnaire, de Saint Laurent; Encyclopédie de

Connaissances Utiles (2 v.); Dictionnaire, de Lafaye; Dicionário de Português, de

Moraes; Dictionnaire des Sciencies et des Letters, de Bornillet (2 v.); Dictionnaire

d’Histoire et Géographie, de Bornillet (2 v.); Dictionnaire, de Belize; Illustrated Works,

de Shakspeare; Encyclopedia of English Literature (2 v.); Smolett’s Works; Walter Scott’s

Works; Hilton’s Works; Shakespeare Complete Works; Atlas de Gergin; Atlas, de Thiers;

6 Mapas Topográficos.

A biblioteca de José Antônio revela seu interesse intelectual, que

o levou a adquirir ao longo da vida livros de história, obras clássicas

da literatura, enciclopédias e dicionários de inglês, francês e português.

O mobiliário de sua casa, igualmente discriminado em seu

inventário, também é elucidativo de seu padrão de vida. Dele faziam

parte uma mobília com 12 cadeiras, dois consoles, uma mesa oval e

um sofá; uma mobília de mogno com oito cadeiras, dois sofás, três

consoles, uma mesa redonda e um espelho; um sofá estofado e duas

cadeiras; um piano; um candelabro; dois jarros com flores; um par

de castiçais com mangas de vidro; duas estantes para livros; uma mesa

grande redonda; uma pequena escrivaninha; uma mesa para jantar;

24 cadeiras de palhinha; uma cadeira de balanço; um guarda-louça;

quatro armários; dois toucadores; quatro cômodas; dois lavatórios;

cinco marquesas velhas; quatro mesas pequenas; dois espelhos

pequenos; um divã; um aparador, e duas mesas velhas.

Além dos investimentos imobiliários, José Antônio não parece ter

feito aplicações produtivas em Nova Friburgo. Apesar de constarem de

seu inventário ações (por exemplo, títulos da Companhia Férrea

responsável pelo caminho de ferro de Paris a Orléans e da Companhia

de Minas do Loire), esse tipo de bem não constituía a base de seu

espólio. A memória familiar e os documentos disponíveis não dão indícios

de que José Antônio tivesse demonstrado capacidade empresarial

ou interesse pelos negócios. Na época de seu inventário, os “bens de

67

68

raiz” perfaziam cerca de 170:000$000 (170 contos de réis), ou apro -

ximadamente 80% do seu monte-mor. A compra de imóveis e terras

representou mais uma imobilização de capital do que propriamente

uma estratégia de investimento com vistas a aumentar o patrimônio.

Se é verdade que José Antônio Marques Braga tinha um estilo de vida

mais requintado, é preciso notar também que seus bens não chegavam

aos pés das grandes fortunas da elite cafeeira, sobretudo da maior da

região, a do Barão de Nova Friburgo. Ao falecer, em 1872, o Barão legou

a seus herdeiros a impressionante quantia de 774.425 libras, que equi -

valiam a mais de 8.000:000$000 (8 mil contos de réis), ou seja, cerca

de 38 vezes o monte-mor de Marques Braga. De toda forma, José

Antônio desfrutou de condições privilegiadas e, além disso, participou

da política local como vereador, de 1862 até morrer, em 1864.

Dois anos depois da morte do marido, a rica viúva Josephina

casou-se com Galiano Emílio das Neves, então proprietário do

Colégio Freese, que passou a administrar seu grande patrimônio. Na

época, Juca e Augusto, de 20 e 17 anos, foram enviados à Europa,

onde contaram com o apoio dos tios maternos Jean Edmond Salusse

e Adalgisa Pinto Leite e cursaram a Escola de Comércio de Paris. Já

em 1867 os dois rapazes regressavam a Nova Friburgo e tomavam posse

dos bens herdados do pai. Nesse meio tempo, a família havia aumentado:

em outubro de 1866 nascera Galiano Emílio das Neves Jr.

(Chonchon). Em 1870, Galiano foi a São João del Rei acompanhado

da mulher, dos enteados e do filho pequeno para visitar os parentes

que lá permaneciam. Dessa viagem resultou o casamento de Augusto

Marques Braga, filho de Josephina, com Zinha, sobrinha de Galiano.

Quanto a Juca, nunca se casou.

Quando Josephina faleceu, em 1899, seu obituário no jornal A

Sentinela esclarecia que fora com seu primeiro casamento que “a primogênita

de um casal de jovens e pobres colonos [se tornara] uma

senhora rodeada de conforto e do bem-estar que lhe devia reservar

a fortuna do seu marido”. A partir daí Josephina Salusse passara a ser

a “elegante e respeitada Mme Braga”, ainda segundo A Sentinela, “a

mais brilhante estrela da nossa sociedade, animada e comunicativa,

hoje organizando um sarau esplêndido ou um pic-nic ruidoso e alegre”.7

A

7 A Sentinela, 4 de junho de 1899.

A sucessora de Josephina foi sua nora Zinha Braga, também afeita,

com se viu, à vida social. Augusto e Zinha tiveram oito filhos, mas

três morreram pequenos. Sobreviveram Maria José (Neném), nascida

em 1874, José Antônio (Juquinha), nascido em 1876, Augusto

(Gugusto), nascido em 1878, Adelaide (Pequenina), nascida em

1887, e João Batista, nascido em 1888. Todos foram educados em

Nova Friburgo, com exceção de Juquinha, que estudou nas Escolas de

Comércio de Londres e da Suíça. Neném casou-se com Alberto de

Oliveira Maia e teve um filho, Albertinho; Juquinha casou-se com

Laura Sanches e teve 11 filhos; Gugusto morreu solteiro; Pequenina

casou-se com Vicente Ferreira de Moraes e teve quatro filhos, e João

Batista também não se casou.

A

O segundo filho de Guillaume e Marianne, Pedro Eduardo

Salusse, nascido em 1829, passou a juventude ao lado dos pais, auxi -

liando-os nas atividades comerciais, ou seja, administrando a casa de

secos e molhados e o Hotel Salusse, que aos poucos se ia consolidando.

Estudou no Instituto Colegial Nova Friburgo, fundado pelo

inglês John Freese em 1842 – depois Colégio Freese –, e desde o início

de sua vida escolar demonstrou talento para a pintura. Por isso

acabou indo estudar na Bélgica, onde permaneceu dos 28 aos 36

anos. Em lugar de seguir o modelo da irmã mais velha, casando-se

cedo e “bem”, preferiu conhecer novos horizontes.

Durante sua estada na Europa, Pedro Eduardo teve suas qualidades

de pintor reconhecidas ao receber, em 1863, a medalha de ouro

na Exposição de Antuérpia, onde exibiu um quadro que representava

duas águias disputando a presa, um marreco.8 Também durante esse

período, casou-se. As informações guardadas pela memória familiar

são de que sua mulher era belga e se chamava Marie Eugénie Laurreys.

Curiosamente, seu registro de óbito, datado de 26 de junho de 1884,

localizado nos arquivos da catedral de Nova Friburgo, a designa como

Marie Antoinette Laurreys, de nacionalidade francesa.

De regresso ao Brasil, Pedro Eduardo estabeleceu-se em Nova

Friburgo com a mulher. Novamente segundo a memória familiar,

considerando que a dedicação às artes não ajudaria o filho a ganhar a

69

8 Bittencourt-Sampaio, op. cit., p. 48.

70

vida, Marianne teria insistido para que encontrasse ocupação mais

rentável. Premido pela necessidade de sustentar a família, o jovem pintor

teria seguido o conselho da mãe e aberto um açougue. Apesar do

reconhecimento de seu talento, a pintura sempre foi uma atividade

paralela em sua vida. Além de cuidar de seu comércio, Pedro Eduardo

foi eleito vereador em 1891. Na política, defendeu os ideais republicanos

e ligou-se ao Partido Autonomista de Nova Friburgo. Foi também

major da Guarda Nacional. Já no fim da vida, em 1912, fez uma

última exposição na Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro

que foi noticiada pela revista Fon-Fon.9 Faleceu em 1914, aos 82 anos.

O casal Pedro Eduardo e Marie Eugénie teve seis filhos: Eduardo

Salusse (Chachá), Josefina (Fifina), Maria Eugênia, Cecília,

Guilherme e Adalgisa. Os três últimos faleceram cedo. Eduardo

casou-se com Hilda Magalhães e teve cinco filhos (Ângelo, Guilherme,

Heloísa, Regina e Helena); Fifina, casada com Armando Jorge, não

teve descendência, e Maria Eugênia, casada com Eugênio Barcelos,

teve duas filhas. Eduardo Salusse foi o responsável pela construção do

balão que alegrou o piquenique na Chácara de D. Zinha Braga, viúva

de seu primo Augusto, em 1902.

A

A terceira filha do casal Salusse, Júlia Michaela, nascida em 1831, permaneceu

solteira. Encarregou-se da criação do sobrinho Júlio, filho de

seu irmão Júlio Marius, e durante toda a vida dedicou-se ao Hotel Salusse,

auxiliando a mãe. Reconhecendo-a como a filha que “mais me tem ajudado

a ganhar a vida”, Marianne declarou em seu testamento: “Por este

fato e gratidão à dita minha filha Júlia, a instituo herdeira da terça dos

meus bens, livre de ônus ou encargo”. Tal decisão não foi contudo aceita

pelos irmãos de Júlia Michaela, que abriram um processo visando a anulála.

Afinal, Júlia Michaela, tendo a seu lado o sobrinho Júlio Salusse, e

contando com ninguém menos que Rui Barbosa como advogado de defesa,

obteve ganho de causa.10 Faleceu aos 89 anos de idade, em 1920.

A

Guilherme Salusse, o quarto filho, nascido em 1833, também não

se casou e faleceu sem herdeiros em 1870, aos 37 anos. Apesar de ter

9 Idem, ibidem, p. 49.

10 O processo foi publicado no opúsculo Inventário de D. Mariana Salusse. Razões dos apelados D. Júlia Salusse e Dr. Júlio

Salusse, pelo advogado Rui Barbosa (Rio de Janeiro: Companhia Tipográfica do Brasil, 1904).

chegado a exercer um cargo político importante na cidade – foi eleito

vereador em 1865 –, seu inventário mostra que suas posses eram

modestas.11

A

Júlio Marius Salusse, o quinto filho de Guillaume e Marianne,

nascido em 1835, dedicou-se à agricultura e casou-se com Hortênsia

Maria Queiroz, filha de proprietários rurais em Bom Jardim. O casal

teve apenas um filho, também chamado Júlio Mário, que se tornaria

conhecido como o poeta Júlio Salusse. O menino nasceu em 1872 na

fazenda do Gonguy, em Bom Jardim, mas quando tinha apenas

poucos meses de idade Júlio Marius morreu de tifo, aos 37 anos.

Quando do segundo casamento de sua mãe, Júlio Salusse, então

com cinco anos, foi mandado para a casa da avó Marianne, àquela altura

viúva. É o que conta seu biógrafo Nilo Bruzzi, que, ao contrário dos

guardiães da memória familiar, não é muito complacente com com a

Grand Maman. Segundo ele, marcada talvez pelos tempos “terríveis de

trabalho e necessidade”, “fria no esforço de economizar”, Marianne,

“como não sabia fazer um carinho, infundia verdadeiro terror às crianças”.

Se tinha medo da avó, segundo seu biógrafo, Júlio Mário pôde

contar com os cuidados e o amor maternal da tia Júlia Michaela.12

Júlio Salusse fez o curso primário em Nova Friburgo até os 10

anos de idade e foi então enviado para o Rio de Janeiro como aluno

interno do Colégio Pedro II. Aos 15 anos foi estudar em São Paulo, a

fim de se preparar para ingressar na Faculdade de Direito. Voltou

para o Rio em 1889 e aí concluiu o curso de direito em 1896. Nos

seus anos de estudante, continuou a receber o apoio da tia, que

financiou boa parte de uma viagem à Europa realizada durante quase

todo o ano de 1892. Depois de formado, foi nomeado promotor de

justiça em Paraíba do Sul e em seguida em Nova Friburgo. Aí co -

nheceu e se apaixonou platonicamente por Laura de Nova Friburgo,

filha do Conde de Nova Friburgo, que seria a inspiradora de vários de

seus poemas, entre eles seu soneto mais conhecido:

71

11 O inventário de Guilherme Salusse, de 1870, está depositado nos Arquivos do Pró-Memória da Prefeitura

de Nova Friburgo.

12 Nilo Bruzzi, op. cit., p. 27-33.

72

Cisnes

A vida, manso lago azul algumas

Vezes, algumas vezes mar fremente,

Tem sido para nós constantemente

Um lago azul, sem ondas, sem espumas...

Sobre ele, quando, desfazendo as brumas

Matinais, rompe um sol vermelho e quente,

Nós dois vagamos indolentemente,

Como dois cisnes de alvacentas plumas!

Um dia um cisne morrerá por certo:

Quando chegar esse momento incerto,

No lago, onde talvez a água se tisne,

Que o cisne vivo, cheio de saudade,

Nunca mais cante, nem sozinho nade,

Nem nade nunca ao lado de outro cisne...

Em 1894 Júlio Salusse publicou seu primeiro livro de poemas,

Nevrose azul. O segundo, Sombras, foi lançado em 1901. Nunca se casou e

escreveu versos melancólicos até morrer, no Rio de Janeiro, em 1948.

A

Jean Edmond, sexto filho do casal Salusse, nascido em 1838, dife -

rentemente de seus irmãos, passou a maior parte da vida fora de

Friburgo. Segundo sua sobrinha-bisneta Lúcia Marques Braga, fez os

primeiros estudos no Colégio Freese e em seguida viajou para a

Europa, onde se casou com Adalgisa Pinto Leite, filha de rica família

baiana que possuía grandes propriedades em Portugal.13 Jean

Edmond e Adalgisa tiveram duas filhas, Elisa e Alice, e residiram

vários anos na Europa, em Londres, Paris e Lisboa. Na década de

1860, Jean Edmond escreveu à irmã Josephina dando-lhe notícias de

seus filhos, José Antônio e Augusto Marques Braga, que então estudavam

em Paris. Na carta, comentava a importância das viagens para a

formação e a educação dos jovens. Mais tarde, também daria assistência

em Paris à sobrinha Maria Sophia Salusse Neves, filha de sua irmã

Sophia, que lá passou alguns anos estudando a mando da avó

Marianne.

13 Entrevista concedida em 15 de março de 1998.

A presença de Adalgisa foi sem dúvida mais um impulso à sofisticação

da família Salusse. Na década de 1880, Jean Edmond e Adalgisa

retornaram a Nova Friburgo e construíram uma bela casa na Praça

Princesa Isabel, conhecida como “palacete Salusse”. De acordo com

Beatriz Getulio Veiga, neta de Maria Sophia, “a casa deles em Friburgo

era belíssima, e tudo o que eles tinham era do bom e do melhor: louças

da Companhia das Índias, pratarias, móveis maravilhosos, portugueses

e europeus, coisas muito bonitas. Eles tinham preciosidades”.14

Das duas filhas, Alice permaneceu solteira, enquanto Elisa teve

dois casamentos. Do primeiro, com seu primo-irmão Mário Teixeira

da Costa, filho de sua tia Maria Amélia, nasceu Mário Teixeira da

Costa Filho. O segundo casamento foi com Edgar Guerra.

A

As filhas mais moças de Marianne e Guillaume Salusse também se

casaram e constituíram família. Maria Amélia, nascida em 1841,

casou-se em 1865, aos 24 anos, com Manoel José Teixeira da Costa,

que também chegou a Friburgo com problemas pulmonares em busca

73

14 Entrevista a Marieta de Moraes Ferreira e Carlos Eduardo de Castro Leal em 4 de abril de 1998.

Palacete de Jean Edmond e Adalgisa Salusse na Praça Princesa Isabel, em Nova Friburgo. Década de 1880.

74

de tratamento.15 Após o casamento, Manoel radicou-se definitivamente

na cidade e aí exerceu a profissão de boticário de 1866 até

1880. A partir de janeiro de 1890, pouco depois da proclamação da

República, respondeu durante nove meses pela intendência municipal,

exercendo as funções de prefeito de Nova Friburgo.

O casal teve quatro filhos: Alberto Teixeira da Costa; Maria José,

que se casou com Pedro Luís de Oliveira Sayão e teve os filhos Moisés

e Balduína, conhecida como Bidu Sayão; Elvina, “a Bela Viná”, que

se casou com Francisco Leite de Bittencourt Sampaio Júnior e teve os

filhos Francisco e Eustáquio (este último, pai de Sérgio Ioset Salusse

Bittencourt-Sampaio); e Mário Teixeira da Costa, que se casou com

a prima Elisa Salusse, teve um filho a quem deu seu nome, e morreu

cedo, de febre amarela.

Alberto Teixeira da Costa, segundo Sérgio Bittencourt-

Sampaio,16 formou-se em medicina e por toda a vida exerceu a

profissão em Niterói, mas foi sobretudo um importante musicista.

Seu nome está vinculado ao início da carreira da sobrinha Bidu

Sayão, consagrada internacionalmente como soprano lírico. Contra a

opinião da família, Alberto Costa sempre incentivou e defendeu a

sobrinha cantora, que declarava ter herdado do tio seu amor pela

arte. Os manuscritos das numerosas composições de Alberto Costa se

extraviaram, mas uma valsa para piano e quatro canções chegaram até

o presente. Não é difícil adivinhar quem era o autor da letra de uma

delas, intitulada Cisnes.

A

Por fim, a filha caçula de Marianne e Guillaume Salusse, Sophia,

nascida 1846, casou-se em 1864 com Joviano Firmino das Neves, que

veio para Friburgo para trabalhar com o irmão Galiano no Colégio

Freese. Certamente foi esse casamento a origem da aproximação de

Galiano com a irmã mais velha de Sophia, a viúva Josephina. Com os

casamentos de Sophia e Joviano e de Josephina e Galiano começaria

o entrelaçamento das famílias Salusse e Neves.

15 Bittencourt-Sampaio, op. cit., p. 60.

16 Sérgio Ioset Salusse Bittencourt-Sampaio, Imagens de família (esboços biográficos) (Rio de Janeiro: ZMF, 1996), p.

121-125.

A

Curiosamente, ainda que o casal Salusse tenha sido bem-sucedido

em sua estratégia econômica e social, e tenha conservado uma presença

tão forte na memória familiar, hoje o nome Salusse não existe mais em

Nova Friburgo, e poucos o ostentam em outras partes do país. Sérgio

Bittencourt-Sampaio incorporou o Ioset Salusse já adulto, em homenagem

aos trisavós pioneiros. Os últimos herdeiros do nome são os

descendentes de Eduardo Salusse (Chachá). Seu neto Ângelo casou-se

em São Paulo com uma moça de origem japonesa e, num exemplo do

formidável amálgama que as sucessivas ondas migratórias vão formando

através dos tempos, os mais jovens brasileiros portadores do nome

que um casal franco-suíço fincou nas montanhas de Friburgo há quase

dois séculos são três meninos niseis.

75

Adelaide Monteiro de Mendonça e seu marido Galdino Emiliano das Neves.

77

Os Irmãos Vindos de São João Del Rei

que em meados do século XIX saíram de São João del Rei, em

Minas Gerais, e ligaram seus destinos a Nova Friburgo, na

província do Rio de Janeiro, eram três: Galdino Emiliano,

Galiano Emílio e Joviano Firmino. Eram filhos de José

Antônio das Neves e de Ana Luiza de Lacerda. Pouca coisa se

conhece sobre as origens de José Antônio: apenas que era português,

nascido na Ilha Terceira, filho de Brás Ferreira das

Neves e de Maria Josefa do Coração de Jesus. Diferentemente

do marido, Ana Luiza, filha do capitão Leonardo João Chaves

e de Leonarda Luiza de Lacerda, era brasileira de várias ge -

rações e descendente, como se descobriu, de Fernão Dias Paes,

o bandeirante.1 O percurso de seus ancestrais até a antiga região

Os irmãos Neves,

1 Marieta de Moraes Ferreira e Carlos Eduardo Leal, Cinco séculos de alianças (Rio de Janeiro, 2001,

mimeo).

78

das minas espelha, portanto, a história da povoação da colônia e,

sobretudo, da interiorização, que desenharia o território brasileiro

tal como o conhecemos hoje.

Nos primeiros anos do século XVIII, existiam três núcleos principais

na região da mineração: o de Ribeirão do Carmo, que incluía

Ouro Preto, Vila Rica e Mariana, o do Rio das Velhas, e o do Rio das

Mortes, que incluía o Arraial Novo, depois São João del Rei. Houve,

porém uma diferença entre a ocupação do Arraial Novo e a de outras

localidades. O povoamento, aí, se iniciou ainda no fim do século XVII

com fazendas voltadas para a produção de gêneros alimentícios e a

criação de gado nas margens do rio das Mortes. A exploração do ouro

de aluvião, no século XVIII, só veio diversificar ainda mais a estrutura

produtiva local. Por isso, segundo Afonso de Alencastro Graça Filho,

a posterior decadência da extração aurífera não traria conseqüências

drásticas para a vida econômica de São João del Rei, que, no decorrer

do século XIX, seria cognominada “a Princesa do Oeste”.2

A vila de São João del Rei obteve seu foral em 1712 e dois anos

depois, com a criação da comarca do Rio das Mortes, foi elevada a

“cabeça” da comarca. Somente em 1838 obteria o título de cidade,

pela Lei Provincial nº 93. Desde as primeiras décadas do século XIX,

a comarca do Rio das Mortes destacou-se como área abastecedora de

alimentos para a Corte e para outras cidades vizinhas. Em função

disso, e também da proximidade da fronteira com o Rio de Janeiro,

que se podia cruzar pelo Caminho Real, São João del Rei tornou-se

um importante centro comercial e financeiro, em que floresceu uma

elite mercantil próspera e detentora de grande prestígio social. O

comércio em São João del Rei era predominantemente de “molhados

e efeitos da terra”, e em menor escala de “fazendas secas” – “molhados”

eram os gêneros líquidos e comestíveis vindos de fora, como

azeite, vinho e carne seca; “efeitos da terra” eram os gêneros produzidos

na região, como alimentos e aguardente, e “fazendas secas” eram

os artigos de vestuário.3

Os comerciantes de grosso trato da “Princesa do Oeste” também

exerciam uma intensa atividade financeira, sendo credores de muitos

2 As informações históricas sobre São João del Rei aqui apresentadas baseiam-se em Afonso de Alencastro

Graça Filho, A Princesa do Oeste: elite mercantil e economia de subsistência em São João del Rei, 1831-1888 (Rio de Janeiro,

IFCS-UFRJ,1998. Tese de doutorado).

3 Graça Filho, op. cit., p. 66.

agricultores. Ao traçar o perfil da elite mercantil local, Graça Filho

destaca que muitos comerciantes eram de nacionalidade portuguesa,

mas que entre eles e os comerciantes brasileiros existia grande coesão,

graças, sobretudo às alianças matrimoniais. Outro dado relevante

sobre os comerciantes sanjoanenses é que o investimento em atividades

produtivas (terras, lavoura, animais e escravos) era inferior

àquele feito em imóveis urbanos, apólices ou dívidas ativas. Isso significa

que, quando enriqueciam, não se desligavam das atividades

mercantis para se tornarem grandes proprietários rurais.

Entre os negociantes preeminentes da São João del Rei oitocentista

encontrava-se o alferes José Antônio das Neves, que ali se

instalou com sua mulher Ana Luiza de Lacerda, vindo ele dos Açores,

e ela da fazenda São Lourenço das Gerais da Mantiqueira, pertencente

a seu pai. O casal teve oito filhos, nascidos na primeira metade

do século XIX: Tibério Justiniano, Galdino Emiliano, Juvêncio

Martiniano, Galiano Emílio, Joviano Firmino, Arcádio Bernardino,

Belisandra e Gustavo. Com exceção do último, que ainda solteiro foi

assassinado, todos se casaram, mas nem todos seguiram a tradição da

elite mercantil local, de estabelecer alianças dentro do próprio grupo.

Belisandra, por exemplo, casou-se com Roberto Henrique Milward,

engenheiro de minas inglês que havia ido para o interior de Minas a

fim de exercer sua profissão. Galdino, Galiano e Joviano iriam casarse

fora de São João del Rei.

É possível avaliar as posses de José Antônio das Neves por seu inventário,

analisado por Graça Filho. O documento, datado de 1863, indica

um monte-mor de 53:835$880 (53 contos, 835 mil e 880 réis) , o

que, na classificação utilizada pelo autor, o situaria na categoria das

grandes fortunas, em que se incluíam os detentores de patrimônio

superior a 50:000$000 (50 contos de réis). Nessa situação encontravam-

se apenas 4,5% dos inventariados pesquisados por Graça Filho

em São João del Rei. José Antônio pertencia, portanto, ao seleto grupo

dos comerciantes de grosso trato da cidade e, como a maioria deles,

tinha no crédito uma forma de atuação no mercado, como indica o re -

gistro de uma dívida ativa de 29:336$790 (29 contos, 336 mil e 790 réis).

Se há algo que chama a atenção na família é o incentivo dado aos

filhos para que tivessem uma formação superior. Em seu testamento,

datado de 1858, D. Ana Luiza de Lacerda deixa para os filhos que “se

quiserem ordenar ou formar” a quantia de 400$000 (400 mil réis)

a ser debitada de sua terça. Galdino Emiliano, que por ocasião do testamento

já estava formado, “com o que o casal gastou alguns contos

79

80

de réis”, foi excluído dessa partilha, por se “achar habilitado para

poder viver”.4

De fato, Galdino Emiliano, quando chegou o momento, deixou

São João del Rei e dirigiu-se para a Corte para estudar medicina.

Ainda estudante, ali conheceu a jovem e rica herdeira Adelaide

Monteiro de Mendonça, com quem se casou em 1850. Em 1858,

quando sua mãe fez seu testamento, sua vida já tinha dado voltas e

conhecido uma triste passagem, mas certamente não lhe faltavam

meios para poder viver. Quem era Adelaide Monteiro de Mendonça?

A

Essa primeira Adelaide – a segunda seria sua filha Zinha, e a terceira,

sua neta Pequenina – nasceu em 1832, filha de Gabriel Getulio

de Mendonça e de Maria Amália da Conceição e Silva. Gabriel

Getulio era o primogênito dos 13 filhos de José Zeferino Monteiro de

Mendonça, “professor régio de latim, poeta e comediógrafo”, natural

de Lisboa, que no fim do século XVIII se instalou em Cuiabá,

casou-se com Leonor Ludovina de Morais e ali constituiu família.

Provavelmente por sua condição de letrado, José Zeferino se tornou

“escrivão vitalício das provedorias das fazendas dos defuntos e

ausentes, capelas e resíduos” em Vila Boa de Goiás. De início ajudante,

e depois herdeiro do lugar do pai, Gabriel Getulio começou

em seguida uma bem-sucedida carreira política: foi secretário do go -

verno da província de Mato Grosso em 1823, deputado-geral por

Mato Grosso de 1826 a 1829, e por fim presidente das províncias da

Paraíba, de 1828 a 1830, e do Espírito Santo, de 1830 a 1831.5

Além de político, Gabriel Getulio foi sócio do comendador João

Bonifácio Alves da Silva na firma Getulio Bonifácio. O testamento

lavrado pelo comendador em janeiro de 1849 informa que àquela

altura a firma já tinha sido extinta, embora não esclareça seu ramo de

atividade. Viúvo e sem filhos, João Bonifácio instituía como testamenteiro

e herdeiro universal o amigo Gabriel Getulio, e destinava

bens aos filhos deste. Adelaide, por exemplo, deveria receber uma

casa, 20 apólices da dívida pública, nove escravos e vários objetos de

prata. Ainda antes do fim do ano, o comendador morreu.

4 Testamento de Ana Luiza das Neves, 1858. Acervo do Museu Regional de São João del Rei, caixa 176.

5 Marieta de Moraes Ferreira e Carlos Eduardo Leal, op. cit.

Os filhos de Gabriel Getulio eram numerosos. Quando se casou

em 1823, já tinha pelo menos dois filhos naturais. Do casamento com

Maria Amália teve quatro filhos legítimos: João Getulio, Gabriel

Getulio, Pedro Getulio e Adelaide. Depois de enviuvar, teve mais

oito. Essas informações provêm de seu testamento, feito em 22 de

dezembro de 1849, duas semanas antes de ele próprio falecer, em 6

de janeiro de 1850. Assim como os de seu antigo sócio, o testamento

e o inventário de Gabriel Getulio denotam riqueza e hábitos requintados.

Seu monte-mor somava mais de 210:000$000 (210 contos de

réis), sem contar dívidas ativas, que chegavam a cerca de

140:000$000 (140 contos de réis).

Pouco depois da morte de Gabriel Getulio, Galdino Emiliano

casou-se com Adelaide e assumiu a responsabilidade pela administração

dos bens da mulher. Logo entrou em conflito com o cunhado

João Getulio, que, como testamenteiro e inventariante do pai, soli -

citou para si a mesma função em relação ao espólio de João Bonifácio.

Afinal foi Galdino, defendido pelo advogado Figueiredo Neves, quem

exerceu o papel pretendido por João Getulio.6

A

Após o casamento, Galdino e Adelaide fixaram residência na

Corte. A união parecia sólida e feliz com o nascimento de dois filhos,

Adelaidezinha (Zinha), em 1851, e Arthur Getulio, em 1855, mas

logo sobreviriam momentos de sofrimento e tristeza. Adelaide contraiu

tuberculose e, por essa razão, ainda em 1855 partiu para Nova

Friburgo com o marido e os filhos, buscando restabelecer-se. As

esperanças da família se desfizeram com sua morte prematura, aos 24

anos, em janeiro de 1856.

O falecimento da mulher parece ter deixado Galdino perdido quanto

a como proceder para cuidar das duas crianças. Ao que tudo indica,

nos primeiros meses os pequenos órfãos ficaram entregues a parentes de

Adelaide em Nova Friburgo. Essa solução não foi porém duradoura, e no

fim de 1856 Galdino voltou para São João del Rei, levando Zinha e

Arthur para serem criados por sua irmã Belisandra. Informações precisas

sobre essa fase da vida das crianças são escassas, mas o que permanece na

memória familiar é a imagem de uma tia Belisandra rígida e autoritária,

que tratou os sobrinhos órfãos com dureza.

81

6 As informações sobre o inventário de Gabriel Getulio foram analisadas por Carlos Eduardo Leal em Marieta

de Moraes Ferreira e Carlos Eduardo Leal, op. cit.

Os irmãos Galdino Emiliano, Tibério e Juvêncio das Neves.

Os irmãos Galiano Emílio, Joviano e Arcádio das Neves.

84

Em São João del Rei, Galdino casou-se pela segunda vez com

Jacinta Gabriela Fonseca Mourão, rica viúva que não tinha filhos do

primeiro casamento. Em 1868, levou o caçula, Arthur, então com 13

anos, para viver em sua companhia. Zinha receberia menos atenção

do pai. Permaneceu na casa da tia Belisandra até se casar, em 1870,

aos 19 anos, com Augusto Marques Braga. Também em 1870 Galdino

transferiu-se com a família para o Rio de Janeiro, o que permitiria a

Arthur fazer seus estudos na Corte.

A

Ainda em São João del Rei, Galdino iniciou-se na política, filiando-

se ao Partido Liberal. Foi presidente da Câmara de Vereadores

entre 1869 e 1872, o que significa que, mesmo depois da mudança para

a Corte, dividia-se entre o Rio de Janeiro e a cidade natal. Foi um dos

signatários do Manifesto Republicano em 1870, e em 1878 foi eleito

deputado pela província de Minas Gerais.

Zinha Braga

Na Câmara, Galdino das Neves participaria das acaloradas discussões

que então se travavam acerca da reforma eleitoral.7 O gabinete

liberal de João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu havia proposto algumas

medidas que, na prática, restringiriam o número de eleitores.

Muitos liberais se opuseram à reforma, enquanto alguns conservadores

a apoiaram. Galdino das Neves defendia a idéia de que a eleição se

fizesse em um só turno, no qual todos aqueles que estivessem dentro

das condições estabelecidas, ou seja, que tivessem uma renda mínima

de 200$000 (200 mil réis), fossem do sexo masculino e maiores de

25 anos, teriam o direito de votar. Porém, distanciando-se da maioria

liberal, era favorável também ao voto dos analfabetos. Ao defender

essas idéias, foi um dos poucos que se manifestaram contra a redução

da franquia eleitoral, posição também apoiada por Joaquim Nabuco.

Em 1881, já sob a liderança de José Antônio Saraiva, a Câmara votaria

afinal uma nova legislação eleitoral estabelecendo a eleição em um só

turno, mas excluindo os analfabetos e aumentando as exigências para a

comprovação de renda mínima para fins de qualificação eleitoral.

Com isso houve uma grande diminuição no número de votantes, que,

de aproximadamente 10% da população, passou para cerca de 0,8%

nas eleições realizadas após a Lei Saraiva.

Galdino das Neves se notabilizaria também como propagador, ao

lado de outros parlamentares como Saldanha Marinho, dos princípios

republicanos. É importante notar que a defesa dos ideais repu blicanos

não implicava de modo algum uma ruptura imediata com a ordem

vigente.8 “Revolução armada, ninguém a quer”, afirmou Galdino em

19 de maio de 1879, quando se discutia no Parlamento o republica -

nismo, explicitando assim o caráter pacifista daquela corrente. O fato

de ocupar a tribuna para defender a mudança do regime de governo a

seu ver não se chocava com sua filiação ao Partido Liberal, como afirma

no seguinte discurso:

85

7 Para mais esclarecimentos sobre a reforma eleitoral, ver José Murilo de Carvalho, Teatro de sombras (Rio de

Janeiro: Editora UFRJ, 1996), p. 361.

8 Sérgio Buarque de Holanda, em O Brasil monárquico, vol. 5, tomo 2 de História geral da civilização brasileira, (dir. de

Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Difel, 1976), chama a atenção para a feição pacifista do grupo de

republicanos signatários do Manifesto de 1870, do qual Galdino das Neves fazia parte.

86

“Assinei o Manifesto Republicano [em 1870], e aqui estão

muitos colegas que sabem disto; mas tendo estado ligado ao

Partido Liberal devo declarar que se vim aqui não foi só pelos

esforços do Partido Republicano, que não está arre -

gimentado no nosso país. [...] A minha convicção é a dos

republicanos e dos verdadeiros amigos da escola democrática.

E mais necessária é nestes tempos em que o poder pessoal

vai sorrateiramente invadindo os outros poderes.”9

Em meados de 1880, os conservadores de São João del Rei

arrebanharam cerca de 200 pessoas armadas, a maioria de naturalidade

portuguesa, tomaram a praça da cidade e tumultuaram as

eleições municipais. Nessa ocasião, Galdino das Neves se pronunciou

na Câmara, defendendo uma intervenção em sua terra natal que

garantisse a normalidade eleitoral. Disse ele:

“Depois dos acontecimentos que se deram [...] a cidade

tornou-se quase inabitável. A Câmara Municipal assim eleita

não pode ser considerada brasileira. [...] A intolerância, o

desrespeito à lei e às autoridades legalmente constituídas, têm

sido sempre praticados pelos conservadores daquela infeliz

cidade. Já falei a este respeito ao nobre ministro da Marinha,

e de novo peço a S. Exa., e aos meus nobres amigos da província

de Minas, que me auxiliem no empenho de evitar que o

Partido Liberal de minha cidade natal, e que tantos sacrifícios

tem feito pelas idéias democráticas, seja todos os dias vitimado

pelos seus energúmenos adversários.”10

Nos anos que se seguiram, Galdino Emiliano das Neves mantevese

ligado à política de São João del Rei, mas não conseguiu reeleger-se

de putado, uma vez que os conservadores passaram a dominar a cena

política mineira. Apesar do seu republicanismo, a Proclamação da

República em 1889 também não garantiu seu retorno ao Parlamento.

Faleceu longe dele, em 1897. A vocação política da família, da qual foi

o representante máximo em sua geração, reapareceria mais tarde em

9 Anais da Câmara Legislativa, vol. 5, p. 348. Sessão de 11 de outubro de 1879.

10 Anais da Câmara Legislativa, vol. 6, p. 469. Sessão de 5 de janeiro de 1881.

vários parentes, entre os quais Tancredo de Almeida Neves, Francisco

Dornelles e Aécio Neves.11

A

Atendendo à orientação de sua mãe, D. Ana Luiza de Lacerda, que

desejava ver os filhos formados, Galiano Emílio das Neves seguiu o

exemplo do irmão Galdino e no início dos anos 1850 deixou São João

del Rei para estudar medicina na Corte. Acometido de doença grave

nos pulmões, abandonou, porém a faculdade, e em 1856 já se encontrava

em Nova Friburgo, seguindo os conselhos do irmão que pouco

antes havia partido para a serra na esperança de encontrar cura para

sua jovem mulher Adelaide. Galiano conseguiu recuperar-se e

começou a lecionar no Instituto Colegial de Nova Friburgo, de propriedade

do inglês John Freese. Pouco depois comprou a parte do

proprietário inglês, em sociedade com Cristóvão Vieira de Freitas. O

Instituto Colegial passou a chamar-se Colégio Freese, em homenagem

ao antigo dono, e assim se manteria em funcionamento até 1870.

Pouco depois de Galiano se ter instalado em Nova Friburgo,

Joviano Firmino das Neves abandonou os estudos na Corte para trabalhar

ao lado do irmão no Colégio Freese. Fixou-se também em

Nova Friburgo e em 1864 casou-se com Sophia, a filha caçula do casal

Marianne Joset-Guillaume Salusse. Foi provavelmente a partir daí

que Galiano se aproximou de Josephina, irmã da cunhada, que

naquele ano ficou viúva de José Antônio Marques Braga. Dois anos

depois, Galiano e Josephina se casaram. Em outubro de 1866 nasceu

o filho do casal, Galiano Emílio das Neves Jr. (Chonchon). Foi da

viagem que Galiano fez a São João del Rei acompanhado da mulher,

dos enteados e do filho pequeno que resultou o casamento de Augusto

Marques Braga, filho de Josephina, com Zinha, filha de seu irmão

Galdino das Neves.

A

Ao lado de suas atividades de professor, Galiano tinha grande

interesse pela música, o que o levou a participar das duas tradicionais

bandas de música de Nova Friburgo, a Euterpe e a Campesina. O

depoimento de seu bisneto Valter Neves expressa a memória familiar

sobre essa face de Galiano: “Ele era um excelente violinista, e me

parece que também tocava outros instrumentos. Violino, eu tenho

87

11 Tancredo Neves era bisneto de Juvêncio Martiniano das Neves (irmão de Galdino). Francisco Dornelles é

sobrinho, e Aécio Neves, neto de Tancredo.

88

certeza. Dizem até que tinha um Stradivarius...”12 Galiano era de fato

conhecido por seu talento musical. Quando faleceu, em 1916, seu

obituário, publicado na imprensa friburguense, afirmava que executava

com primor obras de Listz e de Strauss.13

O coronel Galiano Emílio das Neves, como era chamado, exerceu

também vários cargos públicos, como o de juiz municipal e o de de -

legado de polícia. Liberal e republicano, foi presidente da Câmara

dos Vereadores de 1890 a 1892, o que significa que assumiu funções

equivalentes às de prefeito, figura então inexistente. Por ocasião de

seu falecimento, os jornais de Friburgo dedicaram-lhe amplo espaço

e noticiaram o grande número de homenagens que lhe foram feitas,

o que atesta a importância que adquirira na sociedade friburguense,

entre a qual viveu grande parte dos seus 90 anos.

A

Não são muitas as informações existentes sobre o casamento de

Joviano e Sophia. Ao que tudo indica, foi uma união combinada por

Joviano com a família da noiva. Sophia, na ocasião, tinha 18 anos e era

muito mais moça que o marido. Salientando sua juventude e inexpe -

riência, sua bisneta Beatriz Getulio Veiga conta a seguinte história:

“Dizem que ela brincava no quintal, e vieram chamá-la: ‘Venha se

vestir para o casamento!’ Ela respondeu: ‘Se me amolarem muito, eu

não caso!’ Era uma criança, não tinha noção do que ia acontecer com

ela...” A memória familiar reteve a imagem de Joviano como um

homem culto. É também Beatriz Veiga quem conta que, logo que

casou, Sophia escrevia cartas quando Joviano viajava e as recebia de

volta com os erros de português corrigidos.

No mesmo ano de seu casamento, Joviano foi escolhido presidente

da Câmara dos Vereadores de Nova Friburgo. Manteve-se nesse

posto até 1869 e, como o irmão Galdino, militou nas fileiras do

Partido Liberal. De acordo com os registros do Almanak Laemmert, em

1865 era negociante em Nova Friburgo. Foi também subdelegado.

Joviano e Sophia moravam em uma pequena fazenda chamada Vila

Amélia. O casal teve três filhas: Maria Sophia, Júlia e Sophia (Neném

Sophia). Maria Sophia casou-se com o primo Arthur Getulio das

Neves, filho de Galdino. Júlia casou-se com um Milward de Azevedo

12 Entrevista concedida em 7 de novembro de 1998.

13 Jornal Cidade de Friburgo, 14 de maio de 1916.

e teve uma filha, e Neném Sophia casou-se com Manfredo Antônio

da Costa e teve quatro filhos.

A

Embora Galdino tenha passado a vida entre São João del Rei e o

Rio de Janeiro, às voltas com a política, e Galiano e Joviano se tenham

estabelecido em Nova Friburgo, envolvidos com educação e administração

de negócios, a ligação dos irmãos Neves entre si e com seu pai,

José Antônio das Neves, até este falecer em 1863, sempre se manteve

forte. A coleção de cartas trocadas entre José Antônio e Galiano, conservada

por Valter Neves, mostra a amizade que unia os dois, bem

como as exigências e cobranças que o pai fazia aos filhos para que ajudassem

os demais parentes. Outros registros dos estreitos laços entre os

Neves são as dedicatórias das teses apresentadas à Faculdade de

Medicina pelos filhos de Juvêncio Martiniano e Mecias Cândida.14

Na dedicatória da tese de conclusão de curso apresentada em 1873

por Galdino Emiliano das Neves Sobrinho, pode-se ler:

“A meu prezado padrinho e bom amigo O Ilmo. Sr. Dr.

Galdino Emiliano das Neves e a minha querida tia e

madrinha A Exma. Sra. D. Jacinta Gabriela da Fonseca

Mourão – Em uma ocasião tão solene em minha vida, eu

faltaria a um grave dever imposto pela minha consciência se

não me lembrasse de vós na dedicatória de minha tese em

sinal de gratidão e profundo reconhecimento. [...] Aos

meus tios Galiano Emílio das Neves e Joviano Firmino das

Neves e suas Exmas. Famílias, muita amizade e gratidão.”

Dos agradecimentos da tese de Juvenal Martiniano das Neves,

irmão de Galdino Sobrinho, também apresentada em 1873, consta o

seguinte trecho:

“A meu prezado tio, padrinho e bom amigo O Ilmo. Sr.

Galiano Emílio das Neves e à minha querida tia e madrinha

a Exma. Sra. D. Josephina Marques Braga das Neves – Muito

concorrestes para que eu ocupasse esse lugar na sociedade.

Os benefícios que sempre me prodigalizastes ficarão gravados

indelevelmente em meu coração agradecido. Lançai-me

vossa bênção e serei feliz.”

89

14 As teses citadas a seguir estão depositadas na biblioteca da Academia Brasileira de Medicina.

90

Percebe-se, assim, o importante papel desempenhado por Galiano

e Josephina na formação de Juvenal Martiniano. De acordo com

alguns jornais da época, o casal era bastante devotado aos parentes.

Por outro lado, as relações entre os Neves e os Salusse, estabelecidas

com os casamentos de Josephina e Galiano e de Joviano e Sophia,

se tornariam ainda mais estreitas com o casamento dos dois filhos de

Galdino, Zinha e Arthur Getulio das Neves, a primeira, com um filho

do primeiro casamento de Josephina, e o segundo, com uma filha de

Sophia.

A

Arthur Getulio das Neves, ao transferir-se com o pai para o Rio

de Janeiro em 1870, estudou no Colégio São Clemente e no Colégio

Marinho. Aos 18 anos, em 1873, ingressou na então chamada Escola

Central, matriculando-se no curso de ciências físicas e naturais, que

depois passaria a equivaler ao de engenharia civil. Concluído o curso

em 1878, iniciou uma carreira profissional de grande sucesso.

Em 1886, Arthur Getulio reencontrou-se em Nova Friburgo com

sua prima-irmã Maria Sophia, que tinha então 19 anos e acabava de

chegar de Paris, onde durante cinco anos recebera primorosa educação

custeada por sua avó Marianne Salusse. Após o casamento, o

casal instalou-se no Rio de Janeiro, onde o noivo residia. Nova

Friburgo passou a ser então o local escolhido para o lazer de Arthur

Getulio, a cidade para onde se dirigia em “peregrinações voltadas ao

culto da família”.15 Escreveria ele, anos mais tarde:

“Desde muitos anos a pitoresca vila de Nova Friburgo, a verdadeira

jóia do Rio de Janeiro, tornou-se para mim um

ponto obrigatório onde passo os dias de descanso que a

minha profissão pode proporcionar-me. Para isso várias

razões têm contribuído: nesse lugar vive a única pessoa que

sente correr em suas veias o mesmo sangue que o meu,

minha irmã; nesse lugar encontrei a companheira de meu

lar a que vinculei a minha sorte, com ela compartindo todas

as alegrias e tristezas, e nesse lugar finalmente está o túmulo,

para mim sagrado, de minha Mãe, sobre o qual comecei

quase que logo ao entrar na vida a derramar as lágrimas

doridas da orfandade.”16

15 Arthur Geutlio das Neves, À memória de Joaquim Serra (Rio de Janeiro, 1889), p. 8 e 19.

16 Idem, ibidem.

Em 1887 nasceu a primeira filha de Maria Sophia e Arthur

Getulio, Maria Adelaide (Lalaide), que viria a se casar com Luiz

Paulino Soares de Souza Filho, figura destacada da elite política fluminense.

Em 1889, nasceu Mariana, que também em Nova Friburgo

conheceria seu futuro marido Tancredo de Moraes Veiga. Desse casal

nasceram Arthur, Jorge, Beatriz e Luiz Fernando Getulio Veiga.

Arthur Getulio e Maria Sophia tiveram ainda um filho homem,

Arthurzinho, que faleceu com poucos anos de idade.

Arthur Getulio sempre foi um homem ligado à família, e sua dedicação

ainda está presente na memória de seus descendentes. É ainda

Beatriz Getulio Veiga, sua neta, quem lembra que sua casa no Cosme

Velho, no Rio, era um ponto de convergência dos parentes: “Ele aco -

lhia a todos com o maior carinho. Ficou um pouco como o centro da

família, porque todos vinham reverenciá-lo. Vinham com amor! Não

era uma coisa formal, era uma coisa carinhosa, feita espontaneamente.”

A

A vida pública de Arthur Getulio das Neves, ou simplesmente Getulio

das Neves, como ficou conhecido, desdobrou-se em uma sucessão de cargos

de prestígio. Desde que se formou pela Escola Politécnica, em 1878,

aos 23 anos, até falecer, em 1928, aos 73, foi professor catedrático da

própria Politécnica, vice-governador do estado do Rio de Janeiro, diretor

do Banco do Brasil, presidente da Companhia de Ferro-Carril Jardim

Botânico e vice-presidente do Clube de Engenharia.

91

Arthur Getulio das Neves, sua mulher Sophia e sua filha Mariana. Vichy, França, 1913.

92

Em ao menos duas ocasiões, na ausência do presidente do Clube,

o engenheiro Paulo de Frontin, Getulio das Neves participou, como

presidente interino, de acontecimentos marcantes. A primeira delas

foi em agosto de 1922, quando presidiu uma sessão em homenagem a

Santos Dumont e aos aviadores portugueses Gago Coutinho e

Sacadura Cabral, que pouco antes tinham desembarcado no Rio de

Janeiro após uma viagem aérea inédita partindo de Lisboa. No discurso

de abertura, saudou os convidados dizendo da honra que era

para o Clube de Engenharia recebê-los em sua sede e descrevendo

aquele momento como uma “apoteose a que tem assistido esta grande

capital e que se transmitiu a todo o mundo civilizado, como um eco

imorredouro da admiração universal”.17

Outro momento importante ocorreu quando da visita de Albert

Einstein ao Brasil. Para recepcionar o ilustre cientista foi organizada

uma comissão de recepção nomeada pelo Clube de Engenharia, pela

Escola Politécnica e pela Academia de Ciências. Os membros da

comissão escolheram como presidente Getulio das Neves. No dia 4 de

maio de 1925 Einstein desembarcou no porto do Rio de Janeiro, e no

dia seguinte Getulio das Neves o acompanhou ao Palácio do Catete,

onde foi recebido pelo presidente da República Artur Bernardes.18

No mesmo dia, à tarde, em concorrida sessão presidida por Getulio

das Neves, Einstein proferiu uma conferência no Clube de

Engenharia. Antes de embarcar de volta para a Alemanha, no dia 12

de maio, o cientista escreveu ao engenheiro agradecendo a hospitalidade:

“Doutor Getulio das Neves. Queira aceitar para o senhor e para

a comissão brasileira de recepção meus mais calorosos sentimentos e

meus agradecimentos. Einstein”.19

A

O filho de Galiano e de Josephina, Galiano Emílio das Neves Jr.,

assim como o pai, teve projeção na política de Nova Friburgo. Foi

presidente da Câmara Municipal de 1910 a 1913, em época marcada

por grande polêmica em torno da eletrificação da cidade. Em 1911,

diante do atraso nas obras contratadas 13 anos antes, o industrial

17 Revista do Clube de Engenharia, Rio de Janeiro, 1922, p.175.

18 Ibidem, p. 116.

19 Citado por Roberto Vergara Cafareli, Einstein no Brasil, em Ildeu de Castro Moreira e Augusto Passos

Videira (orgs.), Einstein e o Brasil (Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995), p. 129.

Julius Arp requereu para si a concessão dos serviços a fim de instalar

uma fábrica de rendas. As negociações com a Câmara, que relutava em

conceder vantagens a Arp, foram difíceis, e com isso abriu-se uma

grande discussão que envolveu políticos, imprensa e população.

Enquanto o vereador Galdino do Valle Filho defendia abertamente a

industrialização, Galiano era visto por alguns jornais como o grande

responsável pelos esforços para a instalação dos serviços de energia

elétrica (Cidade de Friburgo), mas, por outros, como o maior culpado

pelo atraso (A Paz). Após a chamada “noite do quebra-lampiões”, em

que populares saíram em defesa de Julius Arp, este obteve afinal a

concessão pretendida.

Galiano Emílio das Neves Jr. casou-se com Vitalina Fontes e teve

três filhos: Emilita, Josephina e José Galiano. A primeira casou-se

com Sílvio Rangel e teve cinco filhos; o último casou-se com Antônia

Seng e teve dois filhos; um deles, Valter Neves, forneceu vários do -

cumentos utilizados na elaboração deste livro. D. Vitalina Fontes das

Neves faleceu em Friburgo em 1968, pouco depois de completar 100

anos de idade.

93

São Sebastião da Vila do Touro. Portugal, 2000.

95

O Barão e a Baronesa

das Duas Barras, que chegaram a Nova Friburgo na segunda

metade do século XIX em busca de um estilo de vida urbano e

de escola para os filhos, provinham de fazendas situadas no

município de Cantagalo. Para entender a origem das fazendas,

é preciso, antes, conhecer a do município e a dos fazendeiros.

Até o início do século XVIII, os únicos habitantes daquela

região, então denominada Sertões do Macacu, eram os índios

coroados e goitacases. A preservação da área resultou de disposições

régias proibindo a circulação, a fim de evitar o contrabando das

riquezas garimpadas nas Minas Gerais, já que não havia ali postos de

coleta do imposto sobre o ouro que devia ser pago à Coroa.1 No

Os descendentes do Barão e da Baronesa

1 Foram muitas as cartas régias sobre essa matéria. Como exemplo, podem-se citar a carta régia de 18 de

novembro de 1733, “mandando trancar os rios Caeté e Doce”, e também um alvará de 23 de outubro do

mesmo ano estipulando penas para aqueles que ousassem penetrar nas áreas proibidas, constituídas pelos

Sertões do Leste e do Macacu. Essa documentação é citada em Clélio Erthal, op. cit.

96

entanto, a partir da segunda metade do século, aquelas terras começaram

a atrair aventureiros que, a despeito da proibição, penetravam nas matas

na esperança de encontrar novas jazidas. Esse movimento se intensificou

sobretudo no último quartel do setecentos, quando se iniciou a decadência

da extração mineral nas Minas. Foi isso o que fez com que as ordens

régias fossem desobedecidas, e que os primeiros fluxos de povoamento

alcançassem aqueles sertões.

Não se sabe ao certo se foi na década de 1770 ou nos primeiros

anos da década de 1780 que um certo Manuel Henriques, conhecido

como o Mão de Luva, chegou com seu bando à região. O fato é que

em 1784 uma carta enviada pelo governador das Minas ao ministro

Martinho de Melo Castro narrava uma diligência feita nos Sertões do

Macacu, durante a qual havia sido encontrado um grande número de

“agressores que, congregados com muita gente armada, e

pronta a defender-se naqueles lugares proibidos, se fazem

absolutos e cada vez mais temerários na continuação de seus

públicos procedimentos, praticados na direção de um Manuel

Henriques, vulgarmente conhecido como Mão de Luva, que,

sendo um dos primeiros descobridores das referidas Minas, se

fez chefe daquela tão escandalosa corporação”.2

Com o objetivo de punir o bando do Mão de Luva, no início de

1785 o Vice-Rei D. Luís de Vasconcelos e Sousa ordenou que uma

patrulha fosse enviada em seu encalço. O episódio da prisão dos

garimpeiros, segundo alguns cronistas, teria dado origem ao nome do

município. Consta que, após várias batidas infrutíferas na mata, os

agentes do governo já estariam retornando, quando ouviram um galo

cantar. Seguindo na direção do canto, foram dar a um arraial onde

capturaram o bando do Mão de Luva e apreenderam escravos, armas

e todo o ouro em pó encontrado em seu poder. A partir de então, o

arraial seria chamado de São Pedro do Canta Galo.3

Depois da conquista, o Vice-Rei não só nomeou um administrador

para a região, o coronel Manuel Soares Coimbra, como começou a

conceder sesmarias àqueles que tivessem condições de desbravá-las e

2 Clélio Erthal, op. cit., p. 46-7.

3 Eliana Vinhaes, op. cit., p. 26.

cultivá-las, ou seja, que possuíssem escravos. Para assegurar a cobrança

dos tributos, foram instalados três “registros” e mais nove postos com

guarnição militar nos diversos caminhos, agora de livre trânsito.

Passou a ser do interesse da Coroa que novas jazidas fossem descobertas

e que a produção agrícola se desenvolvesse para que a região logo

começasse a fornecer riquezas para os cofres reais. No entanto, as

jazidas de Cantagalo se revelariam escassas, e pouco tempo depois a

atividade extrativa acabaria por se extinguir. Quando John Mawe esteve

em Cantagalo em missão do governo, em 1809, observou que a mi -

neração já se esgotara e que a atividade predominante na região era

a agricultura, considerada muito bem desenvolvida.4

Um alvará datado de 9 de março de 1814 elevou o antigo arraial à

condição de vila. São Pedro de Cantagalo recebeu então uma légua

quadrada (ou quatro sesmarias separadas), ficando a cargo dos

moradores as despesas com as construções necessárias. O processo de

desbravamento e ocupação, marcado por conflitos com os índios,

prolongar-se-ia até a década de 1820. Ao longo desse período desenvolveu-

se uma agricultura de subsistência, que paulatinamente deu

lugar à agricultura extensiva, ou seja, às plantações de café.

A

O opúsculo Biografia do Barão das Duas Barras por um seu amigo Dr. M. C. e

testamento do Barão e Baronesa das Duas Barras, publicado em 1892,5 é a

primeira tentativa de registrar a origem e a história do chefe da

família Moraes em Cantagalo. A segunda é a biografia João Antônio de

Moraes, 1° Barão das Duas Barras, publicada em 1948 por Judith de Moraes

Veiga.6 Segundo ambos, João Antônio era filho de Antônio

Rodrigues de Moraes Coutinho e de Maria Felizarda de Jesus e vinha

de Piedade dos Gerais, termo do Bonfim, na então província de

Minas Gerais. Judith Veiga afirma ainda que Antônio Rodrigues de

Moraes Coutinho seria natural de uma província do norte de

Portugal, ainda jovem teria vindo para o Brasil e, aqui chegando, para

tentar a vida, teria se internado na região das Minas, “lendária Meca

97

4 Idem, ibidem, p. 29.

5 Biografia do Barão das Duas Barras por um seu amigo Dr. M. C. e testamento do Barão e Baronesa das Duas Barras (Rio de Janeiro:

Tip. G. Leuzinger e Filhos, 1892). No exemplar consultado, conservado pela família, ao lado das iniciais “Dr.

M. C.”, aparece em manuscrito o nome “Marques da Cruz”.

6 Judith de Moraes Veiga, João Antônio de Moraes, o 1o Barão das Duas Barras (Rio de Janeiro: s. ed., 1948).

98

de todos que almejaram a pronta riqueza”.7 Contudo, pesquisas mais

recentes vieram revelar novos dados. Os nomes dos pais do Barão

eram ligeiramente diferentes: Antônio de Moraes Coutinho, sem o

Rodrigues, e Maria Felizarda de Sant’Ana, e não de Jesus. E quem

nasceu em Portugal não foi o pai, e sim o avô de João Antônio,

Manoel de Moraes Coutinho.

Essas informações vieram à tona com a descoberta do inventário

de Manoel de Moraes Coutinho, conservado no Museu Regional de

São João del Rei. Pelo documento, datado de 5 de setembro de 1777,

fica-se sabendo que Manoel, falecido em 19 de julho daquele ano,

com testamento, em sua fazenda Cataguases, na freguesia de Prados,

termo da vila de São João del Rei, nascera na Vila do Touro, na Beira

Alta, Portugal, em 1707. Eu mesma, em viagem a Portugal, pude confirmar

essa origem ao consultar o arquivo da diocese de Lamego, vi -

zinha da Vila do Touro, onde há um livro de assentamentos de

batismo no qual figura o de Manoel, filho de Antônio de Moraes e de

Ana Coutinho. Após deixar sua pobre Vila do Touro, conhecida

como um dos maiores centros de emigração de Portugal, e chegar ao

Brasil na década de 1730, Manoel casou-se duas vezes e teve cinco fi -

lhos. O monte-mor de seu inventário chegava a 1:804$175 (1 conto,

804 mil e 175 réis), e por ele também se percebe que Manoel era

lavrador: deixou 12 escravos e duas fazendas sobre as quais havia litígio,

sendo a Cataguases dotada de benfeitorias “que constam de casas

de vivenda e paiol, moinho, todo coberto de telhas, e senzalas, de

capim, e o terreno murado de pedras”, além de aproximadamente 16

datas minerais.8

Ainda pelo inventário de Manoel, fica-se sabendo que o filho mais

moço de seu segundo casamento, com a mineira Ana Nunes da Costa,

era Antônio de Moraes Coutinho. Pode-se supor que Antônio tenha

nascido por volta de 1760, já que, por ocasião da morte do pai, contava

16 anos. Como não foi possível encontrar o inventário de Antônio,

não se tem o registro de sua ocupação, de suas posses, da data e lugar de

sua morte. Mas ao menos conseguiu-se chegar a seu registro de casamento

e aos assentamentos de batismo de seus filhos.9 Por esses docu-

7 Judith de Moraes Veiga, op. cit., p. 9.

8 Pesquisa realizada por Douglas Fazzolato e citada em Marieta de Moraes Ferreira e Carlos Eduardo Leal, op. cit.

9 Documentos conservados no Arquivo do Bispado de Mariana.

mentos é possível saber que em 1787 Antônio se casou com Maria

Felizarda de Sant’Ana na capela de Santo Amaro, filial da matriz de

Nossa Senhora da Conceição do Campo dos Carijós, hoje Conselheiro

Lafaiete, Minas Gerais. Maria Felizarda, por sua vez, nascera e fora batizada

na freguesia de Carijós, e era filha de Antônio Rodrigues Braga,

natural da freguesia de São Mamede, arcebispado de Braga, Portugal, e

de Felizarda Angélica de Jesus, natural de Queluz, Minas Gerais.10

Antônio e Maria Felizarda tiveram 12 filhos: Manoel Antônio de

Moraes, nascido em 1788; Maria e Antônio, que morreram

pequenos; Antônio Rodrigues de Moraes, nascido em 1793; Elias

Antônio de Moraes, nascido em 1795; Felisberto Antônio de Moraes,

nascido em 1797; José Antônio de Moraes, nascido em 1800;

Felizarda, nascida em 1802; Antônia Rita de Moraes, nascida em

1804; João Antônio de Moraes, nascido em 1810; Eufrásia e

Francisca. Como se pode ver, João Antônio de Moraes era o décimo

de uma irmandade nascida e criada em Minas Gerais. A uma determinada

altura o futuro Barão deixou para trás a terra natal, mas foi lá

que a maior parte de seus irmãos terminou seus dias.

A

Esclarecida a origem do Barão, passemos à da Baronesa, nascida

Basília Rosa da Silva. É mais uma vez Judith Veiga, que fixou em seu

trabalho a tradição familiar, quem fornece as informações iniciais. A

memória dos descendentes de Basília inicia a história da Baronesa

com seu pai, o capitão João Baptista Rodrigues Franco, que teria

nascido em Sabará, nas Minas Gerais, por volta de 1750. Mas a

tradição oral pouco guardou a respeito das origens de João Baptista.

Limitou-se a conservar o nome de um seu irmão, Manoel, com quem

teria sido criado pela mãe viúva, professora no local da Ponte Alta, no

município de Sabará. Desejoso de ajudar a mãe, João Baptista teria

vindo alistar-se no Rio de Janeiro como voluntário. Segundo Judith

Veiga, “logo depois foi mandado seguir para Portugal, para lá servir”,

e “com esforço próprio chegou ao posto de capitão”. Teria então

arranjado transferência para o Rio de Janeiro, “onde se colocou

bem”. Ainda segundo a autora, “tendo, em Portugal, adquirido co -

99

10 Ibidem.

100

nhecimentos que hoje são da alçada de engenheiros diplomados, consta

na família que obteve a empreitada do primeiro aterro que se fez no

Rio de Janeiro, o do Campo de Sant’Ana, hoje Praça da República,

assim como a da canalização d’água para aquele trecho da cidade”.11

Judith Veiga transcreve em seguida um documento de grande

interesse: a provisão dada pelo Vice-Rei ao requerimento apresentado

por João Baptista solicitando a concessão de uma sesmaria nos

Sertões do Macacu. O requerimento foi feito em 1793, portanto oito

anos após a prisão do bando do Mão de Luva no arraial que fora então

batizado de São Pedro do Canta Galo. Nele, João Baptista solicitava

“meia légua de terras em quadra sitas nas Novas Minas das Cachoeiras

de Macacu, [...] as quais se achavam devolutas, por não serem até a

presente ocupadas, mas antes proibidas, por serem terras Minerais,

que na forma das Reais ordens de Sua Majestade não se devia povoar”.

Era sua intenção cultivar aquelas terras, cuja localização, princi piando

“na paragem próxima ao Arraial de Cantagalo”, era sumariamente

descrita; poderia fazê-lo “por ter escravos e forças para estabelecer e

povoar as suas lavouras”. Anunciando sua decisão em relação às terras

requeridas, concluía o Vice-Rei: “Hei por bem [concedê-las] interinamente

por tempo de um ano na forma das novíssimas Ordens de

Sua Majestade, e no seu Real Nome ao dito Suplicante João Baptista

Rodrigues Franco”. Este deveria medir as terras, demarcá-las, cultivá-

las e reformar a provisão a cada ano enquanto a concessão não

fosse transformada em uma Carta de Sesmaria, o que seria feito dentro

de dois anos por Sua Majestade. A posse da sesmaria, contudo, só

seria confirmada em setembro de 1812, após questões de limites com

gente das imediações.12

O fio condutor do trabalho de Judith Veiga sugere, portanto, um

bom filho que se alistou no Exército do Vice-Rei para ajudar a mãe,

serviu na metrópole, onde se instruiu em engenharia e atingiu o posto

de capitão, e depois, enquanto realizava importantes obras públicas,

requereu uma sesmaria em área recém-aberta à exploração mineral e

agrícola. Pouco antes de morrer João Baptista teria sugerido à mulher

que, por motivo de economia, se mudasse com os filhos, nascidos no

Rio de Janeiro, para as terras da fazenda que batizaram com o nome de

11 Judith Veiga, op. cit., p. 30-31.

12 Idem, ibidem, p. 32-35.

Santa Maria do Rio Grande. “O que ela depois fez, partindo em companhia

dos filhos”.13 O principal elemento da narrativa – a sesmaria

que virou fazenda – é inegável. Mas o resto se distancia bastante

daquilo que a documentação encontrada veio demonstrar.

Uma reconstituição mais fiel da trajetória de João Baptista

Rodrigues Franco se tornou possível graças à descoberta de duas novas

fontes documentais: o processo de seu casamento com Isabel Maria da

Silva, realizado no Rio de Janeiro, na freguesia do Santíssimo

Sacramento da Sé, em 2 de setembro de 1791, e o livro 1 dos batizados

da freguesia do Santíssimo Sacramento das Novas Minas do

Macacu, mais tarde Novas Minas de Canta Galo, que cobre o período

de 1792 a 1817. Cruzando a leitura das duas fontes, ficamos sabendo

que João Baptista era de fato natural da freguesia de Nossa Senhora da

Conceição do Sabará, onde nasceu e foi batizado, respectivamente em

6 e 17 de fevereiro de 1754. Seus pais eram Manoel Rodrigues Franco,

batizado na freguesia do Irajá, no Rio de Janeiro, e Maria Corrêa de

Peralta, natural do Sabará, mas, pelo nome, de origem paulista. 14

Segundo o próprio João Baptista declarou em 26 de agosto de 1791

ao Muito Reverendo Dr. Juiz no processo de seu casamento, por volta

de 1773 foi recrutado para assentar praça no Regimento Novo, e por

essa razão veio para o Rio de Janeiro. Não veio, portanto, alistar-se

como voluntário, e não é difícil entender por quê. O processo de

recrutamento, no universo colonial, era feito com grande violência e

não atraía ninguém. Provocava debandadas, e por isso chegava a ser

considerado nocivo ao pacífico exercício das atividades econômicas. A

rede lançada não discriminava, alcançava a todos, importando apenas

a juventude e as condições sanitárias adequadas para o serviço militar,

então envolvido com a definição de fronteiras. Duas das testemunhas

de João Baptista em seu processo de casamento declaravam ter sido

objeto do mesmo recrutamento. Assim é que o sapateiro Felício

Nogueira afirmava que João Baptista tinha saído “recrutado com ele

testemunha [...] e veio para o Regimento Novo desta Praça”, enquanto

o cabo de esquadra do Esquadrão do Ilustríssimo Vice-Rei, Joaquim

Fernandes da Costa, declarava ter sido recrutado com João Baptista 17

ou 18 anos antes. O pardo liberto João José de Mesquita, que vivia “de

101

13 Idem, ibidem, p. 36.

14 Pesquisa genealógica realizada por Carlos Eduardo Leal e citada em Marieta de Moraes Ferreira e Carlos

Eduardo Leal, op. cit.

102

andar com suas tropas”, não se dizia vítima do recrutamento, mas afirmava

conhecer João Baptista desde que “ele testemunha teve uso da

razão”. Os três também confirmavam a filiação de João Baptista, mas

Felício Nogueira declarava não ter conhecido seu pai, o que indica a

viuvez de Maria Corrêa de Peralta. Não há, porém, menção ao fato de

que fosse professora.

João Baptista, ainda segundo seu depoimento ao juiz, passara do

Regimento Novo ao Esquadrão do Vice-Rei, mas dele dera baixa com o

propósito de administrar uma sociedade nas últimas terras minerais

descobertas na colônia. Chegara às Minas de Canta Galo aproximadamente

em 1787 e naquele momento, 1791, estava de volta ao Rio de

Janeiro para se casar com a viúva Isabel Maria da Silva, a quem havia

prometido matrimônio. Pode-se supor que, depois do casamento, João

Baptista tenha regressado com a mulher para Cantagalo, já que era lá

que vivia e trabalhava havia cerca de quatro anos. O requerimento de

uma sesmaria em 1793 indica que a sociedade que admi nistrava,

provavelmente um empreendimento minerador, obteve algum êxito, já

que conseguiu reunir recursos para pretender estabelecer uma lavoura.

A

E quanto à viúva a quem João Baptista Rodrigues Franco havia

prometido casamento, quem era ela? O assentamento matrimonial de

João Baptista e Isabel Maria da Silva refere-se à noiva como batizada na

freguesia do Irajá, no Rio de Janeiro, em 8 de abril de 1761, e filha

natural de Ana da Conceição. Mas no assentamento de batismo de

Isabel, que também se conseguiu recuperar, aparece uma informação

omitida no registro de casamento: o nome de seu pai. O vigário

Francisco de Araújo Macedo, como que se eximindo da responsabilidade

de afirmar a paternidade da pequena Isabel, declara que

“deram-lhe (ou a ela) por pai João da Silva Motta”. Em aditamento a

isto, informa que a mãe, Ana da Conceição, era parda forra.15

A filiação de Isabel tampouco vem citada no assentamento de seu

primeiro matrimônio, com o português Theotônio José de Freitas, o

qual, quando noivo, residia num navio atracado no cais do porto.

Nesse casamento, realizado em 23 de dezembro de 1777, a noiva é

dada como filha natural de Ana da Conceição e de pai incógnito. O

vigário de Irajá diz conhecer Isabel, então com 16 anos, e sua mãe, de

sua freguesia, as duas “sumamente pobres”, vivendo de esmolas. No

15 Pesquisa realizada por Carlos Eduardo Leal e citada em Marieta de Moraes Ferreira e Carlos Eduardo Leal, op. cit.

processo de seu segundo casamento, Isabel se declara viúva de

Theotônio de nove para dez anos, e diz residir na rua Nova da freguesia

da Sé. Pode-se imaginar que João Baptista se tenha apaixonado

por uma linda viúva, já afastada da suma pobreza graças ao sucesso

profissional do marido português em algum pequeno empreendimento

comercial, marido esse que, acometido de alguma moléstia,

faleceu moço na Santa Casa de Misericórdia. O homem de negócios

português Antônio Gonçalves, testemunha de Isabel, enfatizou seu

procedimento correto de viúva, com demonstração “daqueles sinais

de sentimento”. É possível que Isabel possuísse algumas economias no

momento em que passou a ser cortejada por João Baptista.

João Baptista e Isabel tiveram nove filhos. O livro 1 dos batizados

da freguesia do Santíssimo Sacramento das Novas Minas do Macacu,

mais tarde Novas Minas de Canta Galo, contém o registro de sete

deles, mas de forma indireta se pode tomar conhecimento dos mais

velhos – que aí aparecem ou batizando os próprios filhos (e como fi -

lhos de João Baptista Rodrigues Franco) ou em relações de compadrio

do local. Os dois primeiros filhos do casal foram, não se sabe se a

ordem é esta, João José Rodrigues Franco, mais tarde guarda-mor e

sesmeiro, e Joaquim Rodrigues Franco, alferes de ordenanças. Em 28

de março de 1794, João Baptista e Isabel batizaram Gabriel (curiosamente,

nesse registro Isabel volta a aparecer como filha de Ana da

Conceição e João da Silva Motta); em 24 de agosto de 1795, o futuro

alferes Bernardo Rodrigues Franco; em 15 de janeiro de 1797, Rosa;

em 9 de fevereiro de 1799, a que iria assinar-se Maria Isabel da Silva;

em 11 de maio de 1800, Francisco, que se pode supor logo falecido,

já que em 7 de abril de 1801 batizava-se um outro Francisco; por fim,

em 4 de junho de 1802, Basília Rosa da Silva.

Outro dado importante se depreende do assentamento de batismo

da neta de João Baptista e Isabel, Joaquina, filha do guarda-mor João

José Rodrigues Franco e de sua mulher Teresa Bernardina de Mello.

Esse é o primeiro documento em que João Baptista Rodrigues Franco

aparece com a patente de capitão. Vê-se por aí que João Baptista,

longe de ter obtido a patente no reino, ao longo de uma carreira mi -

litar em que se teria destacado por seus pendores para a engenharia,

foi capitão de ordenanças da vila de Cantagalo. E vê-se, por tudo o

que foi levantado, que em vez de mandar a mulher e os filhos para a

fazenda Santa Maria do Rio Grande, em Cantagalo, pouco antes de

morrer, lá estava instalado desde que se casou.

103

Basília Rosa de Moraes, Baronesa das Duas Barras (Óleo de Viancin).

João Antônio de Moraes, 1.º Barão das Duas Barras (Óleo de Viancin).

106

A

Finalmente, podemos voltar ao Barão e à Baronesa. Como se te -

riam encontrado João Antônio, neto do modesto português Manoel

de Moraes Coutinho, de Vila do Touro, criado nas Minas Gerais, e

Basília, neta de uma ex-escrava, Ana da Conceição, criada numa

fazenda na região de Cantagalo?

O primeiro casamento de Basília Rosa da Silva não foi com João

Antônio de Moraes, e sim com um irmão deste, Antônio Rodrigues de

Moraes. Provavelmente, foi numa de suas viagens pela região de

Cantagalo que Antônio conheceu Basília, com quem se casou por volta

de 1820. Tinha ele então 27 anos, e ela, 18. Tudo indica que desde o

início o casal se instalou na antiga sesmaria de Santa Maria do Rio

Grande, concedida ao pai de Basília. Nos anos seguintes, tiveram cinco

filhos: Francisco, nascido em 1820; José Antônio, em 1821; Antônia

Rosa, em 1826; Basília (II), em 1830, e Antônio, em 1832. Decidido

a ter, além das lides na lavoura, uma atuação política na região que

escolhera para morar, Antônio foi eleito vereador em janeiro de 1833.

Mas não ficaria muito tempo na Câmara Municipal de Cantagalo. Em

13 de agosto daquele mesmo ano, morreu assassinado.

O assassinato de Antônio é explicado por Judith Veiga como fruto

de uma vingança por sua atuação na defesa dos interesses de crianças

órfãs das quais era tutor. Porém nenhuma documentação que confirmasse

essa versão foi encontrada. Nas Atas da Câmara Municipal de

Cantagalo encontram-se algumas informações que indicam a existência

de um conflito entre Antônio e sua vizinha em torno da abertura

de uma estrada nas proximidades da fazenda Santa Maria do Rio

Grande. Há também o registro de execução dos bens de seu cunhado

João José Rodrigues Franco em virtude de dívidas com a Fazenda

Nacional. Na ocasião Antônio assumiu as dívidas do cunhado e tomou

posse de uma de suas propriedades, tendo ficado registrada “a

nomeação interina de um procurador na pessoa de um vereador, e

requisição para arrematação da casa e chácara seqüestrada a um devedor

da Fazenda Nacional [João José Rodrigues Franco] autorizando a

Câmara a proceder aos devidos tratos e finalizar o negócio, oferecendo

por fiadores no juízo competente os senhores Fernando [ilegível]

16 Atas da Câmara Municipal de Cantagalo, 12 de agosto de 1833.

17 Processo eclesiástico para autorização do casamento de Basília Rosa da Silva e seu cunhado João Antônio de

Moraes datado de 1835, conservado na Matriz de Cantagalo.

e Antônio Rodrigues de Moraes.”16 Tal fato poderia sugerir algum

conflito entre os dois cunhados, mas não é possível averiguar a

hipótese diante da inexistência de documentação. De toda forma, o

negócio mencionado não se concretizou, pois no dia seguinte ao do

registro nas Atas da Câmara Antônio foi assassinado. No dia 29 de

agosto, a Câmara Municipal de Cantagalo apenas registrou “ser

necessário indicarem-lhe novo fiador para arrematação da chácara

seqüestrada a João José Rodrigues Franco que substituísse ao finado

Antônio Rodrigues de Moraes”, sem avançar nenhuma outra informação

sobre a morte trágica de um de seus vereadores.

Na verdade, a única descrição da morte de Antônio foi localizada

em um processo eclesiástico aberto dois anos mais tarde, no qual se

pode ler a seguinte passagem: “Aos treze de agosto de 1833 pelas nove

horas da manhã mataram com um tiro Antônio Rodrigues de Moraes,

casado e morador do Rio Grande, não fez testamento nem se confessou,

porque caiu do cavalo e abaixo logo morto: foi por mim [Frei

Serafim Capuchinho] acompanhado, encomendado e enterrado com

duas missas de corpo presente uma que eu disse, e outra disse o

[Padre] João Ferreira Almada, e jaz sepultado no cemitério desta

vila.”17

Quando Antônio Rodrigues de Moraes foi assassinado, Basília,

então na casa dos 30 anos, viu-se sozinha para cuidar de suas terras e

de seus cinco filhos. O irmão solteiro de Antônio, João Antônio de

Moraes, de 23 anos, que já residia em Cantagalo, acabou por se tornar

a solução de todos os problemas ao se casar com a cunhada e se encarregar

do trabalho na lavoura e da criação dos sobrinhos. A necessidade

de apoiar Basília deve ter criado grande aproximação entre os dois,

pois antes mesmo do casamento, realizado em 1835, já tinham uma

filha, Felizarda, nascida em 1834.

O casamento de Basília e João Antônio não foi uma empresa simples,

em virtude do “impedimento de afinidade lícita do primeiro

grau da linha colateral”, segundo os princípios da Igreja Católica. Foi

necessário abrir um processo junto à Câmara Eclesiástica da Santa

Igreja da Catedral da Cidade do Rio de Janeiro para obter a autorização

para o casamento, que só se realizaria após serem observadas algumas

107

108

exigências. Segundo a documentação localizada na matriz de

Cantagalo, o casal de veria “cumprir as saudáveis penitências seguintes

– separados sem comunicação entre si confessem-se e comunguem

uma vez, assistam a quatro Missas [ilegível] de velas acesas e rezem cada

um cinqüenta Rosários – Ofereçam tudo à Sagrada Paixão do Senhor

Jesus Cristo. [...] Em virtude [ilegível] hei por dispensá-los do

sobredito impedimento de afinidade lícita do primeiro grau da linha

colateral, para válida e licitamente receberem-se em matrimônio a

graça da Igreja como dispõe o Sagrado Concílio de Trento”.18

Cumpridas todas as exigências, Basília e João Antônio confessaramse

e casaram-se, aos 17 de agosto de 1835, na fazenda Santa Maria do

Rio Grande.

A família continuaria a aumentar depois do casamento. Além dos

cinco enteados – Francisco, José Antônio, Antônia Rosa, Basília (II)

e Antônio – e da filha Felizarda, João Antônio teria com Basília mais

quatro filhos: Eugênio, falecido ainda jovem, Joaquim Antônio,

nascido por volta de 1836, Elias, nascido em 1840, e Amélia, nascida

em 1843. Favorecido, sem dúvida, pelo patrimônio inicial de Basília,

e pelos bens que seu irmão Antônio legou à viúva e aos próprios fi -

lhos, João Antônio iria traçar estratégias que beneficiariam a toda a

família. O ouro que permitiu sua extraordinária expansão econômica

e que lhe trouxe, em 1867, o título de Barão das Duas Barras

chamava-se café.

18 Processo eclesiático para autorização do casamento de Basília Rosa da Silva e João Antônio de Moraes,

já citado.

Fazenda Santa Maria do Rio Grande, no atual município de Trajano de Morais.

111

o empreendimento cafeeiro

e o fazendeiro-capitalista

e a década de 1840 assistiram a um verdadeiro boom da produção

cafeeira no Brasil. Nas palavras de Orlando Valverde, “os anos

da década de 30 foram decisivos: nesse período o Brasil

tornou-se o primeiro produtor mundial de café; no ano de

1832, o café ocupou o primeiro lugar na pauta das nossas

exportações, e já no ano de 1837-38 esse valor relativo do café

alcançava 53,2%, isto é, mais do que a soma dos valores de todos

os demais produtos exportados”.1 O café se tornava assim a base

econômica de um Estado nacional em construção.

Do ponto de vista político, não foi fácil para o jovem

Império, após a Independência em 1822, alcançar estabilidade.

A segunda metade dos anos 1830

1 Orlando Valverde, A fazenda de café escravocrata (Rio de Janeiro: Ministério da Indústria e Comércio,

1973), p. 6.

112

Vários grupos sociais e mesmo algumas províncias se opuseram ao

governo de D. Pedro I, como o comprova o movimento libertário da

Confederação do Equador em 1824. Em 1831, considerando a situação

insustentável, D. Pedro I renunciou em favor de seu filho Pedro, de

apenas cinco anos de idade. A abdicação não bastou, contudo, para

apaziguar o quadro político conturbado, e o risco de fragmentação do

território nacional esteve presente nos nove anos de regência (1831-

1840), quando novas rebeliões ocorreram nas províncias. Em 1840,

a maioridade de D. Pedro II foi antecipada, e em 1847, numa tentativa

de pacificar o jogo político entre conservadores e liberais, instituiu-

se o parlamentarismo. O Conselho de Ministros era chefiado

pelo primeiro-ministro, indicado pelo partido que obtivesse o maior

número de representantes na Câmara. O Imperador, por sua vez,

podia dissolver a Câmara e convocar novas eleições, exercendo assim

o Poder Moderador e desempenhando papel fundamental no equilíbrio

de forças. Pouco a pouco a ex-colônia portuguesa foi conquistando

uma situação política mais estável. Uma elite composta majoritariamente

de bacharéis, o que lhe fornecia uma identidade ideológica

comum, contribuiria para o estabelecimento de uma ordem imperial

caracterizada pela centralização administrativa.2

A expansão cafeeira, base de sustentação do Império, deveu-se,

internamente, às excelentes condições geográficas do vale do Paraíba,

onde a cultura foi introduzida, à abundância de terras virgens e de

mão-de-obra, e à facilidade de escoamento da produção pelo porto

do Rio de Janeiro. Externamente, a ampliação dos mercados consumidores,

incluindo os Estados Unidos, o declínio dos produtores

concorrentes e a elevação dos preços no segundo quartel do século

XIX foram incentivos importantes. Apesar de algumas variações ao

longo do século XIX, a análise dos preços do café entre 1840 e 1890

mostra uma tendência claramente ascendente.3

Na montagem de uma fazenda de café, unidade produtiva dessa

economia, a preocupação inicial era erguer uma casa rústica e garantir

a provisão de água potável e de gêneros alimentícios básicos, como

milho e feijão. Se não é verdade que as fazendas eram unidades totalmente

auto-suficientes, não se pode negar que, principalmente nas

2 José Murilo de Carvalho, A construção da ordem: a elite política imperial (Rio de Janeiro: Campus, 1980).

3 Edmar Bacha, Política brasileira do café - uma avaliação centenária, em 150 anos de café (São Paulo: Marcellino

Martins & E. Johnston Exportadores Ltda, 1992).

primeiras décadas do século XIX, no momento de sua instalação,

havia uma preocupação de resguardar ao máximo sua independência

em relação a produtos externos. Isso se explica seja pela dificuldade de

transporte, seja pelo alto preço desses produtos, que inviabilizavam o

consumo de supérfluos, já que os capitais deveriam ser investidos em

terras e escravos que iriam garantir o rendimento da fazenda. Assim é

que o Barão de Pati do Alferes, Francisco Peixoto de Lacerda

Werneck, ao escrever sua “Memória sobre a fundação e custeio de uma

fazenda na Província do Rio de Janeiro”, em 1847, recomendava que

a fazenda tivesse uma produção de gêneros alimentícios suficiente

para a sua manutenção: “Um fazendeiro cuidadoso tem sempre um

esplêndido jantar, que lhe custa em dinheiro apenas vinho e sal [pois]

seu estabelecimento fornece o resto em grande profusão”.4

As fazendas de café em geral possuíam uma organização seme -

lhante, uma vez que tinham um mesmo objetivo e se encontravam nas

mesmas condições geográficas. Um modelo bastante comum de organização

da fazenda de café do século XIX eram os “quadrados ou

retângulos funcionais” em torno dos quais se erigiam as construções

fundamentais. A sede da fazenda, ou seja, a “casa de vivenda”, como

se chamava, era providencialmente construída no sopé de um morro

ou nas proximidades de uma fonte de água. Ao seu redor ficavam as

senzalas, os armazéns (tulhas ou paióis), um monjolo (com pilões

para milho ou para descascar os grãos de café), as estrebarias e o

chiqueiro. No centro desse quadrado ou retângulo funcional era em

geral construído o terreiro para a secagem do café.5

De início, as construções eram rústicas, e mesmo a casa de vivenda

possuía poucos elementos decorativos. Com o passar do tempo, e

o enriquecimento dos fazendeiros, as sedes das fazendas foram sendo

modificadas e passaram a dar lugar a construções imponentes, em

geral monumentos de estilo neoclássico. Mas é importante notar que

nem todos os fazendeiros obtiveram o mesmo êxito, e que a conjuntura

de meados do século só fez intensificar as diferenças entre eles.

113

4 Citado por Stanley Stein, Grandeza e decadência do café no vale do Paraíba (São Paulo: Brasiliense, 1961), p. 51.

5 O trabalhoso processo de beneficiamento do café foi narrado de modo ficcional e irônico por um cronista

de um jornal de Vassouras da seguinte forma: “Tio Tomaz me colheu. O supervisor olhou desgostoso quando

caí para fora da cesta da colheita. Chovia. O sol, então, secou-me. Durante dois dias um rodo imbecil caía

pesadamente sobre mim como se quisesse abrir a minha casca cada vez que me revolvia. Finalmente acharam que

eu já estava seco e selecionaram-me numa peneira de taquara. Em seguida, para o monjolo. Fui atirado no ventilador

de onde saí pronto para ser ensacado (...). Da fazenda para o intermediário, na estação, e em seguida

para o Rio.” Memórias de um grão de feijão, O Vassourense, 10/12/1880, citado por Stanley Stein, op. cit. p. 64.

114

Nos anos que antecederam a extinção do tráfico internacional de

escravos, ocorrida em 1850, os boatos sobre a iminência da medida

fizeram com que o preço dos cativos sofresse uma inflação muito

grande. Em 1848 o preço de um escravo era de aproximadamente

630$000 (630 mil réis), mas às vésperas da extinção, em 1850,

chegaria a 1:350$000 (1 conto e 350 mil réis). Para os pequenos

proprietários, o aumento do custo da mão-de-obra foi uma calamidade

que em muitos casos levou ao endividamento. No entanto, para

os fazendeiros que no período de baixa dos preços haviam investido

na compra de escravos africanos, mesmo que para isso tivessem contraído

empréstimos, a nova conjuntura, que já os alcançou com os pés

de café produzindo e com suas fazendas abastecidas de braços, só

traria vantagens.

Embora os gastos com a mão-de-obra aumentassem depois de

1850, os lucros auferidos com a venda do café para um mercado externo

em plena expansão fizeram com que a empresa cafeeira pudesse

continuar a se reproduzir sem maiores problemas. Além disso, o tráfico

interno de escravos de regiões menos dinâmicas, como o

Nordeste, iria suprir a demanda de mão-de-obra do vale do Paraíba.

De acordo com Eliana Vinhaes, “a extinção do tráfico intercontinental

não criou impacto sobre o município de Cantagalo, uma vez que a

reposição da força de trabalho se deu com a regularidade que a economia

local exigia”.6 Desse modo, as décadas de 1850 e 1860 foram tempos

de prosperidade, enquanto a de 1870 foi de verdadeiro apogeu

para a economia do município, quando foi alcançada uma média de

6.172 pés de café plantados por escravo produtivo. Na mesma época, a

média na região de Santos era de 3 mil pés por escravo, e em Capivari,

de apenas 2 mil. A produtividade dos antigos Sertões do Macacu era tal

que em 1871 o próprio presidente da província do Rio de Janeiro exaltava

a importância da Estrada de Ferro de Cantagalo como via de

escoamento da produção agrícola da região.7

Evidentemente, toda essa expansão implicou a aplicação de um

maior montante de capital de forma a cobrir os gastos com a compra

de mais escravos, com a ampliação das plantações e com o custeio das

6 Eliana Vinhaes, op. cit., p.110.

7 Idem, ibidem, p. 89.

antigas lavouras. Se até então os comissários de café eram responsáveis

apenas pela comercialização do produto, passaram a atuar como banqueiros

de seus contratantes, colocando-os em geral sob sua

dependência financeira e usufruindo a maior parte de seus lucros.8

Mas houve também fazendeiros que escaparam a esse jugo, tornando-

se, eles próprios, o que João Fragoso e Ana Maria Rios

chamaram de “fazendeiros-capitalistas”. De acordo com esses historiadores,

o fazendeiro-capitalista era aquele que “não vivia exclusivamente

de suas atividades agrícolas”.9 Isto é, era o grande fazendeiro

que procurava diversificar seus investimentos, aplicando seus lucros

não apenas em terras e escravos. Alguns iriam investir em imóveis

urbanos, outros no comércio ou em apólices, outros ainda iriam

emprestar dinheiro a juros. Seriam exemplos clássicos desse tipo de

fazendeiros o Comendador Manuel de Aguiar Valim e o Barão de

Nova Friburgo.

Os fazendeiros-capitalistas formavam uma elite empresarial que

respondeu de forma diferente de seus pares à crise do regime escra -

vista, cada vez mais intensa à medida que o século avançava. Depois do

fim do tráfico, com a promulgação da Lei do Ventre Livre em 1871 e

o crescimento do movimento abolicionista, um dos pilares da empresa

cafeeira, representado pelo trabalho escravo, foi sendo pouco a

pouco demolido. Em lugar de investir na reprodução do sistema, ou

seja, na compra de mais escravos e terras, ainda que daí adviesse boa

parte de sua riqueza e que a margem de lucro dos outros investimentos

fosse menor, esses fazendeiros “modernos” preferiram abrir

novos caminhos.

De acordo com João Fragoso e Ana Maria Rios, o que estava em

jogo nessa economia não era a reprodução pura e simples do lucro, e

sim a reprodução de uma sociedade extremamente hierarquizada,

cuja lógica se baseava num valor extra-econômico: o ideal aristocrático.

Ou seja, em última instância, o objetivo não era expandir um

empreendimento produtivo, mas sobretudo perpetuar as diferenças

115

8 Em trabalho anterior, analiso a ação dos comissários de café ao longo do século XIX e destaco seu papel como

elementos responsáveis pela transferência dos principais lucros da cafeicultura para as atividades financeiras

urbanas radicadas na Corte. Ver Marieta de Moraes Ferreira, A crise dos comissários de café do Rio de Janeiro (Niterói,

UFF, 1977. Dissertação de mestrado).

9 João Luís Ribeiro Fragoso e Ana Maria Lugão Rios, Um empresário brasileiro no oitocentos, em Hebe Maria

Mattos Castro e Eduardo Schnoor, Resgate - uma janela para o oitocentos (Rio de Janeiro: Topbooks, 1995), p. 199.

116

entre senhores e escravos ou libertos, e mesmo entre os próprios se -

nhores, de modo a garantir a existência de uma pequena e fechada

elite agrária.10

A

Não foi possível saber o que produziu a antiga sesmaria de Santa

Maria do Rio Grande entre 1793 e 1820, nos tempos de João Baptista

Rodrigues Franco e de Isabel Maria da Silva. Mas sabe-se que, quando

sua filha Basília e o marido Antônio Rodrigues de Moraes lá iniciaram

a vida de casados, a vila vizinha de Cantagalo, ainda pequena, já

estava em expansão. A população livre na década de 1820 era de

aproximadamente 1.800 pessoas, enquanto o número de escravos

chegava a 2.700. Havia na vila três lojas de fazenda, mais de uma

dezena de tabernas, uma estalagem e 28 engenhos para a produção de

açúcar. Além disso, Cantagalo já produzia aproximadamente 100 mil

arrobas de café (1 arroba = 15 quilos).11

Nos anos que se seguiram a seu casamento, Antônio prosperou de

forma significativa. É difícil saber se já possuía algum capital acumulado

no comércio ou se o casamento com Basília foi o ponto de partida

de seu enriquecimento. De toda forma, seu inventário, datado de 13

de agosto de 1833, cerca de 13 anos após casamento, revela um estado

de prosperidade já conquistado. Embora não se saiba como isso aconteceu,

já que Basília tinha irmãos com os quais deveria dividir a herança

paterna, na época Antônio já era o único proprietário da Santa Maria

do Rio Grande e havia feito muitos investimentos nas atividades

rurais. O inventário deixa clara a importância que o café já assumia

na região. Encontra-se no documento o registro de uma sociedade

constituída em 1826 entre o casal Moraes e Antônio Clemente Pinto,

futuro Barão de Nova Friburgo, fornecedor de mão-de-obra escrava

para as lavouras.12 A dívida de Antônio Rodrigues de Moraes com o

sócio, de 5:760$061 (5 contos, 760 mil e 61 réis), era pequena em

comparação com o seu monte-mor, que chegava a 65:000$000 (65

contos de réis).

10 “Na verdade, a lógica destes empresários de fins do oitocentos foi a lógica, presente entre as elites desde os

tempos da colônia, de que as mudanças 'estruturais' devem se processar de maneira a reiterar a diferenciação

excludente.” João Luís Ribeiro Fragoso e Ana Maria Lugão Rios, op. cit., p. 222.

11 Eliana Vinhaes, op. cit., p. 31.

12 O nome de Antônio Clemente Pinto encontra-se na listagem elaborada pelo historiador Manolo

Florentino dos comerciantes envolvidos no tráfico negreiro entre 1811 e 1830. Ver Manolo Garcia Florentino,

Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX), op. cit., p. 283.

O que o inventário de Antônio permite ver é que em 1833 ele e

Basília possuíam não apenas as terras da antiga sesmaria dos

Rodrigues Franco, mas uma fazenda produtiva, avaliada em quase

61:000$000 (61 contos de réis). Essa avaliação cobria, além da terra,

os bens nela existentes: uma casa de vivenda de madeira roliça e telha;

uma casa que serve de senzala; uma casa de guardar café e telha; um

moinho; três monjolos; 5.568 alqueires (1 alqueire = 13,5 litros) de

café seco; 1.800 alqueires de milho; 70 alqueires de feijão; 80

alqueires de arroz; um cafezal com 90 mil pés produtivos; um cafezal

com 8 mil pés de um ano; terreiros cercados de braúna, horta, pasto

e laranjeiras; pasto para engordar porcos; roça com 80 palmos (1

palmo = 0,22 metros); uma casa para porcos de madeira roliça; animais;

muitos instrumentos agrícolas, como machados e foices, novas

e velhas, canoa, serras etc.; 50 escravos; utensílios domésticos. Os

itens mais valiosos, correspondentes a cerca de 21:000$000 (21 contos

de réis) cada um, eram o cafezal “com pés já dando” e os 50

escravos. Além da fazenda Santa Maria do Rio Grande, o inventário

incluía a fazenda Macabu e seus bens, avaliados em pouco mais de

4:000$000 (4 contos de réis).

Tais valores incluíam o casal entre os altos estratos do mundo

rural.13 No entanto, no que se refere aos objetos pessoais, móveis e

utensílios domésticos, o espólio de Antônio era bastante reduzido.

Percebe-se que, apesar da expansão econômica, seu estilo de vida

ainda era bastante rústico. Possuía ele um armário; uma mesa grande

e ordinária; dois bancos muito ordinários; um selim usado; dois baús

pequenos; quatro panelas de ferro fundido; três caldeirões de ferro

batido; três bandejas usadas; 18 talheres de ferro; um forno de cobre;

uma espingarda de dois canos; um jogo de pistolas velho; um boné

militar; uma sobrecasaca de pano azul fino em bom uso; uma sobrecasaca

de sarja preta; um par de calças de pano azul; um lenço de seda;

cinco lenços de algibeira; cinco pares de calças de brim; um colete

preto de sarja; duas jaquetas de riscado; um par de esporas de prata;

12 lençóis de Bretanha; 13 guardanapos; um estojo de seis navalhas.

117

13 De acordo com João Fragoso e Manolo Florentino, na primeira década do século XIX uma negociação de

10 contos de réis era acessível a apenas 1/5 da população. Ainda que os valores do inventário de Antônio

Rodrigues de Moraes sejam de 1833, e tenha havido uma certa desvalorização da moeda, é possível inferir que

ele e Basília já integravam um grupo restrito do mundo rural brasileiro, como detentores de um patrimônio

considerável. Ver João Fragoso e Manolo Florentino, O arcaísmo como projeto. Mercado atlântico, sociedade agrária e elite

mercantil no Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1840 (3a ed. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1998).

Documento de partilha dos bens de João Antônio e Basília em 1872.

14 Stanley Stein, Vassouras: um município brasileiro do café (1850-1900) (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990).

15 Domingos José das Neves faleceu em 1837, mas seu inventário só seria encerrado após a morte de Maria

Isabel, que era a sua inventariante. O inventário de ambos, datado de 11 de agosto de 1846, está conservado no

acervo da fazenda Santo Inácio.

16 Acervo particular de Bento Luiz de Moraes Lisboa.

A minúcia com que são detalhados os bens de uso pessoal e os utensílios

domésticos demonstra sua raridade nas regiões recém-ocupadas

pelos fazendeiros de café, já apontada pelo historiador Stanley Stein.14

É nesse contexto que o inventário de Antônio deve ser entendido, mas

também é possível constatar que, mesmo entre os fazendeiros da

região, seu padrão de consumo era um tanto restrito. Para melhor

avaliá-lo, é interessante a comparação com o de outro fazendeiro de

café de Cantagalo, Domingos José das Neves, e de sua mulher Maria

Isabel da Silva, irmã de Basília.15 O casal legou a seus herdeiros um

monte-mor de aproximadamente 15:000$000 (15 contos de réis),

dos quais mais de 7:000$000 (7 contos de réis) estavam comprometidos

com dívidas, o que mostra que a situação da família não era de

prosperidade. No entanto, entre os objetos listados no inventário

nota-se maior quantidade de peças de vestuário e de roupas de cama,

o que denota um padrão de vida mais refinado. Pertenciam a

Domingos José 12 lençóis de alcobaça; 12 lençóis de seda; 11 lençóis

americanos; seis pares de meias de algodão; 11 coletes de fustão; oito

jaquetas; 11 pares de calças; seis pares de ceroulas; dois lenços de seda

de gravata. Pertenciam a Maria Isabel um chapéu-do-chile; um véu

verde; uma mantilha roxa; uma dita preta velha; uma dita branca; um

xale de seda roxo; uma mantilha de seda sarjada roxa velha; três vestidos

de chita de casa roxos; dois ditos de chita; um vestido de pano

verde de montar; cinco pares de meias; quatro lenços brancos; uma

medalha de ouro de mãozinha com duas estrelas; uma dita de ouro

cobrado e duas pedras amarelas; um par de brincos de ouro; um

cordão de ouro; um cordão de nove palmos de ouro; uma faquinha de

costura de prata; uma garrafa de cristal para água.

No início de sua vida com Basília, para saldar a dívida que Antônio

Rodrigues de Moraes tinha com Antônio Clemente Pinto, João

Antônio tomou uma atitude no mínimo ousada. Ele e Basília cederam

ao credor metade do que a família possuía, ou seja, das fazendas Santa

Maria do Rio Grande e Macabu e seus bens, e iniciaram uma nova

sociedade. Nela, de acordo com escritura datada de 1836,16 Antônio

119

120

Clemente Pinto e sua mulher entraram com a metade do capital, re -

presentado por “31 escravos, 9$000 (9 mil réis) de café, metade da

fazenda do Rio Grande (de todos os prédios, gado vacum, cavalar e

porcadas) e metade dos porcos, gado vacum e cavalar que existem em

Macabu”, o que correspondia a um valor monetário de 32:340$915

(32 contos, 340 mil e 915 réis), enquanto João Antônio e Basília

entraram com 27 escravos (15 dos quais pertenciam aos filhos de

Basília), 49$000 (49 mil réis) de café, a metade da fazenda do Rio

Grande (com prédios, gado etc.) e a metade dos bens de Macabu, perfazendo

igualmente 32:340$915 (32 contos, 340 mil e 915 réis).

Ainda segundo a escritura, foi estabelecido que João Antônio

seria o responsável pela administração dos negócios, não podendo

trabalhar em nenhum outro, e ficaria obrigado a residir na fazenda

Santa Maria do Rio Grande. Pelo serviço de administração, receberia

600$000 (600 mil réis) por ano, além de sua família ser “sustentada

na fazenda à custa da sociedade”. De acordo com os termos do

contrato, “depois de ter remetido todo o café daquele ano, os sócios

farão as contas e cada um poderá dispor das partes que lhes pertencem;

os lucros e prejuízos serão divididos em partes iguais”.

Desde cedo, portanto, João Antônio parece ter adotado uma

estratégia diferente da do irmão. Em vez de requisitar novos empréstimos

a Antônio Clemente Pinto, preferiu envolvê-lo numa

sociedade. Com isso, livrou-se das dívidas e conquistou autonomia

frente a seu financiador. Com o passar dos anos, não só recuperaria

a posse integral das fazendas Santa Maria do Rio Grande e Macabu,

como adquiriria muitas outras.

De 1835, quando assumiu a direção dos negócios da família, até

1872, quando, juntamente com Basília, fez em vida a partilha de 2/3

dos bens do casal, João Antônio acumulou grande capital. Dois do -

cumentos mostram sua impressionante ascensão. Um deles é a Partilha

e inventário do Barão e da Baronesa das Duas Barras, datado de Santa Maria

Madalena, 1872,17 e o outro é o opúsculo já citado, Biografia do Barão das

Duas Barras por um seu amigo Dr. M. C. e testamento do Barão e Baronesa das Duas

Barras, que descreve os testamentos de ambos, relativos ao terço

restante de seus bens, lavrados um ano após a partilha, em 1873.

Comparando-se o monte-mor do inventário de Antônio Rodrigues

17 Acervo particular de Paulo Lisboa de Moraes.

de Moraes em 1833 com o total de bens de João Antônio e Basília em

1872, verifica-se que em pouco menos de 40 anos a fortuna do casal

tornou-se 70 vezes maior – ou seja, os cerca de 65:000$000 (65

contos de réis) de 1833 transformaram-se na enorme fortuna de mais

de 4.000:000$000 (4.000 contos de réis), em números exatos,

4.359:769$164 (4.359 contos, 769 mil e 164 réis). Para os padrões

da época, essa era uma quantia de fato espetacular, quase o dobro do

valor do inventário datado de 1878 do rico Comendador Valim de

São Paulo (2.847 contos, 169 mil, 362 réis), mencionado pelo historiador

João Fragoso.18

A documentação relativa aos bens dos Barões das Duas Barras em

1872/1973 contém várias informações interessantes. Indica, por

exemplo, que apenas cerca de 1/3 de sua fortuna, ou seja,

1.563:729$130 (1.563 contos, 729 mil e 130 réis), correspondia a

terras, escravos e pés de café.

No tocante a terras, o inventário de Antônio, em 1833, mencionava

as fazendas Santa Maria do Rio Grande e Macabu. João

Antônio as manteve, mas ao longo do tempo desbravou ou adquiriu

outras 20, constituindo o que seu descendente Roberto Grey chamou

de “galáxia de fazendas”: Barra, Bonança, Boa Esperança, Canteiro,

Coqueiro, Córrego Alto, Engenho da Serra, Engenho Velho,

Freijão, Glória, Grama, Monte Café, Neves, Olaria, Paraíso,

Ribeirão Dourado, Rio São João (esta em Minas Gerais), Sant’Alda,

São Lourenço e Sobrado.

No tocante a escravos, o inventário de Antônio mencionava a

posse de 50; o testamento de João Antônio, em 1873, deixava pouco

mais que isso, ou seja, 56 escravos, alforriados. Não é possível saber,

pela leitura do inventário do Barão, o número exato de escravos que

possuiu, já que antes da partilha dos bens, ao serem dissolvidas as

sociedades de que participava, parte de seus escravos foi distribuída

entre seus sócios, mas num cálculo aproximativo é possível supor que

cerca de mil escravos trabalhassem nas suas 22 fazendas.

Outro dado significativo é o número de pés de café que João

Antônio deixou a seus escravos. Os 50 mil pés a eles legados em testamento

equivaliam a mais da metade do total registrado em 1833, de

98 mil pés. Mas aqueles 50 mil cafezeiros deviam ser um número

121

18 João Luís Fragoso e Ana Maria Rios, Comendador Aguiar Valim: um empresário brasileiro no oitocentos,

em Hebe Maria Mattos Castro e Eduardo Schnoor, op. cit.

122

ínfimo se comparados ao total, tanto que puderam ser doados a “seus

escravos libertos [...] que desfrutarão enquanto viverem, e por morte

dos mesmos tudo ficará pertencendo a seus legítimos herdeiros”.19

É certo que a fortuna de João Antônio foi fruto de seus cafezais.

Porém, tendo em vista suas práticas econômicas, sobretudo na segunda

metade do século XIX, é possível identificar em seu perfil traços

dos fazendeiros-capitalistas definidos por João Fragoso e Ana Maria

Rios. Embora não se tenha envolvido no processo de comercialização

do café, como muitos outros cafeicultores da época, mantendo-se

ligado às firmas de Clemente Pinto e de Feliciano Henriques para

a venda de sua produção, João Antônio, após libertar-se da dívida

contraída pelo irmão, iria tornar-se ele próprio credor de outros

fazendeiros. Assim é que, segundo o inventário de 1872, os outros

2/3 de sua fortuna estavam distribuídos da seguinte forma:

1.384:617$487 (1.384 contos, 617 mil e 487 réis) representavam

dívidas ativas, ou seja, empréstimos a outros fazendeiros ou parentes,

e 1.563:729$130 (1.563 contos, 729 mil e 130 réis) eram dinheiro

em caixa, depositado em bancos ou nas casas comissárias com as quais

costumava negociar.

Uma série de escrituras de confissão de dívida também comprova

a atividade usurária de João Antônio, ao menos desde a década de

1860. Em 1866, por exemplo, emprestou 8:000$000 (8 contos de

réis) a José Joaquim de Oliveira Dias e sua mulher, Luísa de Souza

Oliveira Dias, fazendeiros de Cantagalo.20 Cinco anos depois, o

montante da dívida havia quase dobrado, e o casal hipotecou uma

fazenda denominada Socorro, em Cantagalo, com quase 100 mil pés

de café de várias idades, benfeitorias e escravos, e um sítio, chamado

do Moinho, na vila de Nova Friburgo. Na escritura de confissão de

dívida feita em 18 de dezembro de 1871 por José Joaquim e sua mu -

lher, e entregue ao Barão das Duas Barras na fazenda Santa Maria do

Rio Grande, pode-se ler o seguinte: “Foi dito que se constituíam

devedores da quantia de 8:000$000 por escritura pública, de 8 de

janeiro de 1866, competentemente registrada, vencendo o prêmio de

um por cento ao mês acumulado, anualmente, e que concertando

suas contas com o mesmo seu credor o Exmo. Barão das Duas Barras,

19 Biografia do Barão das Duas Barras por um seu amigo Dr. M. C. e testamento..., op. cit., p. 14.

20 Escritura de confissão de dívida datada de 18 de dezembro de 1871. Acervo da fazenda Santo Inácio.

as quais acham conforme e exatas, por elas verificaram dever a quantia

de 15:686$576 (15 contos, 686 mil e 576 réis) de principal e

prêmios vencidos até esta data”.

Em várias outras ocasiões foram detectadas práticas semelhantes.

D. Catarina Rosa de Macedo, fazendeira viúva, também se endividou

na década de 1860. Em 1867, recorreu a João Antônio para obter a

quantia de 21:716$072 (21 contos, 716 mil e 72 réis). Em 1870, seu

saldo devedor chegava a pouco mais de 30:000$000 (30 contos de

réis).21 Esses exemplos demonstram não só a atuação do Barão como

emprestador de dinheiro a juros, mas a própria lucratividade dessa

atividade.

Outro exemplo da atuação de João Antônio como fazendeirocapitalista

encontra-se na documentação da firma Moraes &

Sobrinho. Trata-se de uma sociedade formada em 1849 por João

Antônio, Basília, José Antônio – filho do primeiro casamento de

Basília – e a mulher deste, Leopoldina. A firma, cuja sede seria a

fazenda das Neves, comprada quatro anos antes por João Antônio e

José Antônio, possuía um capital total de 24:000$000 (24 contos de

réis), constituído em partes iguais pelos dois casais.22 Quando da dissolução

amigável da sociedade, por conta da partilha de bens de João

Antônio e Basília em 1872, constata-se que apenas em dívidas ativas a

Moraes & Sobrinho possuía mais de 133:000$000 (133 contos de

réis), ou seja, quase seis vezes o capital inicial. Um exemplo de sua

atuação como emprestadora foi o empréstimo de 100:000$000 (100

contos de réis) concedido em 1869 ao Conselheiro João de Almeida

Pereira Castro e sua mulher, tendo como garantia a hipoteca de uma

fazenda em Campos. O saldo líquido dividido entre os sócios, no

momento da dissolução, chegava à espantosa quantia de

1.093:874$720 (1.093 contos, 874 mil réis e 720 réis). Passados 24

anos, a sociedade estava longe de ser um pequeno negócio entre pa -

rentes. Era, para a época, uma grande empresa agrícola e financeira.

A escritura de dissolução da Moraes & Sobrinho, datada de 16 de

janeiro de 1873, contém informações precisas sobre o patrimônio da

sociedade. Na época a empresa possuía: 105:000$000 (105 contos

de réis) em bens de raiz e benfeitorias; 33:000$000 (33 contos de

123

21 Escritura de confissão de dívida datada de 27 de junho de 1870. Acervo da fazenda Santo Inácio.

22 Escritura da firma Moraes & Sobrinho, datada de 15 de dezembro de 1849, lavrada na fazenda Santa Maria

do Rio Grande. Acervo da fazenda Santo Inácio.

124

réis) em café em coco; 1:368$200 (1 conto, 368 mil e 200 réis) em

bens móveis e utensílios; 7:800$000 (7 contos e 800 mil réis) em

animais (gado e tropas); 178:200$000 (178 contos e 200 mil réis)

correspondentes a 163 escravos; 133:280$000 (133 contos e 280 mil

réis) em dívidas ativas; 176:321$202 (176 contos, 321 mil e 202 réis)

em dinheiro na Casa Friburgo & Filhos; 300:105$230 (300 contos,

105 mil e 230 réis) na casa J. Henriques & Macedo Sobrinho;

165:353$316 (165 contos, 353 mil e 316 réis) em dinheiro em caixa.

Ao ser dividido esse patrimônio, José Antônio de Moraes e

Leopoldina ficaram com os bens de raiz, escravos, utensílios, animais

e dinheiro em caixa completando o valor da meação, enquanto o

Barão e a Baronesa das Duas Barras receberam suas partes em di -

nheiro depositado nas casas financeiras mencionadas.

Se a diversificação de empreendimentos e o investimento no mercado

financeiro caracterizaram muitos outros fazendeiros-capitalistas,

que a partir da década de 1860 perceberam o fim próximo da

escravidão e se preparam para enfrentar o baque que a falta de mãode-

obra traria para suas lavouras, João Antônio parece ter pertencido

a um grupo especial. O fato de ter deixado escravos libertos e de lhes

ter legado pés de café e terras – “a quarta parte de uma sesmaria” – em

sua fazenda Santa Maria do Rio Grande parece indicar que, ao contrário

de outros fazendeiros, acreditava na possibilidade de manter os

ex-escravos em suas fazendas após a Abolição, como trabalhadores

rurais. Certamente veio dessa crença, transmitida aos filhos, a transição

pacífica do trabalho escravo para o trabalho livre nas antigas

terras do Barão, e também um certo “orgulho” presente na memória

familiar quando hoje se diz que, nas fazendas dos Moraes, os escravos

não foram embora quando veio a libertação.

A partilha de bens de João Antônio e Basília teve ainda outros

aspectos curiosos. Como já foi dito, João Antônio decidiu dividir em

vida 2/3 de seu patrimônio e de sua mulher entre seus filhos e enteados,

ficando o terço restante, correspondente a 1.453:256$368 (1.453

contos, 256 mil e 368 réis), reservado para a manutenção do casal

enquanto vivesse. O montante a ser partilhado, 2.906:512$776

(2.906 contos, 512 mil e 776 réis), foi por sua vez dividido em duas

partes iguais entre o Barão e a Baronesa, e cada uma das partes foi redividida

pelo total de filhos de cada um. Assim, a parte de João Antônio,

equivalente a 1.453:256$368 (1.453 contos, 256 mil e 368 réis), foi

dividida entre seus quatro filhos, Felizarda, Joaquim, Elias e Amélia,

recebendo cada um 363:314$092 (363 contos, 314 mil e 92 réis),

enquanto a parte de Basília foi dividida por nove, ou seja, por esses

quatro e mais os cinco filhos do primeiro casamento, José Antônio,

Antônia Rosa, Basília (II) e Antônio, e mais os herdeiros de Francisco,

já falecido, recebendo cada parte 161:472$932 (161 contos, 472 mil e

932 réis). Dessa forma, mesmo de acordo com a lei, a divisão beneficiou

os filhos de João Antônio, já que a soma das doações do pai e da

mãe a cada um totalizava a fortuna de 524:787$024 (524 contos, 787

mil e 24 réis). Outro detalhe é que a herança recebida por cada uma

das partes tinha composição idêntica à do patrimônio do Barão: uma

parcela em terras, escravos e café, outra em dívidas ativas e outra em

dinheiro. O cuidado em repassar aos herdeiros a mesma distribuição

de recursos que adotara deixa claro que, em 1872, João Antônio estava

realmente consciente das mudanças na estrutura produtiva do país

que se aproximavam, e por isso direcionou o principal de sua fortuna,

e da de seus herdeiros, para novas atividades.

Para a parte de seus bens não dividida em vida, em 1873 João

Antônio e Basília fizeram cada um seu testamento, determinando de

comum acordo o que deveria ser feito após a morte do último cônjuge.

Retiradas as doações para escravos, ex-escravos libertos, empregados,

parentes pobres e agregados, os bens deveriam ser vendidos, e o montante

apurado deveria ser reaplicado em títulos da dívida pública a

serem partilhados entre os herdeiros. Os títulos que o Império

começou a emitir em 1865 para financiar os gastos com a Guerra do

Paraguai, “embora menos lucrativos, eram nas condições do mercado

financeiro de longe os mais seguros”.23 João Antônio ainda viveu dez

anos após ter feito seu testamento, vindo a morrer em 1883. Em 1884

Basília refez o dela, sempre mantendo a orientação do marido. Faleceu

naquele mesmo ano, mas seu inventário só seria concluído em 1894.

O total apurado com a venda de seus bens chegou a 1.152:000$000

(1.152 contos de réis), que foram divididos entre seus nove filhos. No

caso dos filhos já falecidos, Francisco, Antônia e Joaquim, a herança

foi subdividida entre os genros, noras e netos.

O testamento de João Antônio, corroborado por Basília, é especialmente

interessante por permitir perceber sua noção de família e sua

preocupação em construir uma memória familiar. Além de determinar

125

23 João Luís Ribeiro Fragoso e Ana Maria Lugão Rios, op. cit., p. 221.

126

que os bens fossem vendidos e transformados em títulos, evidenciando

mais uma vez a consciência do esgotamento do sistema em que fizera

fortuna, João Antônio fez questão de introduzir uma cláusula que tornava

as apólices inalienáveis por 50 anos. Isso mostra sua preocupação

com a preservação do patrimônio familiar e com a sobrevivência de seus

descendentes, uma vez que a imobilização lhes garantiria uma renda

certa, proveniente de juros, até a terceira geração.

Mas são as determinações de João Antônio relativas à fazenda Santa

Maria do Rio Grande as que mais chamam a atenção, por seu aspecto

não apenas econômico, mas também simbólico. Origem da acumulação

de riqueza da família, residência do casal desde seu casamento,

cemitério familiar, espaço onde casamentos, batizados e demais festas

familiares sempre se realizaram, a antiga sesmaria de Santa Maria do

Rio Grande, requerida em 1793 ao Vice-Rei pelo pai de Basília, João

Baptista Rodrigues Franco, deveria constituir um local de abrigo para

todos – ex-escravos, empregados, parentes e agregados – que necessitassem

de acolhida. Embora a propriedade tenha ficado restrita aos

quatro filhos de João Antônio, sendo excluídos os seus enteados, o uso

do lugar deveria ser coletivo. Mesmo possuindo muitos herdeiros, a

propriedade seria inalienável e indivisível, e assim deveria permanecer,

de acordo com o testamento do Barão, e à revelia da legislação vigente,

para todo o sempre.

Após a morte de João Antônio e Basília em 1883 e 1884, a fazenda

Santa Maria do Rio Grande, como fora determinado, tornou-se propriedade

de Felizarda, Elias, Joaquim, Amélia e seus descendentes.

Durante 50 anos, ou seja, até 1933, quando morreu Amélia, filha

caçula e última descendente direta dos Barões das Duas Barras, permaneceu

indivisa e ocupada por todos. Tinha então 17 proprietários,

e só nesse momento se pensou em discutir as ordens do Barão.

A

Como seria, na vida de todo dia, esse homem que, beneficiado

sem dúvida por condições familiares e de mercado favoráveis, foi

capaz de aproveitá-las com tanto sucesso? A memória familiar, passadas

cinco gerações, ressalta seu senso de iniciativa, sua determinação

e persistência, sempre canalizadas para a expansão de suas lavouras

através da incorporação de novas terras e da compra de novos

escravos. Mas como teria sido sua prática de trabalho desde que se

casou com Basília e passou a plantar café na fazenda Santa Maria do

Rio Grande?

É sabido que, a partir de meados do século XIX, as florestas virgens

da província do Rio de Janeiro foram sendo devastadas com uma

extraordinária velocidade pelos cafeicultores para dar lugar a plantações

que atenderiam a uma demanda internacional em expansão e

os transformariam em “barões do café”. O processo de preparação

de um novo cafezal começava com a retirada da floresta das madeiras

de lei, que em geral eram utilizadas na própria fazenda. Em seguida,

lançava-se fogo à mata. Há relatos de viajantes estrangeiros que contam

do “barulho ensurdecedor” das queimadas nas florestas.24 Na

terra ainda quente e enegrecida, os escravos iniciavam então o trabalho

para o plantio dos pés de café. Certamente não foi muito diferente a

rotina nas fazendas que João Antônio ia desbravando. Segundo Judith

Veiga, seu biografado chegou a receber o apelido de “João Maluco”,

tal era a proporção dos incêndios que provocava para incorporar

novas terras às suas plantações.25

E quanto ao interior da sede da Santa Maria do Rio Grande no

tempo do Barão e da Baronesa, como seria guarnecido? O inventário

de João Antônio e Basília, em 1872, arrola os pertences da casa: 17

cadeiras de jacarandá, duas cadeiras de braço de jacarandá, duas

cadeiras de balanço, um sofá, um divã “marroquino”, dois consoles de

jacarandá, dois lavatórios de vinhático, dois cabides envernizados, duas

camas francesas, uma rede, um espelho grande, uma mesa grande de

jacarandá, um tapete e quatro escarradeiras, um lavatório grande com

mesa marrom, um lavatório pequeno velho, uma mobília de sala de

espera, uma secretária de jacarandá, um armário de vinhático, uma

mesa de jacarandá, um lavatório com bacia, jarro e espelho, uma mesa

elástica para jantar, 12 cadeiras de jacarandá, um relógio de parede

com caixa de vinhático, dois guarda-louças de vinhático, um guardalouça

de vinhático com gavetas, uma talha de barro, uma marquesa de

jacarandá, 52 libras de prata em obras, um faqueiro, um aparelho de

porcelana, um fogão econômico, um fogão de ferro, além de utensílios

de cozinha (tachos, panelas etc.). Quase 20 anos depois, em

1891, o inventário de seu genro Francisco Lopes Martins, marido de

Felizarda de Moraes, na parte que se refere à fazenda Santa Maria,

mencionaria ainda outras peças: um piano e diversos objetos de deco-

127

24 Walsh, Notices of Brazil, citado por Stanley Stein, Vassouras: um município brasileiro do café (1850-1900), op., cit., p. 59.

25 Judith Veiga, op. cit., p. 40-50.

128

ração como quadros, bustos, veados de louça e castiçais.26 O cenário

sem dúvida mudara bastante desde a morte de Antônio Rodrigues de

Moraes em 1833, quando, entre os móveis e utensílios arrolados, fi -

guravam bancos “muito ordinários” e talheres de ferro. Os móveis e

objetos listados nos inventários do Barão e de Francisco Lopes Martins

indicam a existência de maior conforto e sofisticação na vida doméstica.

O enriquecimento não teria trazido, porém, uma mudança substancial

nos hábitos de João Antônio e de sua família. Informa o Dr. M.

C., ao biografar o amigo Barão, que o início de sua vida teria sido

penoso: “perdeu os pais aos três anos de idade e contratou-se com seu

irmão Manoel para aprender a ler, pagando-lhe com seus serviços

pessoais”. Moço ainda, “paupérrimo”, viera para Cantagalo e aí,

“graças à sua força de vontade, ao seu gênio laborioso e ao seu espírito

metódico e econômico”, conseguira juntar enorme fortuna. Mas,

no íntimo, não mudara:

“Tinha costumes patriarcais mineiros. A sua mesa era

mineira, frugal e abundante. Nela apareciam regularmente

a canjica, as pipocas, a couve mineira, o caldo de unto, a

rapadura. Preferia a tudo o bem estar da família. Visitava de

tempos em tempos com sua esposa, ela de liteira e ele a ca -

valo, as numerosas fazendas dos parentes, que todas tinham

já sido igualmente suas. [...]

Foi sempre brando para os escravos, que o estimavam e

respeitavam.

Era curioso ver o Barão das Duas Barras, da sua rede, ouvir

e decidir perdendo muito tempo questões mínimas entre

seus velhos libertos ou escravos, que ficavam por isso muito

lisonjeados e se acomodavam sem mais apelação. Hoje,

como sempre, preferia a calça e a camisa de brim mineiro

aos finos estofos do estrangeiro. Não gostava do troly,

cômodo veículo, hoje muito em uso e que muitos Moraes

possuem. Viajava sempre nas suas pacíficas bestas de sela.”27

26 Inventário de Francisco Lopes Martins, datado de 19 de dezembro de 1891. Arquivos do Pró-Memória da

Prefeitura de Nova Friburgo.

27 Biografia do Barão das Duas Barras por um seu amigo Dr. M. C. e testamento..., op. cit.

É claro que uma casa mais confortável foi construída, móveis de

jacarandá foram fabricados por carpinteiros portugueses, e alguns

objetos de melhor qualidade, como louças, roupas de cama e mesa,

foram importados, mas nada muito luxuoso. João Antônio mantevese

sempre um homem rural que não se urbanizou, não construiu

mansões nas vilas e nas cidades e não ocupou cargos públicos. O

Barão nunca mandou fazer um brasão e não chegou a ter louças e

cristais com seu monograma. No máximo, teve um aparelho de chá de

prata gravado com suas iniciais e fez-se retratar, assim como à

Baronesa.

Hoje, os retratos originais estão na fazenda do Ribeirão Dourado.

Embora o retrato da Baronesa não seja assinado, presume-se que seja

de autoria do mesmo pintor que assina o do Barão. Trata-se do

retratista francês Viancin, ativo na Corte e no interior da província

fluminense na segunda metade do século XIX. Do original de Viancin

foram copiados todos os outros retratos a óleo do Barão que estão nas

paredes das fazendas de seus descendentes.28

Em seu testamento, João Antônio pedia para ser sepultado no

cemitério da Santa Maria do Rio Grande, e que seu corpo fosse transportado

pelos escravos mais velhos. Assim foi feito, e até hoje lá

repousam os restos dos Barões das Duas Barras.

129

28 Avaliação de Carlos Eduardo de Castro Leal em Marieta de Moraes Ferreira e Carlos Eduardo Leal, op. cit.

Fazenda do Ribeirão Dourado, no atual município de Cordeiro.

131

Sob as Ordens do Barão

e do talento para fazer fortuna, João Antônio de Moraes sempre

teve a preocupação, expressa em seu inventário de maneira

até surpreendente, de definir os rumos de sua família. Por isso

mesmo tornou-se um ponto de referência para toda a pa -

rentela, não apenas para seus filhos e enteados, mas também

para seus irmãos, cunhados e sobrinhos. Isso não significa que

não houvesse discordâncias em relação às suas recomendações.

Um episódio ilustra os dois lados da moeda.

Provavelmente inspirado em seu exemplo, Felisberto de

Moraes – outro irmão que deixou as Minas Gerais para se instalar

na região de Cantagalo – foi até a fazenda Santa Maria do

Rio Grande em busca de auxílio para preparar o próprio testamento.

O Barão o ajudou a elaborar o documento e ficou como

testamenteiro, além de tutor de Antônia, filha natural de

Além da capacidade de trabalho

132

Felisberto nascida quando este já era viúvo. O testamento continha

uma determinação cuja origem é possível reconhecer: a terça parte

dos bens de Felisberto era legada em forma de apólices que só poderiam

ser vendidas após 49 anos. A inclusão de mais uma herdeira e a

gravação de parte da herança certamente desagradaram aos filhos

legítimos de Felisberto, que pressionaram o pai para que anulasse o

documento. Felisberto mandou um emissário buscá-lo, mas o Barão,

em vez de entregá-lo, enviou-lhe a seguinte carta:

“Rio Grande, 8 de fevereiro de 1879

Aqui veio hoje pela segunda vez o Sr. Moreira para levar o

seu testamento. Eu disse a ele que não entregava a ele e que

Vossa Mercê o depositou em minha mão e que eu na sua o

depositaria.

Eu já não tenho ido levá-lo porque tenho andado como lhe

mandei dizer enfermo, mas se Deus quiser segunda ou terça

da semana que entra lá estarei e também lhe previno que

não vale nada Vossa Mercê inutilizar este, visto que tem

outro no Banco do Brasil.

Eu sei que pessoas ignorantes têm lhe dito que Vossa Mercê

com a despesa do seu testamento vai sobrecarregar sua

família com mais 40 a 50 contos. Meu Mano e amigo eu

felizmente nunca careci do que é seu, o que eu tenho me

chega e sobra muito principalmente estando eu com 68 para

69 anos e por isso Vossa Mercê pode fazer do seu testamento

o que bem lhe parecer e pode queimá-lo que eu com isso

não tenho prejuízo nenhum.

Estimo as suas melhoras

seu Mano e amigo

Barão das Duas Barras”

A carta, único documento encontrado escrito de próprio punho

pelo Barão, foi anexada ao processo movido no ano de 1883 pelos fi -

lhos de Felisberto, visando a anular o testamento do pai.1 Alegavam

eles que o documento, que o próprio Felisberto tentara sem êxito

anular dias antes de morrer, não significava “outra cousa mais do que

1 Arquivo Nacional, Seção de Documentação Judiciária, caixa 2624, processo 10047.

uma das muitas condescendências do testador – homem ignorante –

para com o Barão das Duas Barras, seu irmão, que exercia sobre seu

ânimo extraordinária influência e que governava-lhe a vontade”.

Embora não tenham sido encontrados documentos que revelem a

sentença final do processo, fica realmente clara a influência de João

Antônio como arquiteto de estratégias para a transmissão da herança

familiar. Essa ingerência seria mais forte, evidentemente, na vida dos

que lhe eram mais próximos.

Assim, por exemplo, ao contrário do que ocorreu com as famílias

Salusse e Neves, que procuraram alianças matrimoniais fora de seu

grupo de origem, a família Moraes, por orientação deliberada de seu

chefe, tendeu à mais completa endogamia. Essa tendência manifestou-

se claramente nos arranjos matrimoniais que João Antônio

estabeleceu, a partir da década de 1840, para seus enteados (e sobri -

nhos) e para seus próprios filhos. Para a maioria deles escolheu

primos-irmãos, com o objetivo de fortalecer os laços de parentesco e

de garantir sua supervisão sobre os negócios familiares. Esses celeiros

de primos localizavam-se em Minas e nos arredores da fazenda Santa

Maria do Rio Grande. De Minas vieram os filhos de seus irmãos – ou

seja, de Manoel Antônio de Moraes, casado com Maria Teresa de

Mello, e de Antônia Rita de Moraes, casada com Vicente Ferreira de

Mello, irmão de Maria Teresa –, e das fazendas vizinhas vieram as fi -

lhas dos irmãos de Basília – de Maria Isabel da Silva, casada com

Domingos José das Neves, e de Bernardo Rodrigues Franco. Esse

padrão de casamentos interprimos repetiu-se com freqüência na terceira

geração, ou seja, entre os netos e sobrinhos-netos do Barão. Se

o objetivo de fortalecer e controlar a família foi alcançado, de outro

lado, criou-se desse modo uma intricadíssima rede de parentesco,

onde a repetição exaustiva dos nomes Manoel, Antônio, Antônia e

Felizarda dá por vezes a impressão de um emaranhado impossível de

se deslindar.

A

O primeiro filho de Basília e Antônio Rodrigues de Moraes,

irmão assassinado de João Antônio, Francisco Rodrigues de Moraes,

nascido em 1820, casou-se com sua prima-irmã Maria Felizarda

Ferreira de Moraes, filha de Antônia Rita de Moraes e de Vicente

Ferreira de Mello. Contudo, contrariando as expectativas da família,

o jovem casal fixou-se em São Sebastião de Itaiaiçu, em Minas Gerais,

onde nasceram seus dez filhos: Basília (III), Luiza, Vicência,

133

134

Romualda, Laura, João, Manoel, Antônio, Teófilo e Amélia. Longe

de casa, e em alusão ao lugar de onde provinha, Francisco iria tornarse

conhecido como Chico Cantagalo.

Pode-se supor que Francisco, já com 13 anos de idade por ocasião

da morte do pai, tenha tido dificuldades em aceitar o comando do tio

e padrasto João Antônio sobre sua família. Assim, ao contrário de

seus irmãos, que de modo geral permaneceram em Cantagalo, área de

ampliação da fronteira agrícola e de inúmeras possibilidades de negócios,

preferiu fazer o caminho de volta à região onde se tinha fixado,

ao chegar ao Brasil, seu bisavô Manoel de Moraes Coutinho. Sem

querer permanecer sob a tutela direta de João Antônio, decidiu tocar

seus negócios por conta própria. A opção de se dedicar à pecuária, e

não à cafeicultura, como fizeram os irmãos que permaneceram na

província fluminense, custou-lhe porém muito caro. Seu inventário,

datado de 15 de novembro de 1871, mostra a difícil situação em que se

encontrava ao morrer, aos 51 anos, em contraste com os irmãos e

cunhados. A descrição dos equipamentos de sua casa demonstra quão

humilde era seu trem de vida. Possuía uma bacia de cobre; cinco pa -

nelas de ferro; um gancho de ferro; 12 cadeiras quebradas; uma mesa

grande sem gaveta; uma mesa pequena com gaveta; um banco liso

ordinário; um armário com portas; duas caixas grandes; um par de

castiçais; um tear com seus pertences; um escaroçador velho; três barris

de carregar água; um carro com a mesa sem assoalho; um carro

ferrado já velho; um selim usado.

A atividade econômica de Chico Cantagalo em Minas se resumia à

criação de gado numa pequena propriedade de terra de aproximadamente

oito alqueires. Ao falecer possuía, além da terra, cerca de 250

cabeças de gado e 20 escravos, mas todo o seu patrimônio estava

hipotecado. O insucesso nos negócios acabou por levá-lo a tomar

sucessivos empréstimos de seu tio e padrasto João Antônio, de seu

irmão José Antônio e da firma pertencente aos dois, a Moraes &

Sobrinho. Ao que parece, seus parentes foram rigorosos na cobrança

dos empréstimos, e sua propriedade foi penhorada, juntamente com

seu rebanho e seus escravos.

O endividamento de Chico Cantagalo se fez ao longo de vários

anos, e como o devedor não conseguia pagar os juros, a dívida foi

aumentando. Em 1858, João Antônio lhe emprestou 18:193$000 (18

contos e 193 mil réis) a juros de 10% ao ano. De acordo com os dados

contidos em seu inventário, Chico nunca saldou a dívida, que em 1871

atingia 63:514$179 (63 contos, 514 mil e 179 réis), dos quais

45:321$179 (45 contos, 321 mil e 179 réis) correspondiam a juros.

Ainda segundo seu inventário, Chico Cantagalo teria tomado

emprestado de seu irmão José Antônio a quantia de 28:550$000 (28

contos e 550 mil réis), tendo ficado estabelecido que não haveria juros

nos primeiros seis anos. Depois disso, porém, seria cobrada a taxa de

1% ao mês. A garantia do empréstimo eram 18 escravos e 250 cabeças

de gado. Também essa dívida deixou de ser paga. Isso explica por que

sua mulher Maria Felizarda e seus filhos, por ocasião de sua morte, fi -

zeram uma petição oficial desistindo da herança em favor dos credores.

O casamento da filha mais velha de Chico Cantagalo, Basília (III),

com o tio Joaquim Antônio de Moraes, filho de João Antônio e

Basília, portanto meio-irmão de Chico, foi uma forma de João

Antônio garantir o controle e a supervisão sobre os netos e evitar que

os descendentes de seu enteado enfrentassem a total pobreza. Quando

Basília (III) e Joaquim Antônio se casaram, João Antônio e Basília,

avós dela e pais dele, já estavam preparados para fazer a partilha de seus

bens, pela qual Joaquim Antônio receberia a quantia de

524:000$000 (524 contos de réis). Os filhos de Chico Cantagalo

também seriam contemplados na partilha, ao receber, doada por

Basília, a parte que caberia a seu pai; anos mais tarde, receberiam

ainda o correspondente à terça da Baronesa.

A segunda filha de Chico Cantagalo, Luiza, casou-se com seu

primo-irmão João Pereira de Moraes, apelidado de Juanico, filho de

Basília (II), irmã de Chico, e de Antônio Pereira de Mello. O oitavo

filho, Antônio, também casou-se com uma prima-irmã, Maria

Amália, ou Maricas, irmã de Juanico.

A

José Antônio de Moraes, segundo filho de Basília e Antônio

Rodrigues de Moraes, nascido em 25 de janeiro de 1821, receberia o

título de Barão de Imbé em 1884, e o de Visconde em 1889. No final

da década de 1840 casou-se com sua prima-irmã Leopoldina das

Neves, filha de sua tia materna Maria Isabel da Silva e de Domingos

José das Neves. O casal teve cinco filhos: João Urbano, Josepha,

Regina, Trajano e Elias Antônio. Os três primeiros morreram de

tuberculose, e apenas Trajano e Elias Antônio sobreviveram.

Ao contrário de seu irmão Chico Cantagalo, José Antônio

começou a vida trabalhando com o tio e padrasto João Antônio, com

quem aprendeu os segredos do plantio e do beneficiamento do café.

135

Fazenda Santo Inácio, no atual município Trajano de Morais.

Em 1845, ainda solteiro, comprou em sociedade com o tio a fazenda

das Neves, em São Francisco de Paula. A oportunidade da compra

surgiu através de outro tio, Joaquim Rodrigues Franco, irmão de

Basília. Joaquim era credor de uma dívida de pouco mais de

7:000$000 (7 contos de réis) contraída por sua irmã Maria Isabel da

Silva e seu cunhado Domingos José das Neves. Com o falecimento

deste em 1837, e a abertura do inventário, a viúva e os herdeiros –

uma das herdeiras era Leopoldina, futura mulher de José Antônio –

foram condenados a pagar o que deviam. A solução encontrada foi

vender uma parte de sua fazenda. João Antônio e José Antônio entregaram

então o dinheiro diretamente a Joaquim Rodrigues Franco,

conforme consta na escritura de venda das terras.2 Em 1849, três anos

após a morte de Maria Isabel, seu filho João Batista da Silva Neves,

juntamente com a mulher Ana Bernardina de Mello, venderam a João

Antônio e José Antônio as terras que ainda lhes pertenciam, nas quais

havia seis mil pés de café, pela quantia de 1:165$978 (1 conto, 165 mil

e 978 réis).3 A fazenda das Neves seria a sede da firma fundada naquele

ano por João Antônio e José Antônio, a Moraes & Sobrinho, em

cuja escritura de constituição se lê que José Antônio contou, para iniciar

seu negócio, com a “legítima paterna”, com “suas economias” e

com “suas porções vencidas por serviços que prestara durante oito

anos” a João Antônio. Ficou estipulado ainda que caberia a José

Antônio administrar a fazenda, e à sua mulher, Leopoldina, “prestar

os serviços adaptados ao seu sexo”, sem que para isso recebessem

salário algum. A João Antônio, por sua vez, caberia adiantar o capital

para a compra do material necessário ao início dos trabalhos agrícolas.

Para comercializar sua produção cafeeira, José Antônio recorreu,

assim como João Antônio, à firma do comissário de café Feliciano

José Henriques, no Rio de Janeiro. Seja como cafeicultor, seja como

homem de negócios, desde o início demonstrou grande capacidade

de empreendimento, tornando-se um importante auxiliar no

137

2 A escritura de venda da fazenda das Neves, datada de 9 de junho de 1845, detalha a negociação. D. Maria

Isabel da Silva Neves e seus filhos (João Batista da Silva Neves e sua mulher Ana Bernardina de Mello; Bernardo

José da Silva Neves; Joaquim José da Silva Neves; Maria Isabel da Silva Neves e os menores José, Leopoldina,

Joaquina e Cândida) venderam “750 braças de terras de testada e 1.500 braças de fundos no Ribeirão das

Neves”. O total pago por João Antônio e José Antônio foi de 7:500$000 (7 contos e 500 mil réis), dos quais

7:439$347 (7 contos, 439 mil e 347 réis) foram entregues a Joaquim Rodrigues Franco como pagamento da

dívida dos vendedores. Acervo da fazenda Santo Inácio.

3 A escritura de venda dessa porção de terras e casas de residência data de 24 de maio de 1849. Acervo da fazenda

Santo Inácio.

138

processo de acumulação de capital da firma Moraes & Sobrinho.

Ainda que orientado pelo tio, teve também iniciativas próprias que se

mostraram bem-sucedidas. Um exemplo foi a compra, em 1872, da

fazenda Santo Inácio, propriedade vizinha da fazenda das Neves, com

463 braças (1 braça = 2,2 metros) de terras, 4.914 pés de café velhos,

16 mil pés de oito anos, 60 mil pés mais novos e benfeitorias, no valor

total de 17:490$000 (17 contos e 490 mil réis). A Santo Inácio,

ainda hoje nas mãos de seus descendentes, guarda um acervo onde

podem ser encontrados os documentos referentes à fundação da

Moraes & Sobrinho e vários contratos de empréstimo feitos pela firma.

José Antônio comprou ainda muitas outras propriedades em São

Francisco de Paula nos anos 1880, ampliando de forma significativa

seu patrimônio. Mas a parte mais importante de suas aplicações foram

os empréstimos de dinheiro a juros. Uma operação que ilustra esse

tipo de atividade é a que o levou à posse da fazenda Aurora, também

em São Francisco de Paula, em 1888. Pressionado pelas dificuldades

que atingiam a lavoura cafeeira fluminense no final dos anos 1880,

em 1887 José Joaquim Coelho de Magalhães, proprietário da Aurora,

pediu a José Antônio um empréstimo de 78:285$545 (78 contos,

285 mil e 545 réis). Em abril do ano seguinte, diante da impossibi -

lidade de saldar seu débito, foi obrigado a entregar as seguintes

propriedades, como ficou registrado na escritura de quitação da dívida:

“a fazenda Aurora com 190 alqueires de medida antiga (ou 5.172

750 m2) de terras em matas, capoeiras, pastos, cafezais; com casa de

vivenda, casa de máquinas para beneficiar café e os maquinismos existentes;

casas servindo de armazéns para guardar café, paiol, senzalas,

casa de tropa, tenda de ferreiro, casa de hospital, com todo o cafezal

calculado em 200 mil pés de diferentes idades, com dois terreiros de

pedra; e mais os sítios denominados respectivamente de Barcelos,

Belmira e Marcelino; uma casa em Madalena; o sítio Córrego Frio

com 60 alqueires e benfeitorias; uma porção de terras, calculada em

200 alqueires em matas e capoeiras fazendo parte da fazenda

Soledade, ficando todos esses imóveis avaliados por 50:000$000 (50

contos de réis)”.4 O devedor entregou ainda a José Antônio 34

escravos no valor de 13:600$000 (13 contos e 600 mil réis) e uma

variedade de bens, como o mobiliário da fazenda, gado, pasto etc., no

4 Escritura assinada na fazenda das Neves em 4 de abril de 1888. Acervo da fazenda Santo Inácio.

valor total de 9:000$000 (9 contos de réis). Esse episódio mostra

como a crise da cafeicultura afetou de maneira diferenciada os fazendeiros,

dependendo não só da região, mas também das condições

específicas de cada um. José Antônio e Magalhães, proprietários na

mesma freguesia, viviam, às vésperas da Abolição, situações bem

diferentes. Enquanto o primeiro ampliava seus capitais e passava ao

largo das dificuldades trazidas pelo fim da escravidão, o segundo

enfrentava a falência absoluta.

Nos últimos anos de sua vida, influenciado pelo filho Trajano,

José Antônio passou a fazer também investimentos em ações. Em

1889, ao lado do cunhado, Manoel de Moraes, casado com sua irmã

Antônia Rosa, participou de um arrojado empreendimento planejado

por Trajano: a abertura de uma ferrovia ligando Macaé a

Conceição de Macabu, Triunfo, Ventania, Vila Aurora e, por fim,

à localidade de Manoel de Moraes. Com esse objetivo foi organizada

a Companhia Estrada de Ferro Barão de Araruama, com sede em

Santa Maria Madalena. O Visconde de Imbé não chegou porém a ver

os resultados do empreendimento, pois faleceu no ano seguinte. Na

época, ainda morava na fazenda das Neves. Conforme consta de seu

inventário, na propriedade de 525 alqueires de terras havia aproximadamente

500 mil pés de café, um pomar, terreiros para a secagem

do café, paióis, armazéns, um engenho de cana-de-açúcar, moinhos

e casas para colonos, ou seja, todo o aparato necessário ao funcionamento

de uma fazenda de café. A casa de vivenda tinha oito quartos,

uma sala de jantar, um “salão verde”, um escritório e uma sala de vi -

sitas com um piano. O inventário é um documento importante para

se entender a trajetória econômica de José Antônio. De um montemor

de 2.661:300$000 (2.661 contos e 300 mil réis),

200:077$600 (200 contos, 77 mil e 600 réis) eram investimentos

rurais (em terras e semoventes), 246:351$927 (246 contos, 351 mil e

927 réis) eram saldos de contas comerciais relacionadas às atividades

agrícolas e a pequenos empréstimos feitos a proprietários rurais, e

2.194:871$000 (2.194 contos e 871 mil réis) eram aplicações em

ações de bancos, da dívida pública e da Leopoldina Railway. Isso significa

que 82,4% do patrimônio estavam aplicados no mercado

financeiro, e não em bens rurais.

É certo que a diversificação dos investimentos e as aplicações

financeiras representaram, na década de 1880, uma saída para alguns

proprietários rurais preocupados com a crise do trabalho escravo.

139

Fazenda da Barra, no município de Trajano de Morais (Óleo de autor desconhecido).

Mas mesmo essas aplicações não estariam garantidas por muito

tempo, diante da instabilidade financeira que marcou a vida brasileira

na última década do século XIX. Depois do período conhecido como

Encilhamento, que se caracterizou pelo crédito fácil, por uma política

emissionista e pela desvalorização cambial, a política de saneamento

posta em prática a partir de 1896 pelo presidente Campos Sales

provocou a retração dos negócios e a falência de muitas empresas.

O documento que descreve os bens de Leopoldina, falecida em

1901, é indicativo da situação dos negócios da família no início do

século XX. De acordo com o que nele se lê, o patrimônio a ser partilhado

entre seus dois filhos, Trajano e Elias Antônio, era o seguinte:

“67 apólices da dívida pública no valor nominal de 1:000$000 (1

conto de réis) cada uma, inalienáveis; 16 apólices de bonificação da

dívida pública, também de valor nominal de 1:000$000; uma casa

situada na rua Laranjeiras, n.º 68, no valor de 50:000$000 (50

contos de réis).”5 O espólio não ia além, portanto, de 133:000$000

(133 contos de réis). Se comparado ao legado deixado por José

Antônio 11 anos antes, do qual Leopoldina herdara a metade, mostra

que as perdas sofridas ao longo da década foram bastante significativas.

Pode-se supor também que ao menos uma parte do patrimônio

de Leopoldina tenha sido partilhada em vida entre seus filhos, mas

não há documentação disponível que comprove tal operação.

Quanto a Trajano, nascido em 1858, pretendia estudar enge -

nharia e por isso, em meados da década de 1870, deixou a fazenda das

Neves e veio para o Rio de Janeiro. Entretanto, o temor de que mais

um filho fosse vítima da tuberculose fez com que seus pais o enviassem

para a Suíça, a fim de evitar uma possível contaminação. Desse modo

Trajano acabou não ingressando na Escola Politécnica e, de volta ao

Brasil, foi residir na fazenda Santo Inácio. Por volta de 1884, casouse

fora da família, com Darcília Marques da Cruz, filha do médico

Joaquim Marques da Cruz, de Cantagalo. Por conta de suas atividades

empresariais, mudou-se para o Rio e aí residiu até o fim da vida com

a mulher e dois filhos, José Antônio (II), que se tornaria conhecido

como José de Moraes, e Darcilinha.6

141

5 Documento encaminhado ao juiz de São Francisco de Paula por Trajano e Elias de Moraes, para fazer a partilha

do espólio de Leopoldina das Neves, Viscondessa de Imbé, em 1902. Acervo da fazenda das Neves.

6 Para a trajetória de Trajano de Moraes, ver o capítulo seguinte.

142

Já Elias Antônio, o filho mais moço dos Viscondes de Imbé,

nunca se casou e teve uma trajetória de vida bastante complicada. A

documentação conservada na fazenda Santo Inácio indica que, após a

morte do pai, mostrou-se capaz de gerenciar seu patrimônio e não

parecia dar sinais de desequilíbrio mental. Na década de 1890, foi

nomeado suplente do juiz municipal de órfãos do termo de Santa

Maria Madalena e efetuou inúmeras transações de compra e venda de

imóveis. No entanto, segundo a memória familiar, após a morte da

mãe adotou comportamentos inaceitáveis. Além de querer legitimar

filhos naturais, passou a gerenciar de maneira inadequada seu

patrimônio, cedendo gratuitamente parte de suas terras a terceiros

para a exploração agrícola. O contrato que fez com Olavo Moreira da

Silva atesta a cessão por dez anos de terras da fazenda das Neves, pró -

ximas da vila de São Francisco de Paula, com todas as benfeitorias,

para o plantio de café. Como essas atitudes foram consideradas condenáveis,

toda a família, inclusive ramos distantes, foi favorável à

interdição de Elias, que não suportou a pressão e acabou sendo internado

num manicômio.

A

A terceira filha de Basília e Antônio Rodrigues de Moraes, Antônia

Rosa da Silva Moraes, ou Antoninha, nasceu em 1826 e, assim como

seus irmãos mais velhos, casou-se com um primo-irmão, filho de seu

tio Manoel Antônio de Moraes e de Maria Tereza de Mello, que tinha

o mesmo nome do pai mas era conhecido apenas como Manoel de

Moraes. Dessa união nasceram dois filhos que mais uma vez receberam

os nomes dos pais: Manoel Antônio de Moraes Jr. (1854), que ficou

conhecido como Neco, e Antônia (1856), conhecida como Antonica.

Realizado o matrimônio, João Antônio de Moraes providenciou a

abertura de uma nova fazenda para sua enteada e seu sobrinho: a fazenda

da Barra, às margens do rio Grande, onde o casal passou a residir.

O casal também criou uma firma com João Antônio e Basília, como

haviam feito José Antônio e Leopoldina. A partir desse e de outros

investimentos, ampliou substancialmente seu patrimônio e constituiu

expressiva fortuna.

Embora não tenha sido possível localizar o testamento ou inventário

de Antoninha, falecida em 1888, nem de Manoel de Moraes, falecido

em 1895, é lícito afirmar que Manoel foi um poderoso produtor de

café. É claro que se beneficiou da quantia que sua mulher recebeu em

1872, quando da partilha em vida dos bens dos Barões das Duas Barras,

e ainda da herança que coube a Antoninha quando a Baronesa faleceu,

em 1884. Mas, além disso, seu próprio esforço pessoal ao tocar a

sociedade com o Barão o conduziu a uma considerável escalada.

Tampouco se conseguiu localizar documentos referentes a essa

sociedade, mas pode-se imaginar que funcionasse de maneira seme -

lhante à Moraes & Sobrinho, e com igual sucesso. Sabe-se que, assim

como o sogro e o cunhado José Antônio, Manoel de Moraes utilizou os

serviços da firma de Feliciano José Henriques para comercializar seu

café e ainda participou de outros empreendimentos familiares: em

1886, junto com a cunhada Felizarda, o filho desta, e os cunhados Elias

Antônio de Moraes e Vicente Ferreira de Moraes, associou-se ao comissário

Henriques e a Joaquim Henriques Costa Reis para a abertura da

casa de comércio de café Henriques Costa Reis & Cia; em 1889, ao lado

do cunhado Visconde de Imbé e do sobrinho Trajano de Moraes, participou

da organização da Companhia Estrada de Ferro Barão de

Araruama, com o objetivo de construir uma ferrovia ligando Macaé a

várias vilas de sua região, sendo a última parada uma localidade próxima

de sua fazenda, que foi chamada de Manoel de Moraes.

Um documento que permite de algum modo medir sua capacidade

econômica é a escritura de ação executiva de cobrança por ele

movida em 1891, junto com o filho Neco e o genro João Henriques

da Veiga, contra os herdeiros de Maria José Barbosa. Percebe-se por

aí que Manoel de Moraes não era apenas fazendeiro, mas também

comerciante registrado na junta comercial e “capitalista”, o que

significa que emprestava dinheiro. No caso em questão, Manoel

emprestou 62:458$000 (62 contos e 458 mil réis) a Maria José

Barbosa, tomando como garantia a fazenda São Manoel, com 300

alqueires e 500 mil pés de café. A dívida deveria ser saldada em seis

parcelas com o pagamento de 8% de juros ao ano, 8% em caso de

mora, e ainda mais 10% em caso de cobrança judicial. A impossibilidade

dos devedores de saldar a dívida levou em 1887 à sua renegociação,

que implicou o aumento do valor da hipoteca da fazenda para

80:000$000 (80 contos de réis). Finalmente, em 1892, a hipoteca

foi executada, e Manoel de Moraes e seus filhos tomaram posse do

imóvel por meio de um acordo com os devedores.

143

144

Se considerarmos que esse episódio ocorreu no período imediatamente

posterior à Abolição, poderemos ver aí, mais uma vez, a prova

de que esta afetou de maneira diferenciada os cafeicultores. Enquanto

D. Maria José Barbosa se endividava e perdia sua propriedade, Manoel

de Moraes passava ao largo da crise e ampliava ainda mais seu

patrimônio. Temos aí também um sinal claro de que Manoel de

Moraes tinha atuação semelhante à de João Antônio e José Antônio,

isto é, era um fazendeiro-capitalista que não limitava sua esfera de ação

apenas à lavoura. Por outro lado, seus devedores são exemplos de

fazendeiros que, não dispondo de capital suficiente, e por isso tendo

mantido seus investimentos apenas em terras e escravos, acabaram

saindo prejudicados na conjuntura de crise do sistema escravista que

acentuou as diferenças no interior da própria elite agrária.

Manoel de Moraes e Antoninha, já enriquecidos, mudaram seus

hábitos de consumo e adquiriram objetos sofisticados. Como outros

fazendeiros de café da região, compraram uma casa em Nova Friburgo

e decidiram educar os filhos na Corte. Assim, Neco e Antonica

casaram-se no Rio de Janeiro, com pessoas de fora do circuito fami -

liar. Neco casou-se com Maria Justina Cornélio, filha de importante

família de comissários de café, com quem teve dois filhos, Gastão

(1878) e Hermínia de Moraes (1883). Os dois irmãos foram educados

em Nova Friburgo – na década de 1890 Gastão esteve matriculado no

Colégio Anchieta, e Hermínia no Colégio Braune –, mas depois se

fixaram no Rio de Janeiro. Já Antonica foi enviada para a casa

Feliciano José Henriques, onde ficou sob os cuidados da mulher deste,

Francisca Paula de Azevedo Macedo, para ser treinada nos hábitos da

Corte. Ali conheceu João Henriques da Veiga, sobrinho de Feliciano

Henriques e estudante de medicina, com quem veio a se casar. O casal,

de início, foi morar na fazenda da Barra, mas no final da década de

1880 mudou-se para Nova Friburgo para garantir a educação dos fi -

lhos nos colégios da cidade. Eram dez: Raul,7 Noêmia, Otávio,

Regina, Evangelina, Tancredo, Antonieta, Roberto, Judith – a autora

da biografia do Barão já mencionada – e Maria de Moraes Veiga.

Em 1896, apenas um ano após a morte de Manoel de Moraes, um

acontecimento trágico abalou família: Antonica faleceu ao dar à luz

mais um filho, que também não sobreviveu. A administração dos bens

7 Para a trajetória de Raul de Moraes Veiga, ver o capítulo seguinte.

Fazenda do Ipiranga, no município de Trajano de Morais.

146

da família ficou nas mãos de Neco, que estava longe de possuir a competência

do pai na administração dos negócios. A firma Moraes,

Tinoco & Cia., dedicada ao comércio de café, que fundou em 1891,

tinha em 1894 um capital de 400:000$000 (400 contos de réis),

mas nos anos seguintes só fez declinar, acabando por entrar em falência

já em 1896.8 Como já foi dito, a década de 1890 foi um período

de grande instabilidade financeira. Nos anos 1896-1897 houve uma

séria queda nos preços do café, o que por sua vez provocou um déficit

no balanço de pagamentos e uma crise cambial no país. A política que

Campos Sales adotou para enfrentar esses problemas provocou um

forte arrocho financeiro que acarretou a falência de numerosas

empresas. Neco não conseguiu superar os desafios apresentados por

uma conjuntura econômica de crise, e o resultado pouco feliz de suas

ações pode ser percebido em seu inventário, datado de 1910.9 De um

patrimônio de mais de 556:758$272 (556 contos, 758 mil e 272

réis), por ocasião da morte de sua mulher, em 1892, restavam

46:195$000 (46 contos e 195 mil réis). Seus imóveis urbanos e suas

aplicações financeiras não mais existiam, e restavam apenas duas

fazendas, a São Manoel e a Humaitá. Pela lista dos bens existentes nas

fazendas, vê-se que o café já havia desaparecido e que a criação de

gado era pouco expressiva para a extensão das terras: apenas 110

cabeças para cerca de 628 alqueires. Esses números mostram a baixíssima

capacidade produtiva das propriedades.

A

A quarta dos filhos de Basília e Antônio Rodrigues de Moraes,

Basília (II) de Moraes, nascida em 1830, casou-se por volta de 1850

com um primo de seus primos: Antônio Pereira de Mello, filho de

Genoveva Maria do Sacramento e de José Antônio de Mello, que era

irmão de seus tios afins Maria Tereza de Mello e Vicente Ferreira de

Mello. O casal teve seis filhos: João (apelidado de Juanico), Maria

Amália (apelidada de Maricas), Honestalda, Elias, Eugênio e Elisa.

João Antônio, assim como tinha feito com sua enteada

Antoninha, reservou uma parte de suas terras, denominada Canteiro,

para que Basília (II) e Antônio Pereira de Mello iniciassem a vida após

o casamento. As informações sobre o casal são bastante escassas. Sua

descendente Marieta Leal da Costa relata que Antônio contraiu uma

8 Arquivo Nacional, Documentos da Junta Comercial do Rio de Janeiro, latas 329, 286 e 04.

9 O inventário está conservado no cartório de Santa Maria Madalena.

doença grave e ficou afastado da administração dos negócios da

família durante vários anos, até falecer em 1879. Foi provavelmente

depois de 1872, quando os Barões das Duas Barras fizeram a partilha

de seus bens, que o casal adquiriu a fazenda Ipiranga.

Graças a um documento encontrado no arquivo da fazenda

Olaria,10 ficamos sabendo que, quando Antônio Pereira de Mello

morreu, seus filhos mais moços, Eugênio e Elisa, ainda eram menores

de idade. De um patrimônio de 418:082$360 (418 contos, 82 mil e

360 réis), metade ficou para Basília (II) e a outra metade foi dividida

entre os seis filhos, cabendo a cada um 33:901$238 (33 contos, 901

mil e 238 réis). Para cuidar dos bens dos dois menores, foi nomeado

tutor seu tio-avô Vicente Ferreira de Mello. Preocupado com a

desvalorização da fazenda Ipiranga, em conseqüência do esgotamento

das terras e do envelhecimento dos cafezais e dos escravos, Vicente

propôs vendê-la e aplicar o que fosse apurado em títulos da dívida

pública. O imóvel acabou, porém, ficando na família, adquirido por

João de Moraes Martins, marido de Honestalda, a terceira filha de

Basília (II) e Antônio Pereira de Mello.

Ao que se sabe, em virtude da doença do pai, o filho mais velho,

Juanico, assumiu ainda jovem a direção da família. Casou-se em

primeiras núpcias com sua prima-irmã Luiza, filha de Chico

Cantagalo e Maria Felizarda Ferreira de Moraes, e com ela teve quatro

filhos: Alcides, João, Felizarda e Etelvina. Luiza morreu muito jovem,

em 1878, deixando os filhos pequenos. Felizarda morreu criança e os

demais foram criados pela segunda mulher de Juanico, Mariquinhas,

nascida Maria Veiga. Mariquinhas já tinha relações com a família, pois

era irmã de João Henriques da Veiga, marido de Antonica, primairmã

de Juanico. Os Veigas não possuíam muitos recursos, e por isso o

casamento de Mariquinhas com o viúvo Juanico pareceu uma boa

alternativa. Autoritário e prepotente, Juanico teve 11 filhos com

Mariquinhas – Euclides, Zina, Marieta, Renato, Juquinha, Maria da

Glória, Raul, Antônia, Noêmia, Maria de Lourdes e Mário – e mais

uma filha, de nome Antonieta, com a cunhada Mariana, irmã de

Mariquinhas. O suicídio de Mariana levou Mariquinhas a cuidar também

de Antonieta.

147

10 Carta de arrematação passada em favor de João de Moraes Martins em 1886, extraída dos autos de licença

para a venda de bens pertencentes aos órfãos Eugênio e Elisa, filhos de Antônio Pereira de Mello. Acervo da

fazenda Olaria.

Fazenda Olaria, no município de Trajano de Morais.

Embora possuísse princípios morais discutíveis, Juanico conseguiu

preservar o patrimônio herdado dos pais e foi cuidadoso na

educação dos filhos. Assim, o primogênito, Alcides, foi mandado

junto com alguns primos aos Estados Unidos para estudar; o segundo

filho, João, foi educado no Colégio Anchieta, em Nova Friburgo,

mas faleceu jovem; a quarta filha, Etelvina, também estudou em Nova

Friburgo, como aluna interna do Colégio Braune, de 1883 a 1886, e

casou-se com o primo Feliciano Ferreira de Moraes, companheiro de

viagem de seu irmão Alcides nos Estados Unidos. Os 11 filhos do

segundo casamento de Juanico também foram estimulados a estudar e

mudaram-se quase todos para o Rio de Janeiro. A maioria casou-se

com pessoas de fora da família, mas Euclides e Mário, o caçula,

casaram-se com primas: Euclides, com Luiza Torres, filha de sua tia

Elisa e de Luiz Vieira Torres, e Mário com Eunice, neta de Maricas.

O grande número de filhos e a partilha da terra entre tantos

herdeiros acabaram estimulando quase todos a abandonar as atividades

rurais e a radicar-se no Rio, onde atuaram como profissionais

liberais. Apenas Raul e Mário permaneceram fazendeiros.

A segunda filha de Basília (II) e de Antônio Pereira de Mello,

Maricas, nascida em 1864, casou-se em primeiras núpcias, aos 14

anos, com o primo Antônio Ferreira de Moraes, filho de Chico

Cantagalo e Maria Felizarda. Recém-casados, Maricas e Antônio

foram morar na fazenda dos Passos, propriedade contígua à fazenda

da Olaria, onde residia a tia Felizarda, irmã de Basília (II). Felizarda

funcionou como uma espécie de tutora dos sobrinhos, pois Maricas

era muito jovem e Antônio, que era doente, ao que parece não tinha

boas relações com o cunhado Juanico. Maricas e Antônio tiveram

vários filhos, mas apenas Ercília, nascida em 1884, vingou. Quando

Ercília tinha cinco anos e Maricas 25, Antônio faleceu. Ercília foi

matriculada aos dez anos de idade no Colégio Braune, em Nova

Friburgo, e ali se formou. Maricas voltou a se casar, com o viúvo

Francisco de Paula Correia da Rocha, e continuou residindo na

pequena propriedade dos Passos. Como não tinham maior interesse

na atividade agrícola, acabaram por deixar a fazenda para ir morar em

Nova Friburgo, onde abriram uma pensão. Desse casamento nasce -

ram mais três filhos: Emerita, Marieta e Armando. Assim como

Ercília, Emerita e Marieta foram educadas em Nova Friburgo e lá

conheceram seus futuros maridos, que não pertenciam à família.

Ercília casou-se com um médico do Rio, Oswaldo Linch, Emerita

149

150

com Mário Leitão da Cunha, filho de importante família de proprietários

rurais de Madalena, e Marieta com Jaime Leal Costa, que

estudou no Colégio Anchieta.

A terceira filha de Basília (II) e de Antônio Pereira de Mello,

Honestalda, nascida em 1867, faleceu em 1956, com quase 90 anos de

idade. De todos os irmãos, foi a que teve vida mais longa e a que maior

destaque conquistou na memória familiar. Em 1879, aos 14 anos de

idade, foi matriculada como aluna interna no Colégio Braune, em

Nova Friburgo, onde permaneceu por dois anos, e já nesse período

estabeleceu uma ampla rede de relações com suas colegas. A cor -

respondência preservada na fazenda Olaria mostra que desde cedo

Honestalda funcionou como um ponto de referência para suas amigas,

primos e outros parentes. Na década de 1880, Honestalda casouse

com seu primo-irmão João de Moraes Martins, filho de sua tia

materna Felizarda de Moraes e de Francisco Lopes Martins. Como

não tiveram filhos, Honestalda e João criaram vários sobrinhos e primos,

ajudaram outros parentes e ainda cuidaram da educação de

muitos meninos e meninas pobres, filhos dos empregados da fazenda.

O quarto filho de Basília (II) e de Antônio Pereira de Mello,

Elias, faleceu cedo. O quinto, Eugênio, ao contrário de seus irmãos,

não se casou na família. Viveu muitos anos na Europa e teve um filho,

Eugeninho, com uma francesa artista de cabaré. Segundo seu sobri -

nho-neto Francisco Freire de Moraes, era o mais empreendedor da

família. Ainda que tivesse passado muitos anos fora, nunca descuidou

de seus negócios. Na década de 1890, ao perceber a crise que afetava

a cafeicultura, passou a atuar na comercialização do café, abrindo

uma firma comissária. O acervo da fazenda Olaria conserva cartas de

Eugênio a seu cunhado João de Moraes Martins. Em uma delas, datada

de agosto de 1889, Eugênio relata as impressões da viagem com

destino a Paris para visitar a Grande Exposição Internacional que lá se

realizava. Sua mãe, Basília (II), morou com ele na fazenda Coqueiro.

Suas constantes viagens à Europa transformaram a sede da fazenda

numa residência requintada que guardava um considerável acervo de

objetos de arte. Durante uma parte do ano, porém, Eugênio residia

no Hotel Avenida, no Rio de Janeiro. Eugeninho foi educado por sua

tia Honestalda e mais tarde iria se casar com uma prima, Neli de

Moraes, filha de Raul de Moraes e neta de Juanico.

Finalmente, a filha mais nova de Basília (II) e de Antônio Pereira

de Mello, Elisa, estudou no Colégio Braune, onde foi matriculada em

1884. Casou-se com Luiz Vieira Torres, irmão de Paula Torres, que já

era casada com um primo-irmão seu, Alfredo Lopes Martins, filho de

sua tia Felizarda. Sem maior interesse pela vida rural, Elisa e Luiz logo

deixaram a região das fazendas. Tiveram três filhos, Luiza, Luiz e

Adelaide. Os dois últimos não se casaram, mas Luiza casou-se com o

primo-irmão Euclides, filho de Juanico, e teve três filhos, Elisa, Luiza

e Luizito.

A

Antônio Rodrigues de Moraes (II), apelidado de Antonicão, era o

filho mais novo do casamento de Basília e Antônio Rodrigues de

Moraes. Nasceu em 1831 e casou-se pela primeira vez com sua primairmã

Carlota Rodrigues, nascida em 1829, filha do alferes Bernardo

Rodrigues Franco, irmão de Basília. Desse casamento nasceram cinco

filhos: Antônio (1854), Maria (1855), Bernardo (1856), Manuel

(1859) e João (1860). Carlota faleceu em 1862, e seu inventário

mostra de quão poucos recursos o casal então dispunha. A soma de

todos os bens arrolados chegava a 19:924$700 (19 contos, 924 mil e

700 réis), dos quais 16:056$319 (16 contos, 56 mil e 319 réis)

estavam comprometidos em dívidas contraídas por Antonicão para

comprar escravos e tropas e tocar suas lavouras de café, localizadas na

freguesia de São Francisco de Paula. O principal credor dessa dívida

era seu tio e padrasto João Antônio de Moraes.

Antonicão casou-se pela segunda vez com outra prima: Feliciana

Bernardina de Mello, neta materna de João José Rodrigues Franco,

também irmão de Basília. Desse casamento nasceram mais três filhas:

Otacília (1866), Emília (1867) e Zulmira (1869). Antonicão residia na

fazenda da Piedade e possuía também uma casa na vila de São Francisco

de Paula, onde viveu até morrer, em 1914, aos 83 anos. Sua figura permaneceu

muito abafada na memória familiar, que destaca apenas

alguns traços de seu comportamento, como a pouca habilidade nas

atividades econômicas. Em seu testamento, feito em 1873, o Barão das

Duas Barras declarou, a respeito do enteado e sobrinho Antônio

Rodrigues de Moraes, que, “por ter cometido prodigalidades e botado

o que tinha fora, de combinação com o mesmo requereu curador, a

ele, que atualmente tinha sido seu curador, mas se ele se portar bem

como vai atualmente, pedia a seu testamenteiro levantar a curadoria, e

caso continue nas prodigalidades pedia para conservar”.11 A interdição

151

11 Biographia do Barão das Duas Barras por um seu amigo Dr. M. C. e testamento..., op. cit., p. 22.

152

de Antonicão, ainda que temporária, ilustra bem o nível de controle

que João Antônio exercia sobre a família e seu interesse em garantir a

preservação da fortuna que vinha acumulando.

A

Felizarda de Moraes, primeira filha de João Antônio e sexta de

Basília, nasceu em 1834. Em 1852, quando completou 18 anos, seu

pai tratou de lhe arranjar um bom partido. Diferentemente de seus

meio-irmãos, que se haviam casado com primos e primas, Felizarda

foi a primeira a casar-se com alguém que não pertencia à família. O

escolhido, Francisco Lopes Martins, era filho de João Lopes Martins,

antigo sesmeiro da região,12 e de Ana Clara Lopes Martins.

Francisco Lopes Martins, nascido em 28 de setembro de 1822, era

ao que tudo indica integrante de um grupo seleto de proprietários

rurais de Cantagalo. Na ocasião de seu casamento com Felizarda, aos

30 anos de idade, já era viúvo de D. Floriana Leopoldina de

Magalhães Lopes e tinha quatro filhos. De acordo com o costume da

época, Felizarda recebeu um dote: oito escravos no valor de

6:800$000 (6 contos e 800 mil réis); jóias no valor de 440$000

(440 mil réis); gado no valor de 350$000 (350 mil réis) e

12:410$000 (12 contos e 410 mil réis) em dinheiro, perfazendo um

total de 20:000$000 (20 contos de réis). Se a concessão do dote,

“uma antecipação da herança” segundo Sheila de Castro Faria,13 era

uma prática comum, o regime de casamento de Felizarda e Francisco

fugiu, sob um outro aspecto, aos costumes do Império: foi feito um

pacto pré-nupcial que estabelecia a separação dos bens do casal. Uma

complicada sucessão de cláusulas14 demonstrava a preocupação de

João Antônio de preservar o dote e qualquer outro bem recebido pela

filha, ou seja, sua própria herança. Embora o noivo não fosse pobre

– e os inventários de seus pais o comprovam, já que recebeu de he -

rança materna a quantia de 47:518$139 (47 contos, 518 mil e 139

réis), e de herança paterna 51:685$882 (51 contos, 685 mil e 882

12 Foi localizada no Arquivo Nacional uma carta de concessão de sesmaria, ou seja, de “meia légua de terra em

quadra, no Distrito de Cantagalo”, a João Lopes Martins, datada de 5 de julho de 1821. Arquivo Nacional,

fundo Sesmarias do Rio de Janeiro, caixa 139, número 29.

13 Sheila Siqueira de Castro Faria, Fortuna e família em Bananal no século XIX, em Hebe Maria Mattos Castro

e Eduardo Schnoor, Resgate - uma janela para o oitocentos, op. cit., p.83-4.

14 Escritura de dote e contrato antenupcial que faz o Tenente-Coronel João Antônio de Moraes a sua filha

Felizarda da Silva Moraes, datada de 1852, transcrita no processo de inventário de Francisco Lopes Martins,

datado de19 de dezembro de 1891, depositado no Juízo de Órfãos de Nova Friburgo.

réis) –, João Antônio queria evitar que os filhos do primeiro casamento

de seu genro pudessem se tornar seus herdeiros.

O casamento realizou-se na sede da fazenda Santa Maria do Rio

Grande, e teve como testemunhas Manoel de Moraes e José Antônio

de Moraes. Felizarda e Francisco viveram inicialmente na fazenda da

Olaria e tiveram cinco filhos: Theophilo de Moraes Martins, Alfredo

Lopes Martins, João de Moraes Martins, Felizarda (II) e Francisca.

Nos anos seguintes ao casamento, Felizarda e Francisco expandiram

seus negócios, adquirindo novas terras e muitos escravos. No

entanto, depois de 16 anos de casados, em 1868, Francisco teve um

grave pro blema de saúde e perdeu as faculdades mentais. A partir de

então, Felizarda passou a ser curadora do marido e responsável pelos

negócios da família, uma vez que o filho mais velho, Theophilo, tinha

apenas 16 anos. Francisco ainda viveu doente muitos anos, até falecer

em 12 de novembro de 1891. Os investimentos de Felizarda concentraram-

se nos sítios e nas fazendas que possuía, a Olaria e a

Providência, acrescidas, após a morte de Basília, em 1884, da quarta

parte da Santa Maria do Rio Grande. O inventário de Francisco

Lopes Martins, de 1891, fornece uma descrição dos bens contidos

nessas propriedades.15

Na fazenda Olaria, além da terra, havia uma casa de vivenda; uma

casa para paiol e armazém; uma casa e engenho de beneficiar café;

uma casa para engenho de serra e cana com as respectivas máquinas e

tachas; uma coberta para carros, na estrada; uma coberta para troly;

uma coberta para tenda; um terreno de pedra em bom estado; um

terreno de pedra em mau estado; uma casa para moinho (o moinho

velho); uma casa para carneiros; uma olaria; 32 casas para colonos,

todas iguais, cada uma a 250$000 (250 mil réis); um pomar; 3 mil

braças de cercas e valos, a $300 (300 réis) cada braça; um encanamento

para água; uma tenda para ferreiro com seus pertences; 12 mil

pés de café na derrubada no lugar denominado Freitas, de 7 anos, a

$300 o pé; 8 mil pés de café, no lugar denominado Manoel Joaquim,

a $200 (200 réis) o pé; 80 mil pés de café, no lugar denominado

Onça, a $300 o pé; 60 mil pés de café, no lugar denominado D.

Chiquinha, a $400 (400 réis) o pé; 25 mil pés de café, no lugar

153

15 Inventário de Francisco Lopes Martins, depositado no Juízo de Órfãos de Nova Friburgo.

154

denominado Pedra Arrebentada, a $200 o pé; 25 mil pés de café, no

lugar denominado Caitihe, a $200 o pé; 10 mil pés de café, no lugar

denominado José dos Bons Olhos, a $120 (120 réis) o pé; duas casas;

um lavadouro de café. O total desses bens somava 177:012$500 (177

contos, 12 mil e 500 réis).

A fazenda Olaria contava ainda com um mobiliário, avaliado em

1:245$000 (1 conto e 245 mil réis), composto das seguintes peças:

uma mobília austríaca constando de um sofá, quatro cadeiras de

braços, uma mesa de centro, uma cadeira de balanço e 14 cadeiras

singelas; uma mobília para a sala de espera, em mau estado; uma mesa

elástica; duas étagères; um guarda-comidas estragado; um armário

para botica; um escrivaninha; quatro lavatórios com pedra mármore;

dois lavatórios simples; três camas para casal; seis camas para solteiro;

um guarda-roupa; um fogão; a louça toda do serventuário da casa. O

valor total da Olaria, somando-se aos bens listados os animais e

cereais, correspondia a 201:747$500 (201 contos, 747 mil e 500

réis). A fazenda Providência, que contava com mais de 150 mil pés

de café de variadas idades, também foi avaliada em pouco mais de

200:000$000 (200 contos de réis).

As atividades de Felizarda não ficaram restritas à cafeicultura. Nos

anos 1880 ela e os filhos diversificaram seus negócios abrindo na Corte

uma casa de comércio de café. Em 1886, sob o comando de Feliciano

José Henriques e Joaquim Henriques Costa Reis, Felizarda e seu filho

Alfredo associaram-se com outros parentes – seu irmão Elias Antônio

de Moraes e seus cunhados Manoel de Moraes e Vicente Ferreira de

Mello – para a abertura da empresa Henriques Costa Reis & Cia, com

sede na cidade do Rio de Janeiro e agências espalhadas no interior. As

transações comerciais dos Moraes com a firma de Feliciano José

Henriques remontavam à década de 1870, mas somente na segunda

metade da década de 1880 uma sociedade foi constituída, com capital

de 250:000$000 (250 contos de réis). Felizarda, Alfredo e os outros

parentes entraram na sociedade na condição de sócios comandatários,

e até o final da década veriam a firma ampliar seu capital. Ainda com a

perspectiva de diversificar seus investimentos, no começo dos anos

1890, o terceiro filho de Felizarda, João de Moraes Martins, e seu

genro Carlos Magno do Valle participariam como sócios solidários de

uma outra firma comissária, a Moraes, Tinoco & Cia, cuja administração

ficou a cargo de Manoel Antônio de Moraes Jr., o Neco, e de

Paulino Tinoco. Em 1896, contudo, a firma foi liquidada.

Uma avaliação do inventário de Francisco Lopes Martins e das firmas

comissárias demonstra que Felizarda e seus filhos mantiveram ao longo

de cerca de 40 anos (entre 1852 e 1891) um padrão de acumulação considerável.

Só de herança paterna e materna Felizarda recebeu em 1873 a

quantia de 524:000$000 (524 contos de réis); após a morte de seus

pais, em 1883 e 1884, recebeu 398 apólices de dívida pública no valor de

1:000$000 (1 conto de réis) cada uma e mais a quarta parte da fazenda

Rio Grande. Esse volume de negócios e de patrimônio permitiu que

Felizarda e seus filhos passassem ao largo da crise da Abolição e das

atribulações financeiras do país na primeira década republicana. Na verdade,

a Primeira República não trouxe uma crise total para a cafeicultura

fluminense. Embora regiões como Cantagalo tenham sem dúvida sofrido

um declínio em sua produção, o município de São Francisco de Paula

garantiu a permanência da produção cafeeira no Estado do Rio.16

Dos filhos de Felizarda e Francisco Lopes Martins, João de Moraes

Martins casou-se com sua prima Honestalda, Felizarda (II) casou-se

com Carlos Magno do Valle, e Francisca casou-se com Galdino do

Valle. Francisca e Galdino foram os pais de Galdino do Valle Filho,

que se casou com sua prima Evangelina de Moraes Veiga.

Felizarda faleceu em 1922, aos 88 anos.

A

O segundo filho de João Antônio, sétimo de Basília, foi Eugênio

de Moraes, que morreu cedo. O filho seguinte era Joaquim Antônio

de Moraes, nascido em torno de 1836, sobre quem se conhece muito

pouco. Cumprindo mais uma vez a tradição, Joaquim se casou na

família, com a sobrinha Basília (III), filha mais velha de seu meioirmão

Chico Cantagalo. O casal passou a residir na fazenda do

Sobrado, que foi doada por João Antônio, e teve três filhos: Elias,

que faleceu ainda criança, Aníbal (1870-1929), que era doente mental,

e Pedro Antônio de Moraes (1870-1952), que cuidou do

patrimônio familiar.

Ainda que se saiba pouco sobre suas características como fazendeiro,

Joaquim Antônio deve ter tido uma vida bastante confortável,

uma vez que na segunda metade dos anos 1870 já tinha recebido os

524:000$000 (524 contos de réis) que lhe couberam com a par-

155

16 Marieta de Moraes Ferreira, Em busca da Idade de Ouro (Rio de Janeiro, UFRJ,1995).

156

tilha em vida dos bens de seus pais. Joaquim era proprietário das

fazendas do Sobrado, Paraíso e São João da Pedra. Como muitos outros

cafeicultores, comprou uma casa em Friburgo, aonde ia constantemente

passar temporadas com a família. Possuía também uma

residência em Cantagalo. Morreu de infarto em 1887, e três anos

depois falecia Basíla (III).

Quando Joaquim Antônio morreu, Pedro Antônio era um jovem

de 16 anos e ficou sob a tutela do tio Elias Antônio de Moraes, que se

ocupou de sua educação e o mandou, junto com alguns primos, estudar

nos Estados Unidos. Tudo indica que a viagem visava à aquisição

de conhecimentos sobre agricultura. De volta ao Brasil, riquíssimo,

pois era herdeiro praticamente único de seus pais, Pedro Antônio deu

os estudos por encerrados e passou a administrar suas fazendas. Não

obteve porém grande êxito em suas atividades econômicas. Com o

agravamento da crise cafeeira, decidiu investir no Engenho Central de

Laranjeiras, juntamente com seu tio Elias. O projeto era substituir o

café pelas plantações de cana-de-açúcar, visando a seu beneficiamento

no engenho. O fracasso da iniciativa levou Pedro a leiloar todo o

empreendimento, que foi arrematado por Péricles Correia da Rocha.

Em 1942, Pedro era solteiro e residia no Rio de Janeiro, na rua

São Clemente. Na ocasião fez uma permuta com sua prima Brasília na

fazenda Santa Maria do Rio Grande. Cedeu 12 alqueires e 100 me tros

em capoeira, pastagens e mato, 10 casas de colono e a casa-sede da

fazenda, e recebeu em troca 34 alqueires e 12.100m2 em pastos e

capoeiras. Casou-se tarde com uma colona de sua fazenda São João da

Pedra, de origem austríaca, e teve vários filhos. Embora tenha sido

herdeiro privilegiado do patrimônio de seus pais, não conseguiu fazer

seus recursos prosperarem.

A

Elias Antônio de Moraes, o quarto filho de João Antônio, nono

de Basília, foi o único de todos os filhos e enteados do Barão das Duas

Barras que cursou uma faculdade. Nascido em 1840, num período de

maior prosperidade da família, quando os cafezais de João Antônio já

produziam riqueza considerável, fez os primeiros estudos em

Cantagalo, mas depois mudou-se para a Corte. Aos 20 anos, em

1860, ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e em 24

de novembro de 1865 diplomou-se. Em 1889, último ano do

Império, receberia o título de 2º Barão das Duas Barras.

Como era costume na época, Elias viveu no Rio sob os cuidados

de um amigo de seu pai, o comissário de café Antônio Clemente

Pinto, futuro Barão de Nova Friburgo, que na ocasião se preparava

para construir o que seria o Palácio do Catete. Antônio Clemente

Pinto morava no atual bairro do Catete, e aí Elias conheceu sua futura

mulher, Georgeanna Augusta da Silva. Segundo o depoimento de

Lourdes de Moraes, sua bisneta, a aproximação entre os dois ocorreu

de forma curiosa. A jovem Georgeanna, que morava no bairro com os

pais, Antônio Moreira da Silva e Georgeanna Augusta da Silva,

pequenos comerciantes portugueses oriundos do Funchal,17 aprendia

canto e fazia suas aulas e ensaios num cômodo da casa que permitia

aos passantes ouvirem-na da calçada. Elias apaixonou-se pela bela voz

da jovem, que tinha apenas 14 anos, fez sua corte e não descansou até

desposá-la. De acordo com o caderno de anotações da própria

Georgeanna, o “Livro de Lembrança do ano de 1866”, “no dia 6 de

setembro de 1866 celebrou-se no oratório particular na rua Santa

Cristina o feliz consórcio do Dr. Elias Antônio de Moraes com D.

Georgeanna Augusta da Silva”.

Dos filhos e enteados de João Antônio, Elias foi o último a casar e

o primeiro que realizou um casamento fruto de sua exclusiva opção pessoal.

João Antônio, que até então tinha controlado com mão de ferro o

destino de seus filhos e enteados, via-se agora obrigado a aceitar a esco -

lha do filho que se tornou doutor, urbanizou-se, adquiriu hábitos mais

aristocráticos e escolheu para se casar uma jovem totalmente desco -

nhecida. Ao que tudo indica, João Antônio aceitou a nora sem maiores

resistências e presenteou o filho com uma belíssima fazenda onde o

jovem casal iria residir. A escritura de compra da fazenda do Ribeirão

Dourado, datada de 18 de dezembro de 1862, descreve a propriedade:

uma sesmaria de terras de meia légua em quadra, com uma casa de

vivenda, paiol, moinhos, engenho, senzalas, cafezais e outras benfeitorias.

O Barão das Duas Barras pagou pela fazenda e benfeitorias

78:750$000 (78 contos e 750 mil réis) e, pelos 98 escravos,

93:350$000 (93 contos e 350 mil réis), totalizando o negócio

157

17 Algumas informações sobre os pais de Gerorgeanna foram obtidas a partir da Certidão de óbito de

Gerorgeanna Augusta da Silva, datada de 30 de junho de 1893, registrada no cartório de Nova Friburgo, cidade

onde ela faleceu. Livro c-03, fl. 72V, registro nº 843.

Geogeanna de Moraes, 2ª Baronesa das Duas Barras.

Elias Antônio de Moraes, 2º Barão das Duas Barras.

18 A compra foi quitada em ordens de pagamento da firma Friburgo & Filhos, como consta da escritura passada

em 18 de dezembro de 1867 por D. Antônia Eulalia Estrada de Malheiros Sudré e seus filhos, viúva e

herdeiros do falecido coronel Theodoro de Macedo Sudré, ao Barão das Duas Barras. A escritura está conservada

no acervo particular de Bento Luiz de Moraes Lisboa.

19 A compra do terreno de Antônio Camilo dos Santos para a construção do palacete data de 13 de janeiro de

1876. Arquivos do Pró-Memória da Prefeitura de Nova Friburgo, caixa 40, no 6.

160

172:100$000 (172 contos e 100 mil réis).18 A expectativa de João

Antônio era que Elias fosse um cafeicultor como os irmãos e deixasse o

exercício da medicina apenas para os atos de caridade, ou seja, para o

atendimento de doentes pobres ou escravos. Embora se tivesse distinguido

dos demais na opção conjugal, de volta ao seio da família Elias e

Georgeanna deveriam enquadrar-se no modelo familiar.

Ainda bem jovem Georgeanna engravidou, mas seu primeiro

filho morreu ao nascer, em 1867. Foi chamado Dioscoride. Nos anos

seguintes nasceram os outros cinco filhos, cujos nomes também

fugiam inteiramente à tradição familiar dos Moraes: Dorfília (1868),

Edelberto (1870), Astrodêmia (1872), Othelina (1874) e Thelio

(1878). Também segundo o caderno de anotações de Georgeanna,

todos nasceram à noite na fazenda do Ribeirão Dourado. Embora

Georgeanna tenha morado na fazenda por mais de 15 anos, a

memória familiar não guardou histórias dessa fase de sua vida. Podese

imaginar quão difícil deve ter sido para uma jovem de 15 anos

deixar a Corte, seus pais, seu professor de canto, para embrenhar-se

naqueles sertões de Cantagalo e ter seis filhos seguidos.

Contudo, Georgeanna, ou Dindinha Jana, como era conhecida

pelos netos, não se conformou para sempre com o “desterro”. Tão

logo seu sogro fez a partilha em vida de grande parte de seu

patrimônio, em 1872, Elias, em sociedade com seu irmão Joaquim,

comprou uma chácara denominada Boa Sorte na rua General Osório,

em Nova Friburgo. Passado algum tempo, deu início à construção de

uma grande casa para onde Georgeanna iria mudar-se com os fi -

lhos.19 A construção do “palacete do Dr. Elias”, uma tentativa de

cópia em menor escala do Palácio do Catete, contou com a participação

do arquiteto francês Glaziou. A nova residência foi ricamente

decorada com peças importadas, como porcelanas, pratas e cristais,

introduzindo na família novos padrões de gosto e consumo. Uma vez

inaugurada a residência, Georgeanna finalmente pôde retomar o

gosto pela música, organizando saraus e mandando vir do Rio músicos

que pudessem dar concertos para seus parentes e amigos.

Nova Friburgo passava então por expressivas mudanças, que a

transformaram num centro de educação e veraneio. Muitos fazendeiros

de café começaram a construir suas casas na cidade. Datam

dessa época as residências dos filhos do Barão de Nova Friburgo – o

Conde de Nova Friburgo e o Conde de São Clemente. Muitos membros

da família Moraes também foram atraídos pela vida urbana: os

irmãos de Elias, Felizarda, Joaquim e Amélia, construíram confortáveis

residências na rua General Osório e na Marechal Câmara, e

o mesmo fizeram alguns sobrinhos, como Juanico e o casal Antonica

e João Veiga, interessados em trazer os filhos para os colégios. Dos fi -

lhos do próprio Elias, apenas o mais moço, Thelio, estudou no

Colégio Anchieta.

A casa de Elias na rua General Osório foi um pólo de atração para

seus irmãos e sobrinhos. Segundo seu bisneto Felipe de Moraes, o

“palacete de Nova Friburgo era um ponto de reunião das pessoas.

Vovô Elias dava festas, reunia, recebia as pessoas do Rio que tinham

dificuldade de chegar até a fazenda do Ribeirão Dourado por conta da

lama e da estrada ruim. Em Friburgo tudo era mais fácil, e ele recebia

as pessoas lá com muito mais conforto”. Elias urbanizou-se e

nunca assumiu o modelo de plantador de café desejado por seu pai.

Segundo seu bisneto Bento Luiz de Moraes Lisboa, “tinha recursos,

não precisava de dinheiro e tinha uma bela maneira de viver. Era um

médico dedicado, mas nunca cobrou consulta de ninguém.

Naturalmente tinha nas fazendas uma fonte de renda, para a época,

muito boa. As fazendas ainda estavam em plena produção”.20

Elias não via o café como uma alternativa de futuro. Já na década

de 1870 começou a importar os primeiros touros da raça guzerá para

o Brasil, a fim de desenvolver uma nova atividade econômica. De

acordo com Alberto Alves Santiago, Elias “participou de todas as iniciativas

a favor do zebu, divulgando as suas vantagens, comparecendo

às exposições e contribuindo para a fama de Cantagalo como centro

de gado guzerá. De sua fazenda do Ribeirão Dourado essa variedade

indiana se irradiou para os demais municípios fluminenses e posteriormente

para Minas e outros estados”.21 No final da década de 1870,

161

20 Entrevista a Marieta de Moraes Ferreira e Carlos Eduardo de Castro Leal.

21 Alberto Alves Santiago, O gado nelore (São Paulo, Instituto de Zootecnia/ Secretaria de Agricultura, 1972), p. 81.

162

Elias já considerava a imigração como solução para a substituição da

mão-de-obra escrava e por isso começou a atrair colonos suíços e ita -

lianos para a sua fazenda. No entanto, todas essas iniciativas inovadoras

foram pouco sistemáticas e acabaram não produzindo resultados

palpáveis.

Em 1886, Elias lançou-se a novo empreendimento ao lado da

irmã Felizarda e dos cunhados Manoel de Moraes e Vicente Ferreira

de Moraes, tornando-se sócio da firma comissária Henriques Costa

Reis & Cia., dirigida por Feliciano José Henriques e Joaquim

Henriques Costa Reis. Se é verdade que não se acomodou ao modelo

familiar, nem se deixou levar por práticas econômicas rotineiras, os

resultados que obteve foram bastante decepcionantes. Uma comparação

entre o inventário de seu cunhado Vicente Ferreira de Moraes, de

1904, e o de sua mulher Georgeanna, datado de 29 de setembro de

1906, mostra como seu poderio econômico havia diminuído.

Enquanto o monte-mor de Vicente totalizava 1.234:290$000 (1.234

contos e 290 mil réis), os bens de Georgeanna consistiam em apenas

alguns imóveis, avaliados em 311:000$000 (311 contos de réis).

Exercendo grande liderança intelectual na família, no final da década

de 1880 Elias sugeriu a seus irmãos o envio de alguns de seus filhos

aos Estados Unidos. Participou da experiência, ao lado dos primos, seu

filho Edelberto. Suas três filhas não foram enviadas a colégios, mas

tiveram preceptoras em casa. Thelio, o mais moço, estudou no Colégio

Anchieta.

Dorfília casou-se em 1888 com Gustavo Alberto de Aquino e

Castro, que no início dos anos 1890 se tornou juiz em Nova

Friburgo, e Othelina casou-se com o médico Joaquim Portella. Os

dois filhos homens, Edelberto e Thelio, casaram-se com duas irmãs

residentes no Rio de Janeiro, Marieta e Noêmia, filhas do conse -

lheiro e diretor da Escola Politécnica Ignacio da Cunha Galvão. As

duas jovens cariocas tinham o hábito de passar o verão em Nova

Friburgo hospedando-se no Hotel Central, localizado nas proximidades

do Instituto Hidroterápico, e lá conheceram os futuros maridos.

Depois do casamento, em 1894, Edelberto e Marieta foram residir na

fazenda do Ribeirão Dourado e tiveram sete filhos: Sílvia, Edelberto,

Maria José (Mary), Lília, Marieta, Georgeanna (Janinha) – minha

mãe – e Beatriz (Tuchinha).

Elias faleceu em 1927, com 87 anos.

A

A filha mais nova de João Antônio e Basília, Amélia de Moraes,

nasceu em 1843 e casou-se pela primeira vez em 1857, aos 14 anos de

idade, com o médico Pedro Maria de Fonseca Ferreira. Esse

matrimônio, silenciado completamente pela memória familiar, foi

lembrado no relato de Marieta Leal da Costa, descendente de Basília

II, irmã de Amélia. Segundo seu depoimento, o Dr. Pedro Ferreira

teria ido à fazenda Santa Maria do Rio Grande para cuidar de uma

grave enfermidade de Basília, que teria recuperado a saúde com o

tratamento recebido. Durante essa visita, João Antônio certamente

viu no doutor vindo da Corte um bom casamento para sua caçula.

Contudo, no dia seguinte ao das núpcias o noivo teria inexplicavelmente

cometido suicídio, deixando viúva a adolescente Amélia. A

veracidade desse desfecho é difícil de ser comprovada através de do -

cumentos. Além disso, nenhum outro relato familiar o confirma. O

que se pode afirmar é que o Dr. Pedro Fonseca Ferreira de fato existiu

e em 1857 casou-se com Amélia na matriz de Cantagalo, como

atesta a certidão localizada na igreja de Cantagalo.

Por volta de 1861, Amélia casou-se pela segunda vez com seu

primo-irmão Vicente Ferreira de Mello, que algum tempo depois

alteraria seu nome para Vicente Ferreira de Moraes. Nascido em Minas

Gerais, filho de Antônia Rita de Moraes, irmã de João Antônio, e de

Vicente Ferreira de Mello, Vicente também era irmão de Maria

Felizarda Ferreira de Moraes, mulher de Chico Cantagalo. Percebe-se

que, depois de uma experiência mal-sucedida, João Antônio mais uma

vez lançou mão do conhecido expediente de trazer de Minas um

sobrinho para casar com a filha. Isso significava manter o controle da

família, encontrar auxiliares confiáveis para ajudá-lo na administração

dos negócios e ter mais segurança quanto ao caráter e à personalidade

daqueles que entravam para seu convívio mais direto.

Após o casamento, Amélia e Vicente foram residir na fazenda São

Lourenço, próxima à sede da fazenda Santa Maria do Rio Grande.

Tiveram vários filhos, mas apenas sete sobreviveram: Amélia, apelidada

Meloca (1862-1939), Feliciano (1871-1941), Brasília (1873-1944),

Álvaro (1878-1942), João (?-1906), Vicente (1887-1946) e

Henrique (1888-1970).

Ao contrário de seus cunhados, Vicente não se tornou sócio, mas

apenas administrador das terras do sogro e tio. É o que se lê no testamento

de João Antônio, datado de 1873: “Declarou que seu genro

Vicente Ferreira de Moraes esteve com a administração da fazenda São

163

164

Lourenço a seu cargo, e desse trabalho não levou nada, em recompensa

disso consentiu que ele colhesse algum café no seu cafezal para

si, com o produto do qual comprou alguns escravos que são seus, por

isso nunca poderão entrar no inventário.”22 De acordo com o depoimento

de sua nora Julieta Britto Pereira Ferreira de Moraes, Vicente

se empenhava bastante nos trabalhos da fazenda, e não só em sua

administração: “Dizem que às cinco horas da manhã o velho Vicente

se levantava e ia para a janela ver tirar leite da vaca. Ele fazia o serviço

rude, sacrificante, pegava no pesado. Não era barão da casa dele, não.”

É certo que em 1872, quando da partilha em vida dos bens de seus

pais, Amélia recebeu a expressiva quantia de 524:000$000 (524

contos de réis). Além disso, na década de 1890, receberia de herança

da mãe a soma de 128:000$000 (128 contos de réis) em ações da

dívida pública. Mas nesse ínterim Vicente diversificou o patrimônio

da família. Em 1886, ao lado dos cunhados Felizarda e Elias Antônio

de Moraes, tornou-se sócio da firma comissária Henriques Costa Reis

& Cia., dirigida por Feliciano José Henriques e Joaquim Henriques

Costa Reis. O primeiro, antigo comissário do Barão das Duas Barras,

era seu compadre. O segundo se tornaria seu genro, ao se casar em

1887 com Meloca. A partir de então, auxiliado pelo genro, que passou

a ser o procurador da família, Vicente lançou-se a novos investimentos,

como atestam várias escrituras depositadas no Arquivo Nacional.

Já em 1886, por exemplo, adquiriu um prédio na rua da Saúde no

valor de 20:000$000 (20 contos de réis).23 Em 1887, tem-se notícia

de que comprou uma fazenda de café chamada São Francisco do

Norte, na freguesia do Alegre, na província do Espírito Santo, no

valor de 50:000$000 (50 contos de réis), e organizou uma

sociedade agrícola para explorá-la sob o título de Vicente Moraes &

Machado.24 Uma outra escritura refere-se à liquidação de contas, em

1889, de uma empreitada entre o tenente-coronel Vicente Ferreira

de Moraes e a firma Silva & Ramos, para a construção de uma vila com

15 casas na travessa Cruz Lima no valor de 148:000$000 (148 contos

de réis).25

22 Biographia do Barão das Duas Barras por um seu amigo Dr. M. C. e testamento..., op. cit., p. 21.

23 Arquivo Nacional, Documentação do 7º Ofício de Notas, Livro 50, folha 69v, 27/10/1886.

24 Arquivo Nacional, Documentação do 3º Ofício de Notas, Livro 705, folha 29v, 13/01/1904.

25 Arquivo Nacional, Documentação do 3º Ofício de Notas, Livro 643, folha 25v, 18/07/1906.

Fazenda São Lourenço, no município de Trajano de Morais.

166

A escritura pública de partilha em vida dos bens de Amélia Ferreira

de Moraes, datada de 17 de junho de 1910, é um documento que mostra

a diversificação dos investimentos do casal e sua capacidade de acumulação

de riqueza. Foi isso que permitiu que Amélia e Vicente passassem

pela crise da escravidão e pela crise financeira do Encilhamento sem

perder o patrimônio deixado pelos Barões das Duas Barras. Como se

pode ver pela listagem dos bens, o casal possuía, além da fazenda São

Lourenço, as fazendas Boa Esperança, Laranjeiras e Campo Alegre,

dois sítios, duas casas em Nova Friburgo, várias casas e terrenos no Rio

de Janeiro, apólices do Estado do Rio de Janeiro e da dívida pública, e

dívidas, totalizando a elevada quantia de 1.234:290$000 (1.234 contos

e 290 mil réis). Embora a diversidade de negócios seja evidente, podese

ver também que Vicente não optou por investimentos urbanos ou

industriais produtivos, nem fez investimentos de risco, aplicando capital

em ações. Ao contrário, investiu em imóveis e títulos financeiros.

Outro traço distintivo do casal Vicente e Amélia foi o investimento

expressivo na educação dos filhos. Já em 1872, com apenas 10 anos

de idade, Meloca foi mandada para o Rio de Janeiro para estudar e

adquirir hábitos refinados. Da mesma forma que sua prima Antonica,

ficou sob a responsabilidade do comissário de café da família,

Feliciano José Henriques, e de sua mulher Francisca Paula de Azevedo

Macedo, a “tia Chiquita”, em cuja casa passou a morar. Foi na casa de

Feliciano Henriques que Meloca conheceu seu futuro marido,

Joaquim Henriques Costa Reis. Com o casamento de Meloca em 1887

e sua mudança definitiva para o Rio de Janeiro, o coronel Vicente

comprou uma residência de verão em Nova Friburgo e outra no Rio.

A fazenda São Lourenço continuou como residência principal da

família, mas os filhos do casal tiveram uma educação urbana.

Também no final da década de 1880, por sugestão de seu cunhado

Elias Antônio (2º Barão de Duas Barras), Vicente mandou seu segundo

filho, Feliciano, estudar nos Estados Unidos junto com alguns

primos. A terceira filha, Brasília, chegou a freqüentar o Colégio

Braune de 1883 a 1886 como aluna interna. Álvaro freqüentou de

1887 a 1890 o Colégio Anchieta e posteriormente foi enviado ao

Colégio Caraça, onde permaneceu até 1893. João também estudou

no Anchieta e mais tarde formou-se em medicina. No dia 26 de abril

de 1906, foi assassinado no Distrito Federal, no Alto da Boa Vista.26

Na época, o crime ficou conhecido como “a tragédia da Tijuca” e foi

amplamente divulgado nos jornais, por tratar-se de um homicídio

passional. Luís Cândido de Faria Lacerda, estudante de direito, como

consta no processo judicial, assassinou João Ferreira de Moraes por

causa de uma ex-namorada, Climene Phillips Benzanilla, que na

época estava noiva de João. Depois, ainda agrediu a própria Climene.

Apesar das provas, foi inocentado, pois na época os crimes passionais

em geral não le vavam à condenação.

Os filhos mais moços de Vicente e Amélia, Vicente e Henrique,

vieram bem pequenos para a casa de Meloca e Costa Reis, na rua

Buarque de Macedo, no Rio de Janeiro, que passaria a ser um ponto

de referência para toda a família. Foram matriculados no Colégio

Militar, onde fizeram o curso completo, e em seguida ambos diplomaram-

se em direito.

Dos filhos de Amélia e Vicente, apenas Feliciano casou-se na

família, com Etelvina, neta de Chico Cantagalo. O casal teve muitos

filhos: Luiza, Aquiles, Aurelina, Alice, Oscar, Maria, Alcebíades,

Dalila, Clarice, Amélia e Edna. Depois da morte de Etelvina,

Feliciano casou-se pela segunda vez com Carmelita Calazans. Todos

os seus filhos, com exceção de Aquiles, deixaram a região das fazendas.

O próprio Feliciano, nos últimos anos de vida, radicou-se no

Rio de Janeiro, onde morou no Leblon e se dedicou à exploração de

uma granja no Méier.

Brasília casou-se em 1899 com José Grey e passou a residir inicialmente

no Rio e depois em Nova Friburgo, onde seu marido foi

juiz de direito. O casal teve dois filhos, mas apenas um, Jorge de

Moraes Grey, sobreviveu. Educado em Friburgo, Jorge Grey mudouse

depois para o Rio, cursou a Escola de Medicina e tornou-se famoso

cirurgião, além de professor catedrático da mesma escola. Nos anos

1940, Brasília e seu filho empenharam-se na reconstituição da fazenda

Santa Maria do Rio Grande, comprando dos parentes suas partes

e iniciando a recuperação da sede.

Álvaro casou-se com Elvira, de Juiz de Fora, e acabou se estabelecendo

como fazendeiro na região, numa propriedade adquirida por

167

26 O processo criminal contra o assassino de João Ferreira de Moraes, Luís Cândido de Faria Lacerda, depositado

no Arquivo Nacional, foi estudado e descrito como exemplo da criminalidade no início do século XX por

Sidney Chalhoub em Trabalho, lar e botequim (São Paulo: Brasiliense, 1986).

168

seu pai. Alguns anos mais tarde, decidiu partir com a família para o

Paraná, onde se tornou grande cafeicultor. O casal teve 13 filhos:

Ruth, Geni, Noêmia, Rubens, Else, Ester, Judith, Silas, Eli, Paulo,

Jorge, Álvaro e Elvira.

Vicente casou-se em 1910 com Adelaide Neves Marques Braga, ou

Pequenina, filha de Zinha Neves e Augusto Marques Braga, neta

materna de Galdino das Neves e Adelaide Monteiro de Mendonça, e

neta paterna de Josephina Salusse e José Antônio Marques Braga.

Desse casamento nasceram quatro filhos: Augusto – meu pai –,

Vicente, Elsa e Cláudio.

Muito mais tarde, já na década de 1950, Henrique, o filho mais

moço de Vicente e Amélia, casou-se com Julieta Britto Pereira. O

casal teve três filhos: João Antônio, Luís Henrique e Maria Amélia.

A

Nesta história de alianças e negócios familiares, chama a atenção a

freqüência com que é feita menção ao comissário de café do Barão das

Duas Barras e de alguns de seus enteados e filhos, Feliciano José

Henriques. Não foi possível saber como se iniciou essa relação, mas o

fato é que ela se tornou sólida o suficiente para ter um papel na educação

de quatro netos do Barão e para fornecer cônjuges a três deles,

além de gerar um negócio comum envolvendo a família – a empresa

de comércio de café Henriques Costa Reis & Cia., criada em 1886

com sede no Rio de Janeiro e agências espalhadas no interior.

O que se sabe sobre Feliciano José Henriques é que era filho do

português Apolinário José Henriques, que veio para as Minas Gerais

na virada do século XVIII para o XIX. Apolinário casou-se com

Joaquina Antônia Rosa, teve dez filhos e terminou seus dias em Vila

Nova da Formiga, depois São Vicente Ferrer da Formiga. Foi

provavelmente na década de 1840 que Feliciano se estabeleceu na

Corte como comerciante. Ali se casou, enviuvou e tornou a casar-se

em 1859 com Francisca Paula de Azevedo Macedo, de família de

grande tradição, irmã das viscondessas de Itaboraí e de Uruguai. Esse

casamento foi sem dúvida a origem de sua ascensão social. A partir daí

associou-se a um cunhado na firma F. Henriques e Macedo Sobrinho

e tornou-se responsável pela comercialização da produção de café dos

Moraes de Cantagalo. Por outro lado, ao receber em sua casa as netas

do Barão das Duas Barras, a jovem Antonica e a menina Meloca,

Francisca Paula certamente contribuiu para refinar os hábitos da rica,

porém rústica, família de fazendeiros.

Assim é que Meloca, pouco depois de chegar à casa da “tia

Chiquita”, em 1872, escrevia ao pai contando de seu contato com

“Mrs.” Fernandes, que deveria ensinar-lhe inglês e piano:

“Corte, 11 de março de 1872

Meu querido Papai

Escrevo-lhe esta cartinha para saber de sua saúde e de

mamãe.

Eu vou indo muito bem nos meus estudos. Mrs. Fernandes

está muito contente comigo porque eu sou uma boa menina,

eu estou boa e minha prima também. Papai diga a Mrs.

Fernandes para me mandar ensinar dança.

Papai eu ainda não tirei o meu retrato porque Titia não está

aqui está em Petrópolis.

Dê muitas lembranças a mamãe e meus manos.

Adeus, meu bom Pai, abençoe esta sua filha obediente e

respeitosa.

Amélia Moraes”

Ao casamento de Antonica em 1878 com João Veiga, sobrinho de

Feliciano Henriques, seguiu-se o de Juanico com Mariquinhas Veiga,

irmã de João. Já o jovem Joaquim Henriques Costa Reis, outro

sobrinho de Feliciano, ao que tudo indica fez uma longa corte a

Meloca até o casamento, em 1887. Em 8 de outubro de 1885, o pretendente

deixou registrada sua emoção por ter recebido do pai da

amada permissão para casar-se. Escreveu ele:

“Silêncio!

Hoje, quarta-feira, 8 de outubro de 1885, o Sr. Vicente

Ferreira de Moraes deu-me o sim pelo pedido que lhe fiz

para casar-me com sua filha Amélia Ferreira de Moraes, e

resolveu-se que daqui a um ano, mais ou menos, seja marcado

o dia em que terá lugar o ato.

Escrevo a presente declaração porque... porque quero

guardar recordação bem viva desta data.

Joaquim Henriques Costa Reis”

169

170

Na época do casamento, Meloca assim escreveu do Rio de Janeiro

para seu irmão Feliciano, então estudando nos Estados Unidos:

“Querido Irmão

Na última [carta] que escrevi-lhe, participava-lhe que

casava em junho, tendo feito em 27 do mesmo e partido

para a Corte no mesmo dia; o ato foi celebrado pelo Padre

Vicente na fazenda de nosso tio Elias, pela comodidade de

nossa vinda para a nossa casa como fizemos; só estiveram

presentes as testemunhas; que foram tio Elias de minha

parte e tia Chiquita; e da parte do Costa Reis tio Feliciano e

tia Felizarda Lopes; mesmo sem convites esteve animado.

Mande-me dizer se já acabaste de concluir os teus estudos;

se vens por estes meses ou demorará mais tempo para algumas

excursões, e mesmo para algumas viagens de estrada de

ferro. [...]

Aqui está morando na mesma rua que nós, fazendo uso

dos banhos de mar, tio Elias a mulher e a Dorfília, eu também

vou principiar. A nossa rua é muito boa e fresca. Como

já deve saber casou-se no dia 22 passado Elisa Pereira com

Luizinho Torres e a 14 do mesmo mês o primo Antônio de

Andrada com Elisa da Serra, fomos convidados para ambos,

mas só fui o da Serra que esteve muito concorrido.

Desejamos que continue a gozar saúde e seja feliz como tem

sido até aqui; que seja sempre prudente para ter bonita distinção

na sociedade, principalmente como engenheiro, que

deve sempre ocupar um bom lugar; o mesmo desejo ao teu

colega e o nosso lembrado primo Pedro.

Mande-me dizer como ele passa, se está ou não satisfeito.

Faz hoje um mês que casei-me. Hoje estou também

escrevendo notícias para casa e vou dar notícias suas.

Aceite com o Pedro lembranças do Costa Reis e muitas

saudades minhas. Queira recomendar-nos ao Flores.

Adeus querido Irmão, queira sempre esta sua irmã e amiga

sincera

Meloca F. de Moraes Costa Reis

Seus padrinhos passam bem

27 de julho de 1887”

A casa de Costa Reis e Meloca no Rio de Janeiro passou a desempenhar,

para os irmãos menores dela, o mesmo papel que a de Feliciano

e Chiquita Henriques havia desempenhado no passado. Aos 13 anos,

revelando como Costa Reis participava da educação dos cunhados mais

moços, Vicente escrevia à irmã Brasília, a quem chamava Nenê:

“Nenê - 25/6/1899

Eu peço por favor para você pedir a Meloca e ao Costa Reis

para me tirar o sábado; porque eu estou arrependido de ter

feito aquilo. Eu estou escrevendo este bilhete chorando de

arrependimento, mas peça bastante desculpa ao Costa Reis.

(ilegível) porque Henrique ontem nem hoje quis passear.

Nenê peça bastante à Meloca para pedir ao Costa Reis.

Abrace o irmão que muito a estima. Estou chorando de

saudades.

Vicente”

171

São Francisco de Paula. Capela construída na década de 1850.

173

Novos Tempos, Novas Gerações

e nas duas primeiras décadas do século XIX, a região dos antigos

e proibidos Sertões do Macacu correspondeu a um único e

vasto distrito, cuja sede teve origem no arraial descoberto graças

ao canto de um galo. Quando, em 1793, João Baptista

Rodrigues Franco ali solicitou uma sesmaria, indicou sua loca -

lização em “paragem próxima ao Arraial de Cantagalo”; quando,

em 1820, Antônio Rodrigues de Moraes e Basília Rosa da

Silva se instalaram na antiga sesmaria dos Rodrigues Franco,

agora fazenda Santa Maria do Rio Grande, a vila mais próxima

era Cantagalo; quando, enfim, João Antônio de Moraes e

Basília se casaram, em 1833, o fizeram na matriz de Cantagalo.

Enquanto isso, porém, a região continuava a ser desbravada,

novas fazendas eram abertas e novos arraiais surgiam, anunciando

mudanças na divisão política do território.

No final do século XVIII

174

Um primeiro desmembramento do distrito de Cantagalo ocorreu

em 1820, quando a vila de Nova Friburgo foi fundada nas terras da

antiga fazenda do Morro Queimado. Por essa época, já havia sido

erguida, em localidade próxima do rio Macabu, uma capela dedicada

ao culto de São Francisco de Paula, em torno da qual se formou um

núcleo populacional. Em 1840, a capela recebeu o predicamento de

curato, por força da Lei nº 218, de 27 de maio, cujo artigo 1º se referia

a Cantagalo como município: “A capela de São Francisco de Paula,

no município de Cantagalo, é decretada capela curada.” Ainda em

1840, foram anexadas ao curato de São Francisco de Paula terras si -

tuadas mais ao norte, desbravadas pelo português Manoel Teixeira

Portugal. Os pântanos cheios de barro branco dessas terras teriam

levado os viajantes que por lá passavam a chamá-las de Tabatinga,

primeira denominação do que viria a ser o arraial do Santíssimo.

Em 1846, São Francisco de Paula tornou-se uma freguesia; em

1850, novas alterações ocorreram: segundo escritura lavrada em 20

de abril pelo escrivão de paz Antônio Leoclat, da freguesia de São

Francisco de Paula, o padre Frouthé doou terrenos do arraial do

Santíssimo a Santa Maria Madalena para que ali fosse edificada uma

capela em sua homenagem. Seis meses depois de erguida a capela, em

1851, o arraial do Santíssimo tornou-se por sua vez um curato e passou

a chamar-se Santa Maria Madalena. Tudo indica que o desenvolvimento

de Santa Maria Madalena, a partir de então, tenha sido

veloz. O primeiro indício disso é o fato de que já em 1855 o novo

curato alcançou situação igual à de São Francisco de Paula, tornandose,

pelo Decreto nº 802, de 28 de setembro, uma freguesia. Seis anos

depois, pelo Decreto nº 1208, de 24 de outubro de 1861, Santa Maria

Madalena foi desmembrada do termo de Cantagalo, teve anexadas a si

as freguesias de São Francisco de Paula e de São Sebastião do Alto, e

foi elevada à categoria de vila. No ano seguinte, a vila tornou-se sede

de município.

Os novos núcleos assim criados alteraram o quadro de referências

da região, que de início girava apenas em torno da vila de Cantagalo.

Assim é que todas as fazendas adquiridas por João Antônio de Moraes

e seus enteados e filhos a partir da década de 1840 – e até mesmo a

fazenda original, Santa Maria do Rio Grande – passaram a ter sua

localização indicada não mais tomando-se como referência Cantagalo,

e sim São Francisco de Paula. Da mesma forma, com a criação do

município de Santa Maria Madalena, onde “os moradores mobi-

lizaram à sua custa uma casa para as sessões da Câmara Municipal, do

Júri e das audiências das autoridades”, as fazendas das redondezas passaram

a recorrer aos serviços ali prestados. Foi assim que, quando em

1872 o Barão e a Baronesa das Duas Barras decidiram fazer a partilha

em vida de seus bens e lavrar seu testamento, o fizeram no cartório de

Santa Maria Madalena, e não na vila onde se haviam casado.

A divisão política da província do Rio de Janeiro ainda iria se

alterar bastante com a Proclamação da República em 1889. Iniciado o

governo de Francisco Portela no agora estado do Rio de Janeiro, um

grande número de novos municípios foi criado. A reorganização

municipal e a retificação administrativa do estado representavam um

importante instrumento de poder para as novas lideranças republicanas,

carentes de bases políticas próprias. A criação de um município

significava a instalação de um órgão legislativo, novas repartições e

novos serviços, ou seja, concessão de verbas e oferta de empregos.

Muitas vezes, significava também o desmembramento de antigos

municípios controlados por chefes oposicionistas. Não é difícil

perceber que, para quem os criava, os novos municípios significavam

apoio e votos.

Foi nesse contexto que foi criado, afinal, o município de São

Francisco de Paula, por determinação do Decreto nº 178, de 12 de

março de 1891. O decreto estabeleceu que a sede do município seria

a freguesia do mesmo nome, então elevada à categoria de vila. Mas

este ainda não seria o arranjo final na história da organização política

local. No início do século XX, novas mudanças iriam ocorrer, até

que em 1938 São Francisco de Paula recebesse seu nome atual:

Trajano de Morais. Nessas mudanças estiveram envolvidos membros

das novas gerações da família Moraes.

A

Trajano de Moraes, o filho mais velho de José Antônio de Moraes

e Leopoldina das Neves, os Viscondes de Imbé, planejou nos últimos

momentos do Império um arrojado empreendimento: a abertura de

uma ferrovia ligando a cidade de Macaé, no litoral, ao interior. A

estrada de ferro passaria por Conceição de Macabu, Triunfo, e depois

pelas localidades de Ventania, Aurora e Manoel de Moraes, todas elas

próximas das fazendas de sua família: Ventania, da fazenda Santo

Inácio, e Aurora, da fazenda Aurora, ambas pertencentes a seu pai;

Manoel de Moraes, da fazenda da Barra, pertencente a seu tio. Com

o objetivo de construir a ferrovia, Trajano organizou em sociedade

175

Estação ferroviária do distrito de Visconde de Imbé, no município de Trajano de Morais.

Antiga sede da Fazenda Aurora, em Visconde de Imbé.

com o Visconde de Imbé e seu tio Manoel de Moraes a Companhia

Estrada de Ferro Barão de Araruama, com sede em Santa Maria

Madalena. Além dos recursos próprios da família, acumulados na

atividade cafeeira, buscou recursos internacionais, contraindo em

setembro de 1889 um empréstimo de 6,5 milhões de marcos alemães

no Brazilianidre Bank Deutschland, por via de debêntures (títulos de

obrigação ao portador) com prazo de 20 anos, a juros de 5% ao ano.

O empréstimo foi feito mediante a garantia do governo imperial de

até a importância de 30:000$000 (30 contos de réis) por

quilômetro sobre o prolongamento da ferrovia de Triunfo até o

entroncamento com a Estrada de Ferro Leopoldina, pelo prazo de 30

anos, em conformidade com o Decreto nº 10.245, de 31 de maio de

1889, e o contrato de 4 de junho do mesmo ano. Essa iniciativa dei -

xava claro que Trajano pretendia mudar o perfil dos negócios da

família, lançando-se em investimentos de base urbana e transformando-

se num grande empresário.

Em 1895, uma escritura de doação de terrenos em Ventania, firmada

por Trajano, demonstrava seu interesse em “contribuir para o

aumento e desenvolvimento desta estação e do povoado que aí vai se

formando”. As terras doadas destinavam-se à construção de casas de

residência para o engenheiro e o empregado da estrada de ferro, além

de oficinas e depósitos. Em troca, a Companhia Estrada de Ferro

Leopoldina deveria entregar-lhe um vagão-plataforma para o transporte

de produtos agrícolas e industriais entre as estações de Macabu,

Ventania e Aurora.1 No entanto, ainda antes do fim da década,

Trajano se desfez da Estrada de Ferro Barão de Araruama, transferindo-

a para a Companhia Estrada de Ferro Leopoldina.

As atividades empresariais levaram Trajano a se aproximar do Rio

de Janeiro. Assim, em 1890, comprou a casa do conselheiro Pereira

da Silva, na rua das Laranjeiras, e lá passou a residir. Segundo sua

neta Isa Limonge Coelho, investiu também numa fábrica de tijolos e

telhas, a Cerâmica Santa Cruz, na ilha do Governador, que se

mostrou lucrativa. Manteve sempre a posse de sua fazenda Santo

Inácio, que era tocada por um administrador, mas até falecer, em

1911, aos 55 anos de idade, residiu com a família no Rio.

177

1 Arquivo Nacional, Junta Comercial, Livro 536, folha 10.

178

Embora tenha sido feita exaustiva pesquisa nos arquivos da fazenda

Santo Inácio, o inventário de Trajano não foi encontrado. Mas lá

estava o de Darcília, sua viúva, revelando que em 1914, quando de seu

falecimento, o patrimônio a ser partilhado entre seus dois filhos

totalizava 554:030$000 (554 contos e 30 mil réis), dos quais

300:000$000 (300 contos de réis) correspondiam a imóveis na

cidade do Rio de Janeiro, e o restante a fazendas no município de São

Francisco de Paula. Não há registro de investimentos financeiros, já

que todo o patrimônio consistia em bens imóveis, rurais e urbanos,

mas ainda assim o monte-mor era significativo. É sabido que os

primeiros anos do século XX trouxeram uma gradativa melhoria para

a economia do país, especialmente depois de 1906, quando foi inaugurada

a política de valorização do café. Ao que tudo indica, antes de

morrer, Trajano soube aproveitar a nova conjuntura, voltando a concentrar

seus investimentos na lavoura cafeeira. Prova disso é que integravam

o espólio de sua mulher, três anos depois, seis fazendas que

totalizavam 1.324 alqueires de terras, com 368 mil pés de café. Além

de outros bens, ao filho José de Moraes couberam as fazendas Barro

Alto, Retiro, São Joaquim da Soledade, Santo Inácio e Monte Claro,

e à filha Darcilinha de Moraes Limonge coube a fazenda das Neves.

O nome Trajano de Moraes foi escolhido para rebatizar a estação

de Ventania, da mesma forma como o de Visconde de Imbé foi dado

ao povoado de Aurora. Mais tarde, já em 1938, o próprio município

de São Francisco de Paula passaria a se chamar Trajano de Moraes.

A

O casal formado pelos primos-irmãos Honestalda de Moraes

Pereira de Mello, filha de Basília (II) de Moraes e de Antônio Pereira

de Mello, e João de Moraes Martins, filho de Felizarda de Moraes e de

Francisco Lopes Martins, também exerceu papel importante na vida

política do antigo município de São Francisco de Paula. João chegou

a ser deputado estadual, mas o maior feito político do casal foi o

apadrinhamento de Raul de Moraes Veiga, filho de Antonica, primairmã

de ambos, futuro presidente do estado do Rio de Janeiro. Raul

Veiga tinha tal amizade e cumplicidade com seus padrinhos que, a seu

pedido, chegou a construir a cidade de Visconde de Imbé para ser a

sede do município de São Francisco de Paula.

De início, a sede do município se localizava na vila do mesmo

nome, em região montanhosa, inacessível à estrada de ferro, o que

prejudicava enormemente o escoamento da produção cafeeira local.

Foi então transferida, em 1915, para a estação de Trajano de Moraes,

na localidade de Ventania, área de influência de José de Moraes, filho

de Trajano. No entanto, em 1919, João e Honestalda compraram a

fazenda Aurora, que havia pertencido ao Visconde de Imbé, e passaram

a exercer forte pressão para que a sede do município fosse mais

uma vez transferida, agora para a povoação de Aurora, contígua à

propriedade, e também servida pela estrada de ferro. Então presidente

do estado, Raul Veiga alargou as ruas da povoação e construiu

um grupo escolar, um foro, uma cadeia e um edifício para a prefeitura.

A sede do município foi assim transferida para Aurora, que em

1921 se tornou vila e passaria a ser chamada de Visconde de Imbé.

Pouco tempo depois, porém, em 1923, o grupo político liderado por

Nilo Peçanha, a que pertencia Raul Veiga, foi derrotado e afastado do

governo do estado. Aliado à nova facção política que conquistou o

poder através de Feliciano Sodré, José de Moraes transferiu novamente

a sede do município para Trajano de Moraes .

Embora tenha sido derrotada em seu projeto político, Honestalda

ainda iria protagonizar uma longa história após o falecimento de João

de Moraes Martins, em 1933. Viúva e auxiliada por seu afilhado

favorito, José de Moraes Souza, assumiu os negócios do marido, fundou

o Banco São Francisco de Paula e ampliou as atividades de suas

várias fazendas, que tinham como sede principal a Olaria, antes pertencente

a seus avós, os Barões das Duas Barras, e a seus tios e sogros

Felizarda de Moraes e Francisco Lopes Martins. Em agosto de 1936,

obteve sua grande vitória: foi eleita prefeita do município de São

Francisco de Paula com 1.416 votos, num total de 2.389, como candidata

do Partido “Tudo por São Francisco de Paula”.2

Referindo-se àquela que considera sua avó, Honestalda de Moraes

Souza Tavares, filha de José de Moraes Souza, diz que depois da morte

de João de Moraes Martins “contavam que ela triplicou a fortuna

dele”.3 Ao contrário do marido, que era “muito alegre”, costumava

sair e freqüentar festas, Honestalda tinha um temperamento mais

rígido e controlava tudo nas fazendas. A ampliação do patrimônio

familiar por ela empreendida, numa época em que a cafeicultura já

179

2 Informações contidas no diploma do vereador Raul Pinto Barbosa, conservado no acervo da fazenda

Ipiranga.

3 Entrevista a Marieta de Moraes Ferreira e Carlos Eduardo de Castro Leal em Nova Friburgo, em 7 de março

de 1998.

180

enfrentava dificuldades, é sem dúvida de causar espanto. Honestalda

administrava com pulso firme as fazendas, que produziam quase tudo

o que era necessário à própria subsistência. Afora o sal, que tinha que

ser comprado, os outros gêneros alimentícios, como feijão, arroz,

frutas, verduras e mesmo açúcar, eram produzidos na Olaria. Nas

outras propriedades, que contavam com um administrador, havia

uma certa especialização. A fazenda Manoel de Moraes, por exemplo,

era voltada basicamente para a pecuária.

Não resta dúvida de que Honestalda desempenhou o papel de mãe

para vários parentes que passavam por dificuldades econômicas, educando

vários sobrinhos e afilhados. Além disso, os filhos dos empregados

das fazendas também contavam com seu apoio. Ter uma escola

na fazenda era indiscutivelmente uma forma de ajudar as crianças das

redondezas.4 Mas sua participação na formação dos meninos e meninas

não se restringia à escola ou a uma ajuda financeira. Honestalda

Tavares conta que “ela sentava de noite com as crianças e ensinava

todo mundo a fazer tricô e crochê. Eles faziam gorrinhos e iam

vender no campo de futebol; era um dinheirinho que eles

ganhavam”. Assim, mais do que ensinar trabalhos manuais,

Honestalda transmitia às crianças sua visão de mundo, na qual o trabalho

e a poupança tinham um papel central. Consta também que aos

domingos, na entrada da igreja de Visconde de Imbé, distribuía

esmolas e conselhos aos pedintes: “Guarde este tostão, ponha no

banco, que amanhã você vai ter mais.”

As muitas histórias contadas sobre Honestalda revelam uma perso -

nalidade que combinava de forma inusitada generosidade e uma certa

avareza. Dava presentes para a casa do sobrinho José de Moraes Souza,

como toalhas de linho, mas não queria que fossem usadas. No seu

entender deviam ficar guardadas, talvez para serem usadas só em

ocasiões importantes. Honestalda Tavares conta ainda que quando tinha

nove ou dez anos recebeu da avó um presente extravagante: um

Chevrolet vermelho! Era como se o carro fosse um bem não perecível,

uma jóia, que devesse ser guardada até a menina crescer e poder usá-la.

Se a personalidade forte de Honestalda transformou-a em personagem

de muitos casos contados e recontados em reuniões de

família, a imaginação dos que a rodeavam, como as crianças e os

4 Marieta de Moraes Ferreira, Correspondência familiar e rede de sociabilidade, em Ângela de Castro Gomes,

Escrita de si, escrita da História (Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004). p. 241-256.

empregados da fazenda, também contribuiu para aumentar o rol das

histórias a seu respeito. Ainda de acordo com Honestalda Tavares, “as

pessoas diziam que ela era muito brava: tinha uma palmatória para

castigar as crianças e às vezes punha os empregados de joelhos sobre

grãos de milho no pátio interno da sede da fazenda”.

O inventário de Honestalda, datado de 1956, é revelador de sua

capacidade de empreendimento e acumulação. Honestalda possuía

então mais de 1.400 alqueires de terras (fazendas Olaria, Barra de

Bonança, Boa Sorte, Bonança, Aurora, Macabu, Samabaia,

Coqueiro, Passos), além de muitas casas em Visconde de Imbé e até

mesmo uma usina para o abastecimento de energia elétrica. Além

disso, tinha títulos financeiros (ações da Companhia Docas de

Santos, por exemplo) e uma grande soma em dinheiro depositada em

vários bancos, totalizando o seu monte-mor Cr$ 14.811.810,00. Seu

espólio foi dividido entre muitos sobrinhos e afilhados.

A

José Antônio de Moraes (II), ou simplesmente José de Moraes,

filho de Trajano de Moraes e neto do Visconde de Imbé, ingressou na

vida pública em 1906, ao obter seu primeiro mandato de deputado

estadual. Tinha suas bases políticas, arregimentadas por seu pai, no

município de São Francisco de Paula, da mesma forma que seu primo

Raul de Moraes Veiga, futuro presidente do estado do Rio de Janeiro.

Como este, integrava também, ainda que com certa dose de autonomia,

o grupo que então se consolidava sob a liderança de Nilo

Peçanha. Foi reeleito deputado estadual em 1910 e em 1915, e em 1918

conseguiu seu primeiro mandato de deputado federal. Suas divergências

com Nilo Peçanha impediram, porém, sua reeleição em 1921.5

A explicação para esse afastamento de José de Moraes do grupo

nilista, exatamente durante o governo de Raul de Moraes Veiga, pode

ser encontrada nas medidas por este tomadas em São Francisco de

Paula. Foi sem dúvida a transferência da sede do município, determinada

pelo presidente do estado, de Trajano de Moraes para a povoação

Aurora, mais tarde Visconde de Imbé, que levou José de Moraes a

romper com o nilismo e buscar novos aliados na política estadual.

Após a derrota do grupo nilista em 1922, José de Moraes voltou à

cena, aliado aos novos donos da política estadual, como Feliciano

181

5 Ver Marieta de Moraes Ferreira, Em busca da Idade de Ouro, op. cit.

182

Sodré, e já em 1923 conseguiu mudar novamente a sede do município

de São Francisco de Paula, de Visconde de Imbé, para Trajano de

Moraes. Passou a integrar a comissão executiva do Partido Republicano

Fluminense, o PRF, e elegeu-se deputado federal por três legislaturas

consecutivas, em 1924, 1927 e 1930. Com a Revolução de 30, perdeu

o mandato, abandonou a vida política e passou a residir na fazenda

Santo Inácio, onde se dedicou às atividades agrícolas. No entanto,

estava longe de possuir a vocação de fazendeiro e empresário de seu avô

ou de seu pai. A ida para a fazenda foi a saída possível diante dos reveses

políticos e econômicos que sofreu com o fim da Primeira República.

A

Raul de Moraes Veiga, filho de Antonica de Moraes e de João

Henriques da Veiga, portanto bisneto dos Barões das Duas Barras,

nasceu na fazenda da Barra em 1878 e de início foi criado em Nova

Friburgo, onde estudou no Colégio Anchieta. Após a morte de sua

mãe, em 1896, concluiu o curso secundário no Colégio João Alfredo,

no Rio de Janeiro, e em 1900 ingressou na Escola Politécnica, onde

iria formar-se em engenharia. Assim que se formou, passou a traba -

lhar na Comissão da Planta Cadastral e de Saneamento, em Niterói,

e ali entrou em contato com o grupo político liderado por Nilo

Peçanha, que então controlava a política fluminense.

Ao ser eleito presidente do estado do Rio de Janeiro em 1903,

Nilo Peçanha desejava promover reformas modernizadoras. Na

época, devido à crise da cafeicultura e à fragmentação de sua elite

política, o Estado do Rio enfrentava um grave processo de perda de

status na federação. A implementação de um projeto de recuperação da

economia fluminense exigia a constituição de um grupo político

coeso e capaz de dar sustentação ao governo estadual. Foi exatamente

nessa conjuntura que Raul Veiga iniciou sua carreira. Em 1906,

aliando contatos políticos feitos na administração de Niterói ao apoio

financeiro e eleitoral de sua família, foi eleito deputado estadual.

A principal base de sustentação de Raul Veiga era o município de

São Francisco de Paula. Particularmente importante era o apoio de

parentes e padrinhos, entre os quais se destacavam Honestalda e João

de Moraes Martins. Como é sabido, as eleições na Primeira República

eram feitas dentro de um sistema em que não existiam nem voto secreto,

nem Justiça Eleitoral, e por isso mesmo eram comuns a fraude e a

manipulação. Eram as chamadas eleições a “bico de pena”. Para ser

eleito, era fundamental o apoio dos “coronéis” do interior, que ti -

Raul Veiga, Presidente do Estado do Rio de Janeiro de 1919 a 1922.

184

nham seus “currais eleitorais” e podiam controlar a massa de eleitores.

A garantia do êxito de Raul Veiga vinha assim em grande parte do

poder político de João e Honestalda em São Francisco de Paula.

Após um primeiro mandato como deputado estadual, Raul Veiga

ganhou espaço no grupo nilista e passou a integrar a chapa de candidatos

a deputado federal. Obteve vários mandatos consecutivos, até

ser eleito presidente do estado do Rio de Janeiro, em 1919. Indicado

candidato pelo próprio Nilo Peçanha, como solução para evitar uma

cisão política no Partido Republicano Fluminense (PRF), governou

em consonância com seu grupo, neutralizando os conflitos do partido

e pondo em prática uma política econômica voltada para a recuperação

da cafeicultura, mas também para a diversificação econômica,

especialmente através do desenvolvimento da pecuária.

Implementou, entre outros projetos, o de uma reforma tributária

que reduziu o imposto de exportação e aumentou o de transmissão.

Ao final de seu governo, em 1922, conseguiu um superávit de

10.000:000$000 (10 mil contos de réis). No campo da educação

sua administração promoveu uma reforma no ensino primário, instituindo

a inspeção escolar. Além disso foram criadas escolas profissionais

femininas em Campos e em Niterói.6

Em 1922, Nilo Peçanha, com o apoio do Rio Grande do Sul,

Bahia, Pernambuco e Distrito Federal, candidatou-se à presidência

da República em oposição ao candidato oficial Artur Bernardes, que

era apoiado por São Paulo, Minas Gerais e os demais estados. Essa

candidatura oposicionista, lançada pelo movimento da Reação

Republicana, representou um primeiro confronto entre as oligarquias,

desvendando tensões latentes no federalismo brasileiro. A tentativa

das oligarquias dissidentes de criar um eixo alternativo de poder

foi no entanto barrada pelo sistema eleitoral fraudulento da

República Velha. Artur Bernardes foi eleito com 466 mil votos, contra

317 mil dados a Nilo Peçanha, de acordo com a máquina oficial. A

derrota de Nilo teve conseqüências imediatas no cenário político fluminense,

afastando os nilistas do poder estadual e, por conseguinte,

provocando uma perda de espaço político para Raul Veiga.7

6 Para mais informações sobre a administração de Raul Veiga, ver Emmanuel de Bragança de Macedo Soares,

Raul Veiga no governo fluminense (Niterói: Museu Histórico do Estado do Rio de Janeiro, 1978).

7 Marieta de Moraes Ferreira, Um eixo alternativo de poder, em Marieta de Moraes Ferreira (coord.), A

República na Velha Província (Rio de Janeiro: Rio Fundo,1989), p. 241-259.

Ainda assim, depois de um período de “congelamento político”,

Raul Veiga e parte do grupo de Nilo Peçanha, então falecido, procuraram

fazer um acordo com a situação fluminense, que depois de uma

forte repressão a seus opositores buscava a conciliação, a fim de

incorporar uma oposição domesticada. Raul Veiga participou dessa

articulação política e foi eleito para mais dois mandatos de deputado

federal, em 1927 e 1930. O último não chegou a ser concluído, em

virtude da Revolução de 30, que fechou o Congresso e desalojou os

grupos que controlavam o poder no Estado do Rio e em grande parte

do país.

A

Outro bisneto dos Barões das Duas Barras que teve participação

política na Primeira República foi Galdino do Valle Filho, neto de

Felizarda de Moraes e Antônio Lopes Martins, filho de Francisca de

Moraes Martins e Galdino do Valle. Nascido em 1879 na fazenda

Olaria, de propriedade de sua avó, Galdino do Valle Filho mudou-se

em 1889, junto com a família, para Nova Friburgo e ali cursou o

secundário no Colégio Anchieta. Em seguida veio para o Rio de

Janeiro, onde se formou em medicina em 1902. Seu pai, que também

era médico, tornou-se chefe político em Nova Friburgo e logo levou

o filho para o mesmo caminho.

Aproveitando-se da fusão de diferentes correntes políticas em

Nova Friburgo, em 1906 Galdino Filho lançou na cidade o jornal A

Paz, que pretendia consolidar a pacificação da política local. O passo

seguinte foi sua candidatura e eleição para vereador em 1909. Tentou

eleger-se deputado estadual em 1910, mas não obteve votação suficiente.

Suas bases ainda eram frágeis, pois não contava com o apoio

das principais lideranças de Nova Friburgo, e dividia o cacife político

familiar em São Francisco de Paula com seu primo e cunhado Raul de

Moraes Veiga, irmão de sua mulher Evangelina.

No começo da década de 1910, Nova Friburgo já despontava como

um centro de atração para as indústrias têxteis, e iniciava-se a construção

da fábrica de fitas Arp. A industrialização requeria infra-estrutura, e

em especial energia elétrica, mas a Câmara Municipal não conseguia

se posicionar de maneira ágil em relação à eletrificação. Galdino fez

então de seu jornal um porta-voz da luta pela industrialização, aliando-

se a Julius Arp na campanha pela conquista da concessão para

explorar a energia elétrica na cidade e entrando em conflito com o

presidente da Câmara dos Vereadores, Galiano Emílio das Neves Jr.

185

8 Sobre a polêmica entre a Câmara Municipal e Galdino do Valle Filho em torno da eletrificação de Nova

Friburgo, ver João Raimundo Araújo, Nova Friburgo: o processo de industrialização da Suíça brasileira, 1890-1930, op. cit.

186

Tendo saído vitorioso do embate, Galdino, aliado do grupo de Nilo

Peçanha e muito próximo do então presidente do estado, Oliveira

Botelho, candidatou-se novamente a vereador em 1912. Não só foi

reeleito, como também fez oito dos dez vereadores, o que lhe deu o

controle da Câmara Municipal. Eleito presidente da Câmara, passou

a exercer as funções executivas locais, já que a figura do prefeito ainda

não existia.8

Contudo, sua ascensão política logo em seguida iria sofrer alguns

reveses. Em 1914, uma grave crise marcou a política fluminense em

função das eleições para presidente do estado. Nilo Peçanha e

Oliveira Botelho, até então aliados, divergiram quanto à indicação do

candidato. Afinal, Nilo Peçanha resolveu candidatar-se ele próprio

em oposição a Feliciano Sodré, que era apoiado por Botelho. Nilo foi

eleito, mas o grupo nilista estava rachado, e lideranças até então

expressivas do nilismo passaram para a oposição. Galdino foi uma

delas e naturalmente passou a sofrer as conseqüências de sua opção.

Nos anos que se seguiram tentou manter o poder político, mas

enfrentou dificuldades, mesmo quando Raul de Moraes Veiga foi

eleito presidente do estado.

Esse quadro só foi alterado com a derrota do grupo nilista em

1922 e a ascensão de Feliciano Sodré em 1924. Essa reviravolta abriu

um novo espaço para Galdino, que até 1930 passou a usufruir das

vantagens de pertencer à situação. Galdino não só reconquistou o

poder político em Nova Friburgo, como se elegeu deputado federal

em 1924, 1927 e 1930. Durante a década de 1920, exerceu papel de

destaque na condução da política friburguense, marginalizando o

grupo liderado por Sílvio Rangel, genro e herdeiro político de

Galiano Emílio das Neves Jr., afinado com Nilo Peçanha. Na esfera

estadual, Galdino integrou durante vários anos a comissão executiva

do PRF. Com a Revolução de 30 e a dissolução do Congresso, perdeu

o mandato de deputado federal e o controle da política friburguense,

passando, então, a dedicar-se à clínica médica.

Em 1945, com a redemocratização do país e o surgimento de

novos partidos, Galdino, ferrenho opositor de Vargas, engajou-se na

União Democrática Nacional (UDN). Logo nas primeiras eleições

concorreu a uma cadeira de senador na Assembléia Nacional

Constituinte, mas não conseguiu se eleger. Em 1954 candidatou-se a

deputado federal, novamente pela UDN, e foi eleito. Após o fim do

mandato, em 1959, afastou-se definitivamente da política e voltou-se

para a medicina e para a vida familiar. É autor do livro intitulado

Lendas e legendas de Nova Friburgo, citado na primeira parte deste trabalho.

A

A Revolução de 30, ao destituir os presidentes de estado e fechar o

Congresso e as assembléias estaduais, rompeu com o quadro político

vigente durante a Primeira República e promoveu, em certa medida,

uma renovação das elites políticas estaduais. A mudança atingiu diretamente

José de Moraes, Raul de Moraes Veiga e Galdino do Valle

Filho, por exemplo, que se viram subitamente afastados da cena

política. Em compensação, outro membro da família Moraes começou

a se destacar na nova conjuntura: Vicente Ferreira de Moraes.

Filho de Amélia de Moraes e de Vicente Ferreira de Moraes, nas

décadas de 1910 e 1920, Vicente dividiu seu tempo entre o Brasil, a

Europa e os Estados Unidos, e combinou vida social e estudos, freqüentando

cursos na Columbia University, na Sorbonne, na École

des Sciences Politiques e no Collège de France. Sua intenção era acumular,

através de leituras e cursos, uma bagagem intelectual que lhe

permitisse entender melhor o Brasil e assim construir uma base consistente

para sustentar sua atuação política. A publicação de sua autoria,

Por que sou político, de 1915, como o próprio título sugere, pretendia

apresentar as razões de seu interesse pela política. Partindo de uma

narrativa sobre suas origens familiares, descrevia a seguir suas expe -

riências como estudante de direito na cidade do Rio de Janeiro e sua

opção pela luta em prol do desenvolvimento nacional através da

diversificação da agricultura, em conformidade com a corrente de

pensamento liderada por Alberto Torres. Outras preocupações suas

eram a regeneração dos costumes republicanos e o estabelecimento da

verdade eleitoral.

Seu primeiro engajamento na política ocorreu no seu último ano

de faculdade, por ocasião da campanha presidencial de 1910, quando

disputavam as eleições Rui Barbosa e o marechal Hermes da Fonseca.

Engajado na luta civilista, Vicente recebeu com grande decepção a

derrota de seu candidato. Meses depois, já casado com Pequenina

Marques Braga, decidiu embarcar para Paris, associando viagem de

núpcias e estudos. Na capital francesa, matriculou-se na École des

187

188

Sciences Politiques e freqüentou as conferências do Collège de

France. Os cursos e as conferências deveriam “fornecer elementos

úteis ao futuro de seu país”. De volta ao Brasil em 1913, retomou sua

militância política, engajando-se na luta para organizar no Estado do

Rio comitês civilistas para combater o governo de Hermes da Fonseca,

e ao mesmo tempo articular o Partido Republicano Liberal (PRL).

O principal objetivo do novo partido era lutar pela verdade

eleitoral e apresentar candidatos às eleições presidenciais de 1914. O

nome escolhido foi novamente Rui Barbosa, que, na visão de Vicente,

era a grande figura capaz de realizar a reforma eleitoral e moralizar os

costumes políticos brasileiros. Comprometido com essa idéia,

Vicente passou os anos de 1913-1914 dedicado a organizar diretórios

municipais do PRL no interior fluminense. O lançamento pelos

grandes estados da candidatura de Venceslau Brás cortou, porém, as

esperanças de qualquer articulação em torno de Rui e de uma vitória

do PRL. Como esperado, as eleições de 1914 foram marcadas pela

fraude, e a nova tarefa que Vicente se impôs foi lutar pela eleição de

deputados federais do PRL nas eleições legislativas de 1915. Mais uma

vez a regra de ouro das oligarquias da Primeira República se cumpriu,

e a vitória coube à situação, graças à manipulação de votos.

Passado o pleito eleitoral, novamente Vicente pensou em deixar o

Brasil. Tendo sido deflagrada na Europa a Primeira Guerra Mundial,

decidiu partir para os EUA e, lá chegando, fixou-se em Nova York. A

essa altura, já possuía quatro filhos: o primeiro, Augusto, nascido em

Paris, e os demais, Vicente, Elsa e Cláudio, no Brasil. Com sua estada

nos EUA, de junho de 1917 a dezembro de 1919, pretendia co nhecer

melhor a experiência e o estilo de vida norte-americano. Sua cor -

respondência permite recuperar suas expectativas e suas principais

atividades na época. À semelhança do que já havia feito na França,

matriculou-se na Universidade de Columbia para acompanhar cursos

na área de economia e finanças. Além dos estudos teóricos, programou

algumas viagens por vários estados norte-americanos. Merece destaque

especial uma viagem de carro que durou de 28 de junho a 23 de setembro

de 1918, em que percorreu 15 cidades e atravessou os EUA de Nova

York a Long Beach, na Califórnia. É difícil avaliar o significado dessa

experiência americana para suas atividades posteriores, mas certamente

ela teve um peso no desenrolar de suas opções futuras.

Terminada a guerra, Vicente retornou à Europa com a família.

No começo de 1920, já estava instalado em Paris. Nos dez anos

Publicações políticas da época.

Visita de Getulio Vargas a Nova Friburgo a convite de Vicente de Moraes.

Década de 1930.

seguintes, porém, não mais passou longas temporadas no exterior.

Embora sua mulher e seus filhos tenham residido em Paris, Londres

e Berlim, Vicente pareceu perceber que estavam em curso na época

grandes transformações na sociedade brasileira, e que era importante

estar no Brasil para entendê-las. Foi o que fez, permanecendo mais

tempo no país e reduzindo suas viagens à Europa a curtas temporadas

de visita à família.

Foi a partir de então que Vicente procurou se inserir de forma

mais efetiva na vida política nacional. Ensaiou algumas tentativas,

candidatando-se a deputado federal no Estado do Rio, mas não

obteve êxito. Seu engajamento se aprofundou com a fundação do

Partido Democrático no Distrito Federal e no Estado do Rio, em

1927. Aliado a Maurício de Lacerda, seu colega da Faculdade de

Direito, buscou organizar uma agremiação oposicionista que tinha

como bandeira o voto secreto, numa tentativa de mudar a tradição

oligárquica fluminense. O Partido Democrático do Estado do Rio

não chegou a se constituir como organização de grande peso político,

mas foi um veículo de críticas ao governo estadual, centradas na

necessidade de pôr fim à fraude eleitoral e de alterar as políticas tri -

butária e cafeeira.

Com a proximidade da eleição de março de 1930, que deveria

escolher o sucessor de Washington Luís na presidência da República,

foi formada a Aliança Liberal, que lançou a candidatura oposicionista

de Getúlio Vargas. Vicente e outros membros do Partido

Democrático participaram intensamente da campanha aliancista.

Muitos, como ele, candidataram-se também à Câmara dos

Deputados. Em 31 de janeiro de 1930, às vésperas das eleições,

Vicente escreveu aos filhos, então estudantes em Berlim, dando suas

impressões sobre o futuro pleito: “Aqui me encontro à espera do

automóvel [...] para seguir para Trajano de Morais, São Sebastião do

Alto e Madalena. Estive ontem em Itaocara onde fui assistir à formação

dos meus eleitores. Se a eleição correr de acordo com a lei e se

o eleitorado democrata comparecer às urnas, é possível que eu tenha,

só em Itaocara, mil eleitores [...]”

As avaliações e expectativas de Vicente não se concretizaram. As

eleições de março de 1930 foram marcadas pela fraude, e não só os

membros do Partido Democrático, como o candidato da Aliança

Liberal à presidência, Getúlio Vargas, foram derrotados. Uma nova

etapa da vida política nacional teve então início: a conspiração que

191

Cartões de visita.

conduziria à Revolução de 30. Vicente de Moraes também participou

das articulações revolucionárias no Estado do Rio, mobilizando

forças que pudessem enfrentar a situação fluminense. Vitoriosa a re -

volução, pouco tempo depois, em 1931, foi nomeado secretário de

Finanças do estado. Foi ainda membro do Conselho Consultivo,

instituição criada pelo governo revolucionário com o objetivo de substituir

os corpos legislativos, que haviam sido dissolvidos.

Com o processo de reconstitucionalização e a organização de novos

grupos políticos, Vicente se engajou na fundação, em dezembro de

1932, do Partido Socialista Fluminense (PSF), como agremiação filiada

ao Partido Socialista Brasileiro.9 Além dele, o PSF tinha como

principais lideranças César Tinoco, José Alípio Costallat, Altivo

Linhares e Cristóvão Barcelos. Em 1935, Vicente chegou a ser cogitado

como candidato ao governo do estado, mas, depois de muitas negociações

e algumas cisões, o nome escolhido foi o de Protógenes

Guimarães, que acabou vencendo seu opositor, o general Cristóvão

Barcelos, numa eleição bastante conturbada. O PSF seria extinto em

1937, com a decretação do Estado Novo.

Como membro do PSF, Vicente Ferreira de Moraes publicou

diversos trabalhos sobre questões de interesse do estado do Rio de

Janeiro, entre elas a da cafeicultura.10 Sua correspondência dos

primeiros anos da década de 1930 demonstra que possuía em torno

de si uma rede de aliados em diversas localidades, que recorriam ao

“chefe” político para conseguir diversos tipos de favores. O mais

comum eram pedidos de emprego, de uma “boa colocação no Rio de

Janeiro ou em Niterói”.11

Já na vigência do Estado Novo, Vicente foi presidente da Caixa

Econômica Federal. Em seguida, abandonou a vida pública, e faleceu

em 1947, aos 59 anos.

193

9 O primeiro Partido Socialista Brasileiro foi fundado em 1932 com o objetivo de unificar as diversas correntes

políticas que apoiaram a Revolução de 30. Liderado por Juarez Távora e Pedro Ernesto, entre outros, tinha

como principais metas programáticas a eleição indireta para a presidência da República, a liberdade de imprensa,

a jornada de trabalho de 8 horas, o salário mínimo e o estímulo às cooperativas agrícolas. O partido foi

extinto, juntamente com todos os demais, em 1937,após a instauração do Estado Novo.

10 Vicente Ferreira de Moraes publicou diversos livretos, como por exemplo Economia e política fluminense – a indústria

do cimento, A concorrência de Força e de Luz à cidade de Angra dos Reis, O caso das apólices da Prefeitura de Nova Iguaçu, A autonomia

de Miracema, e Parecer sobre a proposta de orçamentos do Estado do Rio de Janeiro – 1933. Todos foram publicados pelo Partido

Socialista Fluminense em 1934 (Niterói: Typographia 5 de Julho). Sobre a cafeicultura, publicou A questão do café

(Niterói: Typographia 5 de Julho, 1934).

11 Carta de José Francisco Pinheiro Júnior datada de 6 de maio de 1931.

Fachada da sede da Chácara do Paraíso.

195

De Volta à Chácara do Paraíso

à medida que se avança pelo caminho que conduz do portão até

a casa, a data inscrita na fachada reaparece por trás das barbas

de velho que pendem do velho pinheiro. Foi a partir daquele

marco, 1821, que procurei conhecer a história da região e

reconstituir trajetórias familiares que são únicas, mas ao mesmo

tempo tão características da sociedade brasileira. Resta agora

voltar o olhar para a velha sede.

Pode-se imaginar que a casa primitiva, provavelmente tosca,

tenha sido erguida pelos colonos suíços na Chácara dos

Inhames no ano de 1821. Ao adquirir a propriedade na década

de 1850, o casal José Antônio Marques Braga e Josephina

Salusse, habituado à vida urbana, não teve interesse em morar

no lugar. Nada indica que a chácara tenha recebido melhorias,

e pode-se supor que a compra da terra tenha sido apenas um

De volta à Chácara do Paraíso,

196

investimento imobiliário. A situação não deve ter se alterado quando

a viúva Josephina se casou pela segunda vez com Galiano das Neves,

ainda mais tendo ficado definido que a chácara caberia por herança a

Augusto, filho dela e de José Antônio. Mas a partir do momento em

que Augusto se casou com Zinha, em 1870, a situação começou a

mudar. Foi provavelmente então que a casa foi reformada ou refeita e

assumiu seu aspecto atual, embora ostentando a data antiga.

O estilo de vida de Augusto e Zinha Braga denotava uma visão do

campo como espaço de lazer. A dedicação de Augusto à criação de ca -

valos de corrida, que o levou a participar da organização do Jóquei

Clube de Nova Friburgo, é também indicadora do seu perfil. Foi justamente

na segunda metade do século XIX que os esportes passaram a

fazer parte do cotidiano da elite brasileira. Até então, a sociabilidade

tendia a se restringir ao espaço privado e aos rituais do calendário

religioso. Mesmo no Rio de Janeiro, eram escassos os espaços ao ar

livre capazes de proporcionar uma convivência pública. Só a partir

dessa época, com a difusão dos esportes ingleses como práticas de

civilidade, começou um processo de valorização das atividades físicas

que produziria, já no início do século XX, a figura tão prezada do

sportsman. No Rio de Janeiro, o turfe passou a fazer parte do cotidiano

da elite a partir de 1850, em pistas localizadas na Quinta da Boa Vista

onde os ricos comerciantes promoviam corridas. Em 1886 já havia

quatro hipódromos na cidade, com grande movimento de apostas, e

circulava uma revista especializada chamada O Jóquei. O turfe, mais que

um entretenimento, era um emblema da posição social de seus pra -

ticantes. Assim como os demais esportes, era visto como uma “novidade

civilizadora”.1

Um documento conservado por Valter Neves revela muito da

memória familiar sobre o casal Augusto e Zinha. Embora não seja

assinado, tudo leva a crer que o autor do texto, intitulado “Nossas

raízes”, seja um dos filhos de Juquinha, por sua vez filho de Augusto.

Segundo esse neto, Augusto, que “cavalgava como mocinho de cinema”,

faleceu aos 46 anos vítima de impaludismo, contraído na

Baixada Fluminense, por onde passava com freqüência em viagens ao

Rio de Janeiro. A partir de sua morte, o Tio Juca, irmão de Augusto,

1 Sobre o processo de adoção das práticas esportivas na sociedade brasileira, e mais especificamente na cidade

do Rio de Janeiro, ver Gilmar Mascarenhas de Jesus, Da cidade colonial ao espaço da modernidade: a introdução

dos esportes na vida urbana do Rio de Janeiro, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 13, n. 23, 1999.

Pequenina, Cláudio, Elsa, Vicentinho, Augusto e Vicente.

198

que nunca se casou, “assumiu a responsabilidade de orientar a educação

dos cinco sobrinhos”, aos quais sempre deu assistência. Ainda

segundo sua lembrança, “Vovó Zinha, que deu vida à Chácara do

Paraíso, então chamada Chácara da Dona Zinha, era um doce de

coco, adorada por todo mundo”. Essa avó sociável tinha hábitos

curiosos: “Sempre que ela ia ao Rio, levava um cartão postal já escrito

com as boas notícias da viagem; era só jogar na caixa do correio.” Ou

ainda: “Ao chegar à estação, ia procurar o maquinista para recomendar

que fosse bem devagar!”

Também Beatriz Getulio Veiga guarda a memória de “uma mulher

interessantíssima” e relembra a seguinte história: “A casa dela na

cidade era animadíssima, sempre cheia, todo mundo comia, todo

mundo dançava, todo mundo animava. Um dia chegou um turista em

Friburgo e foi para um hotel. Via o movimento naquela casa, entra

gente, sai gente, e disse assim: ‘Da próxima vez que eu vier não vou

mais ficar neste hotel, não. Vou para uma pensãozinha ali na praça

que é muito animada’...”

O inventário de Augusto, feito em 1895,2 permite entrever as

melhorias introduzidas naquela que era a casa de campo da família, já

que a seu lado figurava também uma casa de moradia na cidade de

Nova Friburgo. Pelo documento, ficamos sabendo que, nas salas

de jantar e de visitas da Chácara de D. Zinha, havia quatro bancos de

madeira; um aparador com pedra mármore; uma mesa elástica para

jantar; 12 cadeiras austríacas; um guarda-louça; um guarda-comida;

uma mobília composta de sofá, duas cadeiras de braço, seis cadeiras

pequenas e suas costas, tudo de vime; uma mesa de centro redonda de

madeira; dois consoles com pedra mármore; um espelho grande; um

armário; quatro jarros de porcelana; dois lampiões; um lustre na sala

de visitas; um dito na sala de jantar; um relógio de parede; sete

quadros; diversas louças e cristais; um armário de vidro. No primeiro

quarto, havia uma cama de madeira, um lavatório com pedra mármore

e outra cama de madeira; no segundo, uma cama de madeira,

uma cômoda, um lavatório com pedra mármore, um cabide, dois

quadros, uma mesa pequena de madeira; no terceiro, uma cama de

madeira, uma marquesa de madeira, um lavatório com espelho.

2 Inventário de Augusto Marques Braga, 1895, Arquivos do Pró-Memória da Prefeitura de Nova Friburgo.

Quem, hoje, percorrer a casa com essa lista em punho certamente

reconhecerá os itens arrolados. Para a época, porém, o cômodo que

mais chama a atenção é a sala de visitas, cujo mobiliário denota o

hábito de receber convivas. Mas o inventário de Augusto traz ainda

outras informações importantes. Os bens listados, situados em Nova

Friburgo e no Rio de Janeiro, mostram que, a despeito da formação

recebida na Escola de Comércio em Paris, Augusto não se dedicou a

atividades comerciais ou industriais e limitou-se a investir em pequenas

propriedades próximas do centro de Nova Friburgo. Na verdade,

Augusto e seu irmão Juca sempre viveram de rendas.

Tudo indica que após a morte de Zinha Braga, em 1914, a chácara

foi conservada sem alterações, mas também sem viço, por seu filho

Gugusto, que assumiu sua administração. Foi a partir de 1936, com

os novos donos Pequenina e Vicente de Moraes, que a propriedade se

tornou a Chácara do Paraíso, da qual usufruíram seus filhos,

Augusto, Vicentinho, Elsa e Cláudio, e de que hoje se ocupam seus

netos – entre os quais me incluo – e bisnetos. Lá está conservada a

biblioteca de Vicente, onde, além de livros, há caixas contendo cartas

antigas que permitem reconstituir velhas histórias. Lá viveu seus últimos

anos Pequenina, a Memé de seus netos, que gostava de contar as

“histórias do tempo antigo”.

199

201

Nascimento de Manoel de

Moraes Coutinho em Vila

do Touro, na Beira Alta,

Portugal.

(década de) Vinda de Manoel

de Moraes Coutinho para o

Brasil, onde se torna proprietário

da fazenda Cataguases,

na freguesia de Prados, termo

da vila de São João del Rei.

Início da exploração do ouro

nas Minas Gerais.

Criação da Intendência das

Minas.

Linha do Tempo

B Acontecimentos relevantes Trajetórias Familiares

B

B

F

1693

1702

1707

1730

F

F

202

6 de fevereiro – Nascimento

de João Baptista Rodrigues

Franco em Sabará.

(data provável) Nascimento de

Antônio de Moraes Coutinho,

filho de Manoel de Moraes

Coutinho e de Ana Nunes

da Costa, nas Minas Gerais.

Nascimento de Isabel Maria

da Silva no Rio de Janeiro.

(data provável) Vinda de João

Baptista Rodrigues Franco

para o Rio de Janeiro, para

assentar praça no Regimento

Novo.

Casamento de Antônio de

Moraes Coutinho e Maria

Felizarda de Sant’Ana em

Campo dos Carijós, hoje

Conselheiro Lafaiete,

Minas Gerais.

Chegada de João Baptista

Rodrigues Franco aos Sertões

do Macacu.

Nascimento de José Antônio

Marques Braga, pai, em Braga,

Portugal.

Nascimento de Guillaume

Marius Salusse, em Toulon,

França.

Envio de uma patrulha, pelo

Vice-Rei, à região conhecida

como Sertões do Macacu,

a fim de capturar o bando do

garimpeiro Mão de Luva.

O arraial onde a prisão é efe -

tuada passa a ser chamado de

São Pedro do Cantagalo.

Inconfidência Mineira.

Revolução Francesa.

F

F

B Acontecimentos relevantes Trajetórias Familiares

B

F

1754

1760

1761

1773

1785

F

F

1787 F

1788 F

B 1789

203

2 de setembro – Casamento

de João Baptista Rodrigues

Franco e Isabel Maria da Silva

no Rio de Janeiro.

Requerimento de João

Baptista Rodrigues Franco ao

Vice-Rei, solicitando a concessão

de uma sesmaria nos

Sertões do Macacu. A sesmaria

recebida, próxima do arraial

de Cantagalo, será chamada de

Santa Maria do Rio Grande.

Nascimento de Antônio

Rodrigues de Moraes, quarto

filho de Antônio de Moraes

Coutinho e Maria Felizarda

de Sant’Ana.

Nascimento de Basília Rosa

da Silva, filha de João Baptista

Rodrigues Franco e Isabel

Maria da Silva.

Nascimento de Marianne Joset

em Courfaivre, no cantão de

Berna, na Suíça.

Nascimento de João Antônio

de Moraes, décimo filho de

Antônio de Moraes Coutinho

e Maria Felizarda de Sant’Ana.

Estabelecimento de José

Antônio Marques Braga, pai,

comerciante português, no

Rio de Janeiro.

Setembro – Confirmação de

posse da sesmaria de João

Baptista Rodrigues Franco.

Chegada da família real portuguesa

ao Rio de Janeiro.

Abertura dos portos.

Missão do mineralogista inglês

John Mawe na região de

Cantagalo.

Portugal assina com a

Inglaterra tratado que prevê

a redução do tráfico negreiro.

F

F

B Acontecimentos relevantes Trajetórias Familiares F

1791

1793

B 1808

B 1809

1802 F

1812 F

1806 F

B 1810 F

204

4 de fevereiro – Desembarque

dos Joset em terras brasileiras.

21 de agosto – Batismo de José

Antônio Marques Braga, filho

de José Antônio Marques

Braga, pai, e de Gertrudes

Cândida d’Assumpção, na

matriz de Santa Ana, no Rio

de Janeiro.

Primeiro casamento de Basília

Rosa da Silva, com Antônio

Rodrigues de Moraes, e instalação

do casal na fazenda Santa

Maria do Rio Grande.

Nascimento do primeiro

filho de Basília e Antônio,

Francisco Rodrigues de

Moraes (Chico Cantagalo).

25 de janeiro – Nascimento

de José Antônio de Moraes,

segundo filho de Basília e

Antônio, e futuro Visconde

de Imbé.

9 de março – Alvará eleva

o arraial de São Pedro do

Cantagalo à condição de vila.

Elevação da colônia à condição

de Reino Unido a Portugal,

e Algarves.

Queda de Napoleão.

Desembarque de Sébastien-

Nicolas Gachet no Rio de

Janeiro como representante

diplomático do cantão suíço

de Fribourg.

O Príncipe Regente é aclamado

rei com o título de D. João

VI.

D. João VI assina o Tratado de

Colonização.

Chegada dos colonos suíços ao

vale onde é fundada a vila de

Nova Friburgo.

D. João VI volta para Portugal

e deixa no Brasil o filho

Pedro.

B Acontecimentos relevantes Trajetórias Familiares F

B 1814

B 1815

B 1817

B 1818

B 1821 F

B 1820 F

205

B 1822

Embarque de Guillaume

Salusse para o Brasil.

Chegada de Guillaume Salusse

a Nova Friburgo.

Primeiro documento referente

à Chácara dos Inhames.

Nascimento de Antônia Rosa

da Silva de Moraes

(Antoninha), terceira filha

de Basília e Antônio.

Nascimento de Clorinda

Francisca Josepha (Josephina),

primeira filha de Marianne

Joset e Guillaume Salusse.

Nascimento de Pedro

Eduardo, segundo filho

de Marianne e Guillaume.

(data provável) Partida de

José Antônio Marques Braga,

filho, aos 9 anos, para

estudar na Inglaterra.

Casamento de Marianne Joset

e Guillaume Salusse e batismo

de seus dois primeiros filhos.

Nascimento de Basília (II),

quarta filha de Basília

e Antônio.

O príncipe D. Pedro proclama

a Independência e é

coroado Imperador do Brasil,

com o título de D. Pedro I.

Chegada de colonos alemães

a Nova Friburgo.

B Acontecimentos relevantes Trajetórias Familiares F

1827 F

1823 F

1826 F

1829 F

1830 F

B 1824 F

206

Nascimento de Júlia Michaela,

terceira filha de Marianne

e Guillaume.

Pedido de autorização apresentado

por Guillaume à

Câmara de Nova Friburgo

para a instalação de uma

casa de pasto e um bilhar.

Maio – Casamento de José

Antônio Marques Braga,

pai, e Gertrudes Cândida

d’Assumpção e morte de

Gertrudes.

Nascimento de Antônio

Rodrigues de Moraes (II)

(Antonicão), quinto filho

de Basília e Antônio.

Nascimento de Adelaide

Monteiro de Mendonça,

filha de Gabriel Getulio de

Mendonça, comerciante no

Rio de Janeiro, e de Maria

Amália da Conceição e Silva.

Janeiro – Eleição de Antônio

Rodrigues de Moraes para

vereador em Cantagalo.

13 de agosto – Assassinato

de Antônio Rodrigues

de Moraes.

Nascimento de Guilherme,

quarto filho de Marianne

e Guillaume.

Nascimento de Felizarda de

Moraes, primeira filha de

João Antônio de Moraes

e sexta filha de Basília.

17 de agosto – Casamento

de Basília e João Antônio

de Moraes.

Nascimento de Júlio Marius,

quinto filho de Marianne

e Guillaume.

Abdicação de D. Pedro I em

favor de seu filho Pedro, de

apenas 5 anos de idade.

B Acontecimentos relevantes Trajetórias Familiares F

1832 F

1833 F

1834 F

1835 F

B 1831 F

207

Nascimento de Joaquim

Antônio de Moraes, terceiro

filho de João Antônio e oitavo

de Basília.

(data provável) Retorno de

José Antônio Marques Braga,

filho, ao Brasil.

Inauguração da hospedaria dos

Salusse para abrigar doentes.

Nascimento de Jean Edmond,

sexto filho de Marianne e

Guillaume.

Nascimento de Elias Antônio

de Moraes, quarto filho de

João Antônio e nono de

Basília.

Nascimento de Maria Amélia,

sétima filha de Marianne e

Guillaume.

(data provável)

Estabelecimento do Hotel

Salusse.

Chegada de José Antônio

Marques Braga, filho, a Nova

Friburgo.

Nascimento de Amélia de

Moraes, quinta filha de João

Antônio e décima de Basília.

Casamento de José Antônio

Marques Braga, filho,

e Josephina Salusse.

Compra da fazenda das Neves

por José Antônio de Moraes,

em sociedade com o tio

e padrasto João Antônio

de Moraes. Por essa época

é celebrado o casamento de

José Antônio de Moraes

e Leopoldina das Neves.

A vila de São João del Rei é

elevada à categoria de cidade.

Antecipação da maioridade de

D. Pedro II.

Fundação do Instituto

Colegial Nova Friburgo,

depois chamado Colégio

Freese.

F

B Acontecimentos relevantes Trajetórias Familiares F

1836

1837 F

1841 F

1843 F

1845 F

B 1842

B 1838 F

B 1840 F

208

Nascimento de Sophia,

oitava filha de Marianne

e Guillaume.

24 de julho – Nascimento de

José Antônio Marques Braga,

neto (Juca), primeiro neto

de Marianne e Guillaume.

Nascimento de Augusto

Marques Braga, segundo filho

de José Antônio Marques

Braga e Josephina Salusse.

6 de janeiro – Morte

de Gabriel Getulio

de Mendonça.

Casamento de Galdino

Emiliano das Neves

e Adelaide Monteiro de

Mendonça, e instalação

do casal no Rio de Janeiro.

(década de) Casamento de

Antoninha de Moraes com

Manoel de Moraes; o casal

recebe de João Antônio

a fazenda da Barra.

Casamento de Basília (II) de

Moraes com Antônio Pereira

de Mello; o casal recebe

de João Antônio a fazenda

Canteiro.

Primeiro casamento de

Antonicão de Moraes, que

passa a residir na fazenda da

Piedade.

Casamento de Felizarda de

Moraes com Francisco Lopes

Martins; o casal passa a residir

na fazenda Olaria e adquire

depois a fazenda da

Providência.

Nascimento de Adelaidezinha

(Zinha) das Neves, primeira

filha de Galdino Emiliano

e Adelaide.

Transformação de São

Francisco de Paula em

freguesia.

Extinção do tráfico internacional

de escravos.

B Acontecimentos relevantes Trajetórias Familiares F

1849 F

1850 F

1851 F

B 1850 F

B 1846 F

209

Nascimento de Arthur Getulio

das Neves, segundo filho de

Galdino e Adelaide, e ida da

família para Nova Friburgo.

Morte de José Antônio

Marques Braga, pai, em Paris.

Janeiro – Morte prematura de

Adelaide e retorno da família

para São João del Rei.

Chegada à Nova Friburgo

de Galiano Emílio das Neves,

irmão de Galdino.

Nascimento de Antônia

(Antonica), filha de

Antoninha e Manoel

de Moraes.

Partida de Pedro Eduardo

Salusse, segundo filho de

Marianne e Guillaume, para

a Bélgica, a fim de estudar

pintura.

Nascimento de Trajano de

Moraes, filho de José Antônio

de Moraes e Leopoldina das

Neves.

(data provável) José Antônio

Marques Braga adquire as terras

da Chácara dos Inhames.

(década de) Casamento de

Joaquim Antônio de Moraes

com a sobrinha Basília (III);

o casal recebe de João Antônio

a fazenda do Sobrado.

Casamento de Amélia de

Moraes com Vicente Ferreira

de Mello, depois chamado de

Vicente Ferreira de Moraes; o

casal passa a residir na fazenda

São Lourenço.

F

B Acontecimentos relevantes Trajetórias Familiares F

1855

1856 F

1857 F

1858 F

1860 F

1861 F

210

Morte de José Antônio

Marques Braga.

Casamento de Sophia, filha

mais nova de Marianne

e Guillaume, com Joviano

Firmino das Neves, irmão

de Galdino e Galiano.

Joviano torna-se presidente

da Câmara dos Vereadores

de Nova Friburgo, até 1869.

Regresso de Pedro Eduardo

Salusse da Europa, casado

com Maria Eugénie Laurreys,

de nacionalidade belga.

Eleição de Guilherme Salusse

para vereador em Nova

Friburgo.

Casamento de Maria Amélia

Salusse com Manoel José

Teixeira da Costa.

24 de novembro – Formatura

de Elias Antônio de Moraes

pela Faculdade de Medicina

do Rio de Janeiro.

Casamento da viúva Josephina

com Galiano Emílio das

Neves.

Outubro – nascimento de

Galiano Emílio das Neves Jr.

(Conchon).

6 de setembro – Casamento

de Elias Antônio de Moraes

com Gerogeanna Augusta da

Silva; o casal recebe de João

Antônio a fazenda do

Ribeirão Dourado.

F

B Acontecimentos relevantes Trajetórias Familiares F

1864

1865 F

1866 F

Manifesto Republicano.

Auge da produção de café

na região de Cantagalo.

Promulgação da Lei do Ventre

Livre.

211

B 1871

João Antônio de Moraes e

Basília Rosa da Silva recebem

o título de Barão e Baronesa

das Duas Barras.

Nascimento de Honestalda,

terceira filha de Basília (II)

e Antônio Pereira de Mello.

Galdino das Neves torna-se

presidente da Câmara dos

Vereadores de São João del

Rei, até 1872.

Casamento de Augusto

Marques Braga, filho de

Josephina e José Antônio

Marques Braga, com

Adelaidezinha (Zinha) das

Neves, filha de Galdino das

Neves e Adelaide Monteiro

de Mendonça.

Morte de Guilherme Salusse,

aos 37 anos.

Transferência de Galdino

das Neves, sua segunda esposa

e seu filho Arthur Getulio

para o Rio de Janeiro.

Nascimento do poeta Júlio

Salusse, filho de Júlio Marius

Salusse e Hortência Maria

Queiroz, e morte de Júlio

Marius.

Partilha de 2/3 dos bens

do Barão e da Baronesa

das Duas Barras entre seus

descendentes.

Compra da fazenda Santo

Inácio por José Antônio

de Moraes.

Compra da fazenda Ipiranga

por Basília (II) de Moraes

e Antônio Pereira de Mello.

F

B Acontecimentos relevantes Trajetórias Familiares F

1867

1869 F

1872 F

B 1870 F

212

Morte de Guillaume Salusse.

Compra do terreno em Nova

Friburgo onde será construído

o “palacete do Dr. Elias”.

Eleição de Galdino das Neves

para deputado pela província

de Minas Gerais.

Formatura de Arthur Getulio

das Neves pela Escola

Politécnica.

Nascimento de Raul de

Moraes Veiga, filho

de Antonica de Moraes

e de João Henriques da

Veiga, na fazenda da Barra.

Nascimento de Galdino do

Valle Filho, filho de Francisca

de Moraes Martins e Galdino

do Valle, na fazenda Olaria.

Aquisição da fazenda Aurora

por José Antônio de Moraes.

(década de) Casamento de

Honestalda com o primo

João de Moraes Martins.

Morte de João Antônio de

Moraes, Barão das Duas

Barras.

Morte de Basília, Baronesa

das Duas Barras.

José Antônio de Moraes

recebe o título de Barão

de Imbé.

Visita do Imperador a Nova

Friburgo para a inauguração

da Estrada de Ferro de

Cantagalo.

Lei Saraiva (reforma

eleitoral).

B Acontecimentos relevantes Trajetórias Familiares F

1875 F

1876 F

1878 F

1879 F

1880 F

1880 F

1883 F

1884 F

B 1873

B 1881

213

Casamento de Arthur Getulio

com Maria Sophia, primeira

filha de Joviano das Neves

e Sophia Salusse.

Abertura da firma Henriques

Costa Reis & Cia., que teve

como sócios comandatários

Felizarda de Moraes, seu

filho Alfredo, Elias Antônio

de Moraes, Vicente Ferreira

de Mello e Manoel de Moraes.

Nascimento de Maria Adelaide

(Lalaide), primeira filha de

Arthur Getulio e Maria

Sophia.

Nascimento de Vicente (II)

Ferreira de Moraes, filho

de Vicente Ferreira de Mello

e Amélia.

José Antônio de Moraes

adquire a fazenda Aurora,

em São Francisco de Paula.

José Antônio de Moraes

recebe o título de Visconde

de Imbé.

Organização Companhia

Estrada de Ferro Barão de

Araruama, com sede em

Santa Maria Madalena,

ligando Macaé a Conceição

de Macabu, Triunfo,

Ventania, Vila Aurora

e a localidade de Manoel

de Moraes. São sócios do

empreendimento, planejado

por Trajano de Moraes, seu

pai José Antônio de Moraes

e seu tio Manoel de Moraes.

Elias Antônio de Moraes

recebe o título de 2º Barão

das Duas Barras.

Nascimento de Mariana,

segunda filha de Arthur

Getulio e Maria Sophia.

Fundação do Colégio Anchieta

em Nova Friburgo.

Abolição da escravidão.

Proclamação da República.

B Acontecimentos relevantes Trajetórias Familiares F

1887 F

B 1886 F

B 1888 F

B 1889 F

214

Galiano Emílio torna-se

presidente da Câmara dos

Vereadores de Nova Friburgo,

até 1892.

Morte de José Antônio,

Visconde de Imbé.

Fundação da firma Moraes,

Tinoco & Cia., por Manoel

Antônio de Moraes Jr.

(Neco), dedicada ao

comércio de café.

Eleição de Pedro Eduardo

Salusse para vereador em

Nova Friburgo.

Falência da firma Moraes,

Tinoco e Cia.

Morte de Galdino Emiliano

das Neves.

Morte de Marianne Joset

Salusse.

Piquenique na Chácara

de D. Zinha Braga.

Primeiro mandato de José

Antônio de Moraes (II), filho

de Trajano de Moraes e neto

do Visconde de Imbé, como

deputado estadual.

Eleição de Raul de Moraes

Veiga para deputado estadual.

Eleição de Galdino do Valle

Filho para vereador em Nova

Friburgo.

Política emissionista do

mi nistro da Fazenda Rui

Barbosa, conhecida como

Encilhamento.

Criação do município de

São Francisco de Paula.

Início do governo Campos

Sales.

Renegociação da dívida externa

e crise dos preços do café.

Eleição de Nilo Peçanha para

presidente do estado do Rio

de Janeiro.

Primeira política de valorização

do café, que teve como

estratégia a assinatura do

Convênio de Taubaté pelos

presidentes dos estados de

São Paulo, Minas Gerais

e Rio de Janeiro.

B Acontecimentos relevantes Trajetórias Familiares F

1890 F

1896 F

1897 F

1900 F

1902 F

1909 F

B 1898

B 1903

B 1906 F

B 1891 F

215

B Acontecimentos relevantes Trajetórias Familiares F

Galiano Emílio das Neves Jr.

torna-se presidente da

Câmara de Vereadores de

Nova Friburgo, até 1913.

Casamento de Adelaide

(Pequenina), filha de Zinha,

com Vicente Ferreira de

Moraes.

Reeleição de José Antônio

de Moraes (II) para deputado

estadual.

Pequenina, Vicente e filhos

residem por longos períodos

na Europa e nos EUA.

Reeleição de Galdino do Valle

Filho para vereador.

Terceira eleição de José

Antônio de Moraes (II)

para deputado estadual.

Morte de Galiano Emílio

das Neves.

Primeira eleição de José

Antônio de Moraes (II)

para deputado federal.

Compra da fazenda Aurora,

que havia pertencido ao

Visconde de Imbé, pelo

casal João de Moraes

Martins e Honestalda.

Eleição de Raul Veiga para

presidente do estado do

Rio de Janeiro.

Primeira Guerra Mundial.

1912 F

1915 F

1916 F

1918 F

1919 F

F 19-10 1932

B 19-14 1918

B 1910 F

216

Morte de Felizarda.

Segunda eleição de José

Antônio de Moraes (II)

para deputado federal.

Eleição de Galdino do Valle

Filho para deputado federal.

Morte de Elias Antônio de

Moraes.

Eleição de Raul Veiga para

de putado federal. Seu mandato

será interrompido pela

Revolução de 1930.

Engajamento de Vicente

de Moraes na Campanha da

Aliança Liberal e na criação

do PD (RJ).

Vicente é escolhido secretário

de Finanças do estado do Rio

de Janeiro.

Vicente é membro do

Conselho Consultivo da

interventoria de Ary Parreiras

no estado do Rio de Janeiro.

Vicente e Pequenina tornamse

donos da Chácara do

Paraíso.

Agosto – Eleição de

Honestalda para prefeita do

município de São Francisco

de Paula.

Lançamento da candidatura

de Nilo Peçanha à presidência

da República pela chamada

Reação Republicana, e derrota

do grupo niilista.

Mudança da sede do município

de São Francisco de Paula,

de Visconde de Imbé, para

Trajano de Morais.

Quebra da Bolsa de Nova

York.

Criação da seção do Partido

Democrático do Rio de

Janeiro (PD).

Revolução de 1930.

Dezembro – Fundação do

Partido Socialista Fluminense

(PSF), como agremiação

filiada ao Partido Socialista

Brasileiro.

1924 F

1927 F

1931 F

1936 F

B Acontecimentos relevantes Trajetórias Familiares F

B 1923

B 1930

B 1932 F

B 1929 F

B 1922 F

217

Vicente é nomeado diretor da

Caixa Econômica no estado

do Rio de Janeiro.

Morte de Vicente.

Eleição de Galdino do Valle

Filho para deputado federal

pela UDN.

Morte de Pequenina.

Decretação do Estado Novo.

O município de São Francisco

de Paula passa a se chamar

Trajano de Morais.

Redemocratização do país e

surgimento de novos partidos.

1947 F

1954 F

1976 F

B Acontecimentos relevantes Trajetórias Familiares F

B 1938

B 1945

B 1937 F

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Créditos das Fotografias

Regina Lo Bianco

p.16 Chácara do Paraíso

p.38 Palacete do Barão das Duas Barras.

p.110 Fazenda do Santa Maria do Rio Grande.

p.192 Fachada da sede da Chácara do Paraíso.

Pedro Oswaldo Cruz.

p.60 Quadro de Josephina Salusse Marques Braga.

p.63 Quadro de José Antônio Marques Braga.

p.104 Quadro de Basília Rosa de Moraes, Baronesa das Duas Barras.

p.105 Quadro de João Antônio de Moraes, 1.º Barão das Duas Barras.

p.130 Fazenda do Ribeirão Dourado, no atual município de Cordeiro.

p.136 Fazenda Santo Inácio, no atual município Trajano de Morais.

p.148 Fazenda Olaria. Município de Trajano de Morais.

p.165 Fazenda São Lourenço. Município de Trajano de Morais.

Valdiney Ferreira

p.94 São Sebastião da Vila do Touro em Portugal, local de origem da família

Moraes.

Por: Roberto Barros

ROBERTO BARROS XXI
Enviado por ROBERTO BARROS XXI em 16/02/2021
Reeditado em 16/02/2021
Código do texto: T7185429
Classificação de conteúdo: seguro
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